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A perspectiva de quem faz e de quem organiza: as entrevistas

O Enquadramento da pesquisa

4. Do enquadramento metodológico ao trabalho empírico

4.3. A perspectiva de quem faz e de quem organiza: as entrevistas

A recolha de entrevistas foi cedo determinada como peça fundamental, indissociável do aspecto qualitativo deste projecto de investigação. Dada a especificidade do contexto em estudo e a multiplicidade de actores envolvidos, considerou-se que uma pesquisa qualitativa seria a mais adequada, já que a produção de informação estatística não produziria resultados que permitissem aferir ao detalhe informação sobre as percepções, motivações e inter-relações entre os actores envolvidos e as circunstâncias de produção de street art. Assim, a recolha de testemunhos pessoais via situações de entrevista surgiu como opção metodológica pertinente, contemplando as idiossincrasias e vicissitudes do discurso individual de cada um, isto é, o que Idalina Conde apelidou de «modos de enunciação de si» (Conde, 1993:199). Precisamente, porque é também na forma desse discurso e na maneira de cada indivíduo o articular que se consegue perceber quais os aspectos a que atribui mais importância ou menos, ou a que confere prioridade, num processo de «inteligibilidade sociológica centrada no sujeito» (Conde, 1993:207). O próprio Goffman apontava a importância da análise do discurso durante a situação da entrevista:

«Goffman’s interest in detailing the ways in which people, whether they are fully aware of it or not, strive to present a picture of themselves which is to their advantage and at the same time credible to others, who presumably feel that they have been able to form their own opinion of the evidence.» (Hannerz, 1980:205)

Privilegiou-se, portanto, a elaboração de entrevistas longas a cada um dos entrevistados, com vista a recolher informação de considerável detalhe, ao invés de optar por um maior número de entrevistas pouco detalhadas e menos ricas ao nível da qualidade da informação recolhida. O corpo de informação que estas entrevistas, semi-directivas e bastante extensas, permitiram obter foi considerável, permitindo não só esclarecer questões e desvanecer pressupostos prévios em relação à pesquisa, como determinar direcções futuras para a investigação. O guião, direccionado para a obtenção de determinado tipo de informação, permitiu abertura suficiente para que o entrevistado pudesse explorar os temas propostos da forma que preferisse, que fosse mais próxima da sua própria perspectiva. Ora esta opção metodológica ao nível da construção do guião de entrevista permitiu que o próprio discurso dos entrevistados acabasse por sugerir outros aspectos a explorar na pesquisa. A título de exemplo, durante a entrevista ao street artist Miguel Januário (do projecto ±), apercebo-me no seu discurso de um aspecto que até então me havia passado despercebido: de que sendo um aspecto importante na prática de street art o da sua visibilidade, por vezes essa não se prenderia tanto com a quantidade de transeuntes que se deparariam fisicamente com a peça, na rua, mas com a possibilidade de imagens dessa intervenção serem acessíveis a um vasto número de pessoas, através da internet. Daqui surgiu uma reflexão sobre o papel que a fotografia das peças adquire, como forma de «preservar» o efémero,

bem como as possibilidades da sua partilha pelas redes sociais e sites na internet – aspectos que serão explorados no 9º capítulo.

Foram elaboradas entrevistas a dois conjuntos de actores: por um lado, quem faz, os artistas de street

art , na sua diversidade de perfis, e por outro lado, quem produz, ou seja, pessoas ligadas a entidades e associações para a promoção da arte urbana, bem como ao departamento da Câmara Municipal de Lisboa que se dedica à promoção de eventos de street art em contextos legais (a Galeria de Arte Urbana). Cada entrevista foi gravada através de um gravador digital, com a autorização prévia do entrevistado, e o conjunto das transcrições resultou em perto de 170 páginas de informação «em bruto», cujos resultados revelaram uma considerável densidade informativa, que se evidenciou preciosa no traçar dos perfis dos artistas e das entidades promotoras de street art, bem como as diferentes visões sobre o espaço público e as populações – e o papel que nesse a street art pode assumir. Em articulação com o problema sociológico em perspectiva, os relatos dos actores que fazem e produzem street art em Lisboa dão corpo a um conjunto de reflexões e resultados expostos ao longo deste trabalho. Nomeadamente, e de forma sintética:

a) No 5º capítulo, são traçados os contornos dos diferentes contextos de produção de street art em Lisboa, através dos actores que a promovem e produzem, dando conta dos seus vários discursos e formas de conceber a cidade e o papel que nela a street art pode ter;

b) Uma reflexão sobre a franca diversidade dos perfis dos artistas de street art que intervêm nesta cidade encontra-se no 6º capítulo;

c) As representações que os artistas de street art tecem quanto ao acto de intervir na rua, no que tal implica em termos de adaptação de técnicas, escolha dos locais, abordagens temáticas, e integração nos diferentes contextos de produção – de que é dada conta no 7º capítulo;

d) No 8º capítulo, a forma como o trabalho dos artistas e das entidades promotoras e produtoras se interliga com as comunidades dos locais a intervir, na diversidade das perspectivas que lhe subjazem e que vão da participação directa dos cidadãos em projectos de street art à intervenção na morfologia do espaço público através da street art, como forma de propor uma reflexão sobre espaço público;

e) As percepções dos artistas e produtores sobre a natureza efémera da street art, e a possibilidade de esta constituir um elemento activo em discursos – ou, por outro lado, ela mesma propor esses discursos - sobre as estruturas urbanas, nomeadamente na decadência e degradação do edificado, reflexão presente no 9º capítulo deste trabalho;

f) Ainda no 9º capítulo é explorado o papel importante da virtualidade na disseminação do trabalho dos artistas de street art, e a forma como à «rua física» enquanto plano de intervenção artística se sobrepõe por vezes a «rua virtual»;

g) As possibilidades que à street art se associam, em relação à integração do trabalho dos artistas no mundo da arte e nos seus diferentes contextos expositivos são um aspecto de que é dada

conta no 10º capítulo, bem como o papel que a street art tem vindo a desempenhar nos mercados da arte contemporânea, motivado em parte pela singularidade de determinados perfis artísticos que têm vindo a fazer um percurso de excepção, intervindo em contextos de rua, de galeria e mesmo de museu; h) Finalmente, em epílogo é elaborada uma reflexão sobre a emergência do turismo de street

art nas cidades contemporâneas e a sua presença em campanhas de publicidade e marketing – bem com os diversos significados que tal presença assume.

Foram, assim, recolhidos relatos de um conjunto significativo de artistas, sob a forma de entrevista qualitativa na qual se procurou traçar percursos individuais na construção de uma carreira artística. Igualmente, procurou-se aferir as suas percepções sobre um fenómeno de visibilidade crescente, a

street art, e de que forma essa visibilidade é interpretada e tomada como estratégia pelos artistas. Igualmente se procurou aferir as percepções de pessoas com actividade significativa em torno do tema da arte urbana, nomeadamente na organização de eventos, de associações, como por exemplo o Wool on Tour, Lata 65, APAURB, Projecto Crono, entre outras.

As entrevistas decorreram em diversos locais, tendo sido todas elaboradas no concelho de Lisboa, com excepção de uma, que, por indisponibilidade do entrevistado, teve lugar através de e-mail, respondendo a questões que enviei56. Todas decorreram entre 2013 e 2014.

No que diz respeito à elaboração dos contactos prévios, foram obtidos de duas formas: através da internet, pesquisando páginas pessoais de artistas ou as páginas dos projectos cujos mentores interessaria contactar e posteriormente enviando um e-mail solicitando entrevista (ou telefonando); através da técnica de snowball, em que os próprios entrevistados me sugeriam que entrevistasse outra pessoa, dando-me o seu contacto directo.

Devo dizer que não foi difícil, através de pesquisas na internet, encontrar páginas de diversos artistas de street art que, actuando na área de Lisboa, eu pudesse entrevistar. Porém, obter respostas aos contactos e, sobretudo, respostas afirmativas, já foi menos simples, por diversos factores: dificuldades de agenda por parte dos artistas devido a uma extensa actividade produtiva, com viagens, exposições, etc.; ou recusa em participar por não se identificarem com o projecto – numa primeira abordagem, o que me levou a reformular a forma de abordar, gerindo cautelosamente palavras como «arte», «arte urbana», «street art » ou «artista», já que, como descobri ao longo de percurso de investigação, cada criador tem uma visão muito particular das palavras que escolhe usar e às quais confere significado. Em relação a este último aspecto, é também sem dúvida um dado, reflectindo os dilemas semânticos que também nas abordagens académicas a questão da street art suscita, como analisado em capítulo anterior, mas que fazem parte das condições estruturais de um mundo artístico e sociológico em construção.

O guião de entrevista

Vejamos agora como foram estruturados os guiões de entrevista, tendo em conta a diversidade dos entrevistados.

Quanto ao guião de entrevista destinado aos artistas de street art, foi elaborado segundo três eixos gerais: 1) percurso artístico pessoal; 2) processos de produção de arte no espaço público urbano e 3)

representações e percepções sobre arte no espaço público. Um exemplo de guião destinado aos artistas pode ser encontrado no Anexo B.

No que diz respeito à secção sobre o percurso artístico pessoal dos entrevistados, foi-lhes pedido que descrevessem esse percurso artístico, nomeadamente o ‘como começou’, que aspectos o interessaram na prática de street art ou que momentos de formação e aprendizagem destacam. Igualmente, foi abordada a questão das técnicas experimentadas e preferidas, bem como dos temas. Foi também proposto que explicassem em que medida criar arte no espaço público seria importante para as suas identidades artísticas.

Num segundo momento do guião, relativo aos processos de produção de arte no espaço público, foi- lhes pedido que relatassem o surgimento da ideia e/ou possibilidade de pintar na rua, os meios expressivos que a experiência implicou, as aprendizagens técnicas subjacentes, bem como os significados e possibilidades que intervir na rua acarreta. O papel dos pares, quer na aprendizagem de técnicas, quer ao nível das intervenções colaborativas, foi um dos aspectos focados. Os entrevistados foram também questionados sobre os formatos de produção de arte no espaço público que experimentaram (individualmente, em colaboração, por iniciativa de associações ou instituições, com marcas, etc.), tal como em relação à forma como avaliariam essas participações, no sentido de constituírem desafios ou possibilidades. Também os contextos expositivos em que os artistas expuseram foi uma questão colocada, tanto em relação ao tipo de espaço – galerias dedicadas à arte urbana, galerias ao ar livre, galerias «convencionais», museus, lojas, outros contextos, etc. – como aos contextos urbanos em particular, para além de Lisboa. Outra questão colocada prendia-se com a forma como o contexto da intervenção pode ter um papel de influência no próprio trabalho artístico, e de que contornos essa influência se manifestaria nesse trabalho.

Finalmente, no terceiro momento do guião de entrevista, centrado nas percepções e representações do artista sobre a street art, foram-lhes colocadas questões sobre a relação e evolução entre graffiti e

street art, bem como respectivas especificidades e posturas éticas. Particularmente, sobre a coexistência de street art em contextos ilegais e espontâneos e legais e legitimados – que conflitos, oportunidades ou dilemas esta dicotomia sugeria. Outro aspecto explorado foi a questão da especificidade da street art em relação a outras formas de arte pública ou de intervenção artística no espaço público. Houve ainda um conjunto de questões sobre os locais específicos do espaço público urbano onde o artista de street art prefere intervir, e porquê, que características deverá ter e limites éticos impõe ou não às suas intervenções. Um conjunto final de questões prendeu-se com as

perspectivas de internacionalização dos artistas de street art que actualmente são marcantes, bem como as representações que os entrevistados manifestam sobre o trabalho dos artistas de street art com marcas e empresas – ao nível de oportunidades e/ou conflitos que esptas possam representar, e as suas representações sobre o aproveitamento turístico da street art e o marketing das cidades.

Necessariamente, ao conjunto de questões que revolveram em torno destes tópicos foram acrescentadas as questões sociográficas necessárias (idade, naturalidade, ocupação). É ainda de salientar que, tratando-se de entrevistas a artistas, acrescentou-se ainda questões em relação ao seu trabalho específico, quer a nível das opções plásticas concretas, quer a nível da participação em eventos ou iniciativas. Houve sempre a necessidade, naturalmente, de contextualizar a entrevista previamente, com a informação que encontrasse acerca do artista, de forma a conseguir uma imagem mais completa, específica e densamente informativa da pessoa, da sua carreira e das suas obras. Diferentes foram os guiões das entrevistas elaboradas aos elementos de associações ou instituições que trabalhassem a área da street art . Neste caso não houve um guião de contornos comuns, sendo cada um especificamente direccionado para as actividades na street art a que os entrevistados estivessem ligados: projectos, iniciativas, perspectivas e discursos subjacentes a essas iniciativas, experiências particulares que destacaram, visões sobre o mundo da street art e o seu papel, sobre a sua relação com os artistas e outras instituições e projectos, entre outros aspectos. A listagem completa dos entrevistados encontra-se no Anexo A.

Finalmente, é importante acrescentar que, havendo guiões, os momentos de entrevista foram sempre fluidos, havendo inevitavelmente questões que foram acrescentadas, por se considerar pertinente aprofundar aspectos que surgiram inesperadamente, ou por vontade de clarificar outros. Se por um lado foi constante o sentido de que era necessário obter determinadas informações, sobre aspectos previamente estabelecidos, por outro lado esteve sempre presente a necessidade de não construir momentos de entrevista estanques, deixando que o próprio discurso dos entrevistados sugerisse direcções possíveis não só para a própria entrevista, como para o seu próprio discurso, como ainda para a pesquisa. Há neste processo a necessidade de atingir um certo equilíbrio, que se espera ter sido alcançado.