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(...) onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é. D. W. Winnicott (1975, p. 59)

Como relatado anteriormente, constatou-se neste grupo de crianças uma dificuldade no início da atividade em relação ao ato de “soltar a imaginação”. Em Achterberg (1996, p. 9 APUD RODRIGUES, 2003, p. 81), a imaginação “é o processo de pensamento que invoca e usa os sentidos: visão, audição, olfato, paladar, sentidos do movimento, posição e tato”.

Sobre o imaginário, em Laplantine e Trindade (1997, s/p.), encontramos:

O imaginário faz parte da representação como tradução mental de uma realidade exterior percebida, mas apenas ocupa uma fração do campo da representação, à medida que ultrapassa um processo mental que vai além da representação intelectual ou cognitiva. A representação imaginária está carregada de afetividade e de emoções criadoras e poéticas. O imaginário, como mobilizador e evocador de imagens, utiliza o simbólico para exprimir-se e existir e, por sua vez, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária.

A partir destas referências, falamos em “imaginário atrofiado” para expressar o enfraquecimento da capacidade de representar com caráter imaginativo as percepções corporais.

Apesar de não ser nossa intenção verificar os motivos que resultaram neste dado corporal na história de cada criança, um levantamento teórico apontou-nos um estudo que marca uma triste realidade: lidamos cada vez mais com crianças que possuem um corpo marcado pela “ausência dos traços simbólicos” (PROCHONO; SILVA; PARAVIDINI, 2014, p. 400).

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A contemporaneidade e suas marcas na subjetividade humana tem sido objeto de estudo de vários campos do saber: da sociologia, da filosofia e da psicanálise, sendo que suas características mais destacadas são o apagamento ou enfraquecimento dos laços simbólicos e as relações marcadas pelo ideal consumista (...). O que vivemos na atualidade é a falha do símbolo enquanto mediador das relações dos homens com os outros e até com o próprio corpo (...). (PROCHONO; SILVA; PARAVIDINI, 2014, p. 400)

O status atual de mundo do consumo bate à porta das crianças. Apesar de a formação simbólica ser parte constituinte da criança pequena, as interferências do ambiente refletem diretamente na continuidade ou no atrofiamento deste aspecto.

O imaginário infantil é inerente ao processo de formação e desenvolvimento da personalidade e da racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece no contexto social e cultural que fornece as condições e as possibilidades deste processo. As condições sociais e culturais são heterogêneas, mas incidem perante uma condição infantil comum: a de uma geração desprovida de condições autônomas de sobrevivência e de crescimento e que está sob o controle da geração adulta. (SARMENTO, 2003, p. 53)

Os apontamentos sugerem que a atualidade investida no consumo e nas respostas rápidas colabora para a transformação do imaginário na geração infantil. “Numa lógica utilitarista, os sujeitos tornam-se objetos a serem descartados, eliminados como qualquer bem de consumo” (PROCHONO; SILVA; PARAVIDINI, 2014, p. 400). Este corpo infantil – objeto de consumo – é inserido em atividades (aulas de informática, de idiomas, atividades esportivas, entre outros) para tornar-se cada vez mais preparado para o mercado de trabalho. O exagero de atividades não implica objetivamente estar junto ao outro, em contato com seu corpo e sentindo de fato o outro. Um chamado para um estado mais atento nos é dado por Pacheco (1995, p. 48): “a informatização é um bem, mas não podemos deixar que ela amorteça os nossos sentimentos e emoções. É necessário voltar a sentir, precisamos reaprender a amar e a nos tocar”.

O Método BPI propõe à pessoa que o vivencia o pleno “sentir” do corpo, o trabalho do imaginário no corpo para instaurar um processo criativo, validando suas sensações e suas emoções. Conforme constatamos, este grupo de crianças apresentou

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dificuldade com o trabalho da imaginação no corpo e, desta forma, buscamos dar continuidade à atividade tendo um cuidado especial nos encontros com as questões do imaginário no corpo das crianças. Cox (1974, p. 63) afirma que fantasia é “como o húmus do qual brota a habilidade do homem de inventar e inovar. A fantasia é a fonte mais rica da criatividade humana”.

Na organização dos dados, pontuamos a categoria Roteiro de Imagens, Sensações e Movimentos. Conforme descrito, esta estratégia consistiu-se em um roteiro por imagens, sensações e/ou movimentos ligado ao universo festivo das manifestações populares brasileiras. As crianças eram conduzidas por uma trajetória no espaço da sala, na qual, em diferentes momentos do encontro, conduzíamos um aspecto da Técnica dos Sentidos – imagem, sensação ou movimento. Ora era indicado às crianças um movimento, ora era indicada uma imagem, ora era indicada uma sensação. Estas indicações dialogavam entre si, criando um roteiro. Entretanto, a resposta corporal das crianças a cada indicação não previa um modelo exato, e sim a liberação do corpo pelo fluxo dos sentidos.

Pode parecer contraditório a condução de um roteiro com as crianças quando se trata de um trabalho corporal no Método BPI, entretanto, temos de considerar que vivenciamos uma época em que modelos estéticos, valores e padrões ditam o comportamento social, a aparência e a forma de se sentir inserido no mundo. A criança absorve este universo social por meio da família e do grupo escolar na qual está inserida. O trabalho corporal pretendido pela Técnica de Dança alinhada com a Técnica dos Sentidos do Método BPI foge às referências atuais e dominantes das práticas de dança. “No BPI o sujeito está à frente da estética” (CAMPOS, 2012, p. 8). Romper uma visão de corpo que segue modelos externos exige tempo, disponibilidade e um trabalho constante. Não se aprende de um dia para o outro a capacidade de trilhar por um percurso interno.

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Desta forma, o roteiro tinha a função de estimular as crianças a trilharem um percurso com seus corpos. Foi uma estratégia utilizada neste projeto para alcançar uma qualidade de trabalho específica do Método BPI. Não consistia em um roteiro duro e fechado, que exigia respostas exatas, mas sim um pulso para que o imaginário delas fosse aflorado. Houve uma preocupação em não impor modelos externos à resposta corporal, preservando a particularidade do Método BPI pelo percurso interno do movimento do corpo.

Turtelli (2009, p. 23) enfatiza:

[No Método BPI] vemos no trabalho do movimento associado a imagens a vantagem de permitir que cada pessoa expresse seu movimento de maneira individualizada. Mesmo que uma única imagem seja sugerida para várias pessoas, cada uma irá formá-la de acordo com suas próprias experiências de vida, seu próprio modo de ser e de se mover. A imagem pode ser usada como um estímulo que não dá forma, mas uma intenção que irá sugerir um caminho para que cada pessoa gere seu movimento.

Retomo a condução feita com as crianças a fim de exemplificar a proposta de trabalho nomeada por Roteiro de Imagens, Sensações e Movimento, conforme descrito na página 70.

A dinâmica deste encontro foi iniciada a partir da proposta de que tínhamos fincado, no centro da sala, um mastro de proteção. Indiquei às crianças que a proteção proporcionada pelo mastro no nosso corpo tinha que ser repassada para a boneca de pano que carregávamos no peito. Iniciei um movimento ritmado para o batuque que dava passagem para um cortejo com caminhos e travessias intensas, finalizando num espaço individual (o dojo) onde aconteceria uma Festa de Boi. (Trecho retirado do Relatório de Atividade com as crianças)

Esta trajetória embasou o trabalho corporal tanto na relação do movimento com as imagens e as sensações, como no trabalho de relação com a boneca de pano. Os movimentos, as imagens e as sensações foram sugeridos separadamente em momentos distintos da trajetória e possibilitaram que as crianças se apropriassem destas indicações, deixando-as reverberar no corpo de cada uma de uma forma única.

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Pudemos perceber, nesta dinâmica, a interação das crianças com a proposta. Neste encontro, não houve dispersão das crianças durante a trajetória, pois elas foram envolvidas pela dinâmica, respondendo com interesse pela prática. A ressonância maior foi via corpo, pois as crianças permitiram-se estar corporalmente conectadas com os conteúdos apresentados.

Outra forma de trabalhar o imaginário no corpo foi por meio do “brincar de faz de conta”. Esta dinâmica é uma proposta socialmente conhecida e, por isso, trazia de imediato a referência de que estávamos entrando em um momento lúdico. Brincamos de “faz de conta” em diversos momentos e com dinâmicas variadas: fazendo de conta que a mão tem uma boca, fazendo de conta que estamos num cercado de boi, fazendo de conta que a boneca tinha vida, etc.

Faz-de-conta é uma atividade universal e essencialmente humana e o que há de comum, em suas diversas definições, é a sua relação com a realidade social da vida humana. A criança assume diversos papéis, finge ser outra pessoa, um animal, finge estar fazendo algo que realmente não está fazendo, expressando- se verbalmente e/ou motoramente, criando, construindo ou transformando os brinquedos, dando-lhes a função que deseja, para compor um cenário, cujo tema é retirado de uma fonte de experiência de vida real. (BOMTEMPO, 1999, p. 52)

Assim, a boneca que antes era vista somente como um pedaço de pano sem vida, ganhou brilho nos olhos e vontade de voar, visto que o “brincar de faz de conta” atraiu as crianças, permitindo que instaurassem outro momento, outro tempo-espaço, um pedaço de fantasia para alterar a dura realidade que elas apresentavam durante as atividades. O “faz de conta” rompeu barreiras ao "liberar” as crianças para vivenciar o fluxo dos sentidos por meio da brincadeira. É importante colocar que a condução do “brincar de faz de conta” foi se dissipando ao longo da atividade com as crianças. Em certo momento, não era mais necessário falar a frase “vamos fazer de conta que”, pois as crianças foram assimilando a brincadeira e, no limite de cada uma delas, liberando o corpo para a Técnica dos Sentidos.

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