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Contextos e Práticas

5. Contextos de Produção

5.5. Wool on Tour e Lata

O Lx Factory é o resultado da reconversão de uma antiga fábrica em pólo de actividades criativas, agregando lojas de design, discos, arte, moda e joalharia de autor, bem como diversos restaurantes e bares, a par com escritórios. Cruzando os seus portões e caminhando pelas ruas que passam por entre os edifícios de tijolos vermelhos, é inevitável a observação das diversas peças de street art, do pequeno poster ao mural, que aqui são visíveis. Esta profusão visual partiu em parte da iniciativa da organização de um dos mais destacados festivais de street art em Portugal, o Wool.

Este é um projecto de street art singular no contexto português. Este projecto tem lugar na Covilhã, contando já com duas edições no seu curriculum. Porém, e no sentido em que este trabalho se debruça sobre a street art no contexto específico de Lisboa, é sobre outros dois projectos que, tendo origem no Wool, e tendo vindo a ser desenvolvidos em Lisboa, estabeleceremos como estudo de caso: o Wool on Tour e o Lata 65. No entanto, para os contextualizar, é relevante traçar os contornos deste festival na Covilhã.

O Wool – Festival de Arte Urbana da Covilhã consistiu em, durante uma semana, trazer quatro artistas - na primeira edição, dois portugueses e dois estrangeiros; na segunda edição, quatro portugueses - à Covilhã, cabendo a cada um elaborar um mural e, para além disso, uma sessão paralela, compreendendo um workshop ou palestra sobre o seu trabalho. Lemos no website que os seus objectivos são:

«trazer, pela primeira vez, um evento destas características para uma região do interior de Portugal; despertar o interesse da comunidade pela cultura e a arte contemporânea, neste caso, a arte urbana; dotar de uma nova aparência estética os locais intervencionados; e permitir a construção de um roteiro de arte urbana na cidade.»98

Este projecto partiu da iniciativa de Lara Seixo Rodrigues e do seu irmão, Pedro Seixo Rodrigues, conciliando o interesse de ambos pela street art e pela organização de eventos. Contando também com Elisabet Carceller na organização, a preocupação do colectivo é a de criar um festival que fosse específico para a Covilhã, estabelecendo diálogos e momentos de partilha com a população local dessa cidade. Ora essa intenção está expressa no próprio nome do festival, que simultaneamente se refere à indústria de lã e lanifícios (Wool), indissociável da história da cidade, e na referência à street art , remetendo o som da palavra para uma sua semelhante, Wall (parede, muro).

Com apoios da DG Artes e da Câmara Municipal da Covilhã, foi-lhes possível até ao momento a realização de duas edições, em 2011 e 2014, prendendo-se a sua concretização com a disponibilidade de recursos, dependentes dos apoios conseguidos.

A actividade de organização de eventos relacionados com a street art, por parte dos elementos da organização do Wool, não se resume a este festival local, havendo várias outras iniciativas com a sua

chancela: é o caso do Wool on Tour em Lisboa; a elaboração de um mural com sem-abrigo em Coimbra; um conjunto de intervenções na Figueira da Foz (a convite do Fusing); o Lata 65, workshop de teoria e técnicas de street art destinado a idosos – que abordaremos mais à frente; a curadoria da participação de artistas portugueses na iniciativa Tour Paris 13, na capital francesa; o Muraliza, evento de criação e elaboração de murais na cidade de Cascais (por iniciativa de Mário Belém); a participação no Creative Camp do canal 180; bem como as participações no festival Walk and Talk nos Açores e no Djerbahood na Tunísia, entre muitas outras iniciativas. Fundaram inclusive a associação Mistaker Maker, para conferir suporte formal a esta diversidade de actividades artísticas.

Relativamente aos projectos que têm lugar em Lisboa, o Wool on Tour surgiu em 2012, ano em que o Wool propriamente dito não se realizou na Covilhã por falta de apoios. Lara Seixo Rodrigues trabalhava em Lisboa, no espaço Lx Factory, e, vendo as potencialidades do espaço, propôs à direcção a criação de um evento com edições regulares, em que artistas de street art interviessem nas paredes desse espaço, antigo complexo fabril que agora aloja diferentes estabelecimentos, como referi, restaurantes, lojas de design, de roupa, de música e escritórios. Nas suas palavras:

«O Wool – portanto nós - fizemos a primeira edição em 2011. Em 2012 gostaríamos de a ter realizado mas os apoios pontuais não abriram, a Câmara [Municipal da Covilhã] não nos apoiou, e o que aconteceu… eu já trabalhava aqui no Lx Factory há dois anos, salvo erro, e andava a tentar convencê-los a deixarem-me fazer qualquer coisa e, finalmente, deixaram [...] O que nós criámos foi basicamente [o Wool on Tour]. Nós saímos da Covilhã e fomos criando formatos diferentes. Viemos para o Lx [Factory] como Wool on Tour, que está no Lx mas poderia estar noutras zonas – é o Wool ‘on tour’, literalmente.» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

Assim, o Wool on Tour consolida-se enquanto versão «mini» do projecto-mãe, o Wool da Covilhã, igualmente uma forma de manter em Lisboa uma actividade de produção e promoção de street art paralela a este projecto da Covilhã.

Ao momento foram realizadas 6 edições do Wool on Tour no Lx Factory, com trabalhos de artistas como Andreea Drugă (Roménia), Samina, Klit, Go Mes, Guillermo de Llera, David Antunes, Mariana Dias Coutinho, Tinta Crua, Uivo, Gemeniano Cruz, Tosco, Boardbrothers, Neberra, Kruella D’Enfer, André Fernandes Trindade, Akacorleone, Add Fuel, Gonçalo Mar, Bordalo II (Figura 5.10), The Caver, Mário Belém e Hugo Makarov (Figura 5.11), Mr Trazo (Espanha), Color Blind, Ram, Tamara Alves, João Cruz, Miguel Januário, entre outros.

Estas edições são acompanhadas de ‘open days’ para fomentar o contacto entre os públicos, os artistas e as suas obras, que têm transformado este espaço particular da cidade de Lisboa numa mostra diversa do trabalho de vários artistas ligados à street art e à arte contemporânea, num sentido mais abrangente. Também é interessante notar a especificidade do Lx Factory, um espaço intermediário, entre o público – porque é de acesso livre - e o privado – porque pertence e é gerido por uma entidade privada. A

iniciativa de trazer artistas de street art para intervirem neste espaço surge assim como forma de criação de simbiose entre a valorização de um espaço a aguardar atenção imobiliária e construtiva e a mostra de arte.

Figura 5.10 – Intervenção de Bordalo II no Lx Factory, no âmbito do Wool on Tour. Foto de Ágata Sequeira.

Figura 5.11 – Intervenção de Mário Belém e Hugo Makarov no Lx Factory, no âmbito do Wool on Tour. Foto de Ágata Sequeira.

No que diz respeito ao workshop Lata 65, outro dos projectos que Lara Seixo Rodrigues organiza, e ao qual se dedica aqui particular atenção, trata-se de um workshop de iniciação às técnicas usadas no

graffiti e na street art, com parte prática e com a preocupação em haver uma contextualização histórica desse tipo de práticas. Destinado a associações de ocupação de tempos livres ou a centros sociais, este workshop dirige-se especificamente a pessoas na 3ª idade99, e passa pela criação de um

tag e elaboração de trabalhos em diferentes técnicas, como o stencil, a pintura em spray, etc. A ideia para a sua criação derivou da experiência prática de interacção com a população idosa na Covilhã, aquando da primeira edição do Wool. Diz-nos Lara Seixo Rodrigues:

«O Lata 65 [inspira-se] muito naquilo que nós vimos na Covilhã, [com os] velhinhos, [e a] empatia natural que eles criaram com a arte urbana (...)» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

A ideia para o Lata 65 surgiu do conhecimento de um projecto finlandês, que consiste numa crew criada por uma assistente social, composta por idosos que mantêm uma actividade regular da prática do graffiti:

«Eu tinha [tido conhecimento de] um projecto que existe na Finlândia, que é uma assistente social que tem mesmo uma crew de graffiti mas que é uma coisa [com seguimento, não pontual], pinta todos os dias quase com eles. (...)» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

Com esta inspiração, juntamente com a prática do projecto Wool da Covilhã e Wool on Tour no Lx Factory, foram então traçados os contornos do workshop Lata 65: incluiria a participação de street

artists enquanto formadores para as diversas técnicas a abordar, bem como uma introdução teórica ao contexto social e histórico das práticas do graffiti e da street art. Daqui seguia-se para a introdução dos próprios idosos participantes às práticas, sendo eles a experimentar fazer, recortando stencils e manuseando as latas de spray. Lara relata-nos como esta experiência se desenrolou:

«Em 15 dias montámos o projecto todo [Lara e Fernando Mendes do Co-Work Lisboa], eu falei com uma série de artistas que também já tinham estado a trabalhar comigo nesse tempo no Wool on tour no Lx Factory.» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

Relativamente à escolha dos artistas, Lara afirma:

Escolhi-os pelas técnicas que eles usam – porque o workshop é mesmo… eu faço uma contextualização histórica, nada de muito extenso, mostro imensos projectos, imensos livros, imensas fotografias de coisas

99 Uma outra entidade, a Edge Arts, organiza também um workshop de street art , mas dedicado às crianças:

que são feitas. Usamos muito a base do festival também para mostrar isso.» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

Lara tem uma concepção de street art que transmite nestes workshops, pretendendo desmistificá-la e diferenciá-la de outras formas expressivas visíveis no espaço urbano:

«Para já para desmistificar logo à partida o que é arte urbana, que não é os tags e a sujidade que se produz nas cidades (...). Então começamos por aí (...). Primeiro criam um tag, cada um tem o seu tag. Desenham um projecto do tag, para eles perceberem o que é a desmaterialização do nome, depois têm um dia também de stencil. Depois têm um outro dia já de pintura mural… e para cada um destes dias convidei um artista específico para ‘especializar-se’ (se é que podemos dizer isto) nestas técnicas… e realmente foi muito bom, para já porque é a tal coisa, tens imensas expectativas e não tens expectativas de nada. Tu tens noção de que existem imensas limitações físicas - porque eles têm deformações ósseas – e de movimentação, mas por exemplo os stencils foram eles que os cortaram. Eles cortam com x-acto, eles cortam com tesoura, porque realmente percebem… motivam-se.» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

O momento-chave para a compreensão dos efeitos da prática de street art é bem expresso por Lara, acerca do grupo de idosos do workshop Lata 65:

«Quando eles passam para a parede… eu não consigo explicar isto… ao pôr-lhes um spray na mão é qualquer coisa de quase mágico, [...] ficam tipo miúdos e só querem pintar na parede.» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

As reacções que esse workshop suscita, da parte dos idosos, segundo Lara Seixo Rodrigues, têm sido muito positivas, reforçando a intenção de explorar o potencial pedagógico e de acção social que a

street art, através de iniciativas deste género, pode assumir e inspirar. Por outro lado, o workshop fomenta também a partilha entre quem pratica, os artistas, e um grupo de pessoas bem definido, que na maior parte das vezes não tem qualquer familiaridade com as práticas e significados que o graffiti e a

street art assumem, para além do que vêem nas ruas – e que, com Lara afirma, muitas vezes nem é

street art.

Há, portanto, dois aspectos a retirar: a vontade, neste contexto, por um lado, de desmistificar ideias de que o graffiti e a street art se prendem com vandalismo, e por outro, de construir através da partilha de conhecimentos momentos ricos de aprendizagem e estímulo para os idosos, com todos os benefícios que daí podem retirar para o seu bem-estar e qualidade de vida. Acompanhemos o relato de Lara sobre as horas que se seguem à prática de street art e às reacções que suscita nos participantes do Lata 65:

«Portanto, não sei se tem a ver com verem os netos fazer, ou os mais jovens fazer, se é porque é [visto como] um acto de ‘vandalismo’, há uma série de coisas… A directora do Centro Social de Alcântara dizia que ‘eles parecem miúdos’ quando chegam ao Centro. Vêm supercontentes a falar da experiência, que

fizeram isto e fizeram aquilo, que é uma coisa que não existe com as actividades diárias deles, o crochet, as cartas, o que seja. É uma coisa completamente diferente que os motiva.» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

O contacto com este conjunto de iniciados «séniores» permite a percepção da alteração de perspectivas e valoração social da street art face as outras imagens comuns em espaços graffitados:

«Depois tu ouves coisas que são muito fixes, veio um senhor que disse que quando estava ali não estava a pensar nas horas que lhe faltam para morrer,… ouves coisas muito engraçadas, por exemplo uma coisa de que eu gosto muito é o ‘finalmente percebo aquilo que eu vejo na rua’, que é uma coisa de que eu gosto especialmente. Gosto de tudo o resto mas gosto especialmente de perceber que estás a passar uma mensagem. E que estás a ensinar o que é bom e o que é mau. E realmente nota-se.» (Lara Seixo Rodrigues, Arquitecta; Programadora e curadora de eventos e workshops de arte urbana, 2014)

Merece destaque um dos intervenientes do Lata 65. Destes workshops nasceu também, inesperadamente, uma nova artista que tem intervindo nas paredes de Lisboa. Apesar de recusar esse epíteto de «artista»100, Luísa Cortesão (que assina com o nome *L), de 64 anos, depois de frequentar

um dos workshops do Lata 65, passou a conceber as suas próprias intervenções no espaço público, nomeadamente elaborando stencils, a que depois aplica tinta em spray para criar uma imagem na parede. Esta prática vem no seguimento do percurso pessoal desta médica reformada, não só ao nível do interesse e atenção que mantém há anos pelas práticas do graffiti e da street art , que fotografa, como numa certa habilidade na elaboração de figuras que advém dos ícones que concebeu para os computadores Mac, alguns anos antes101. Estas figuras, por serem estilizadas, são facilmente

transponíveis para stencil, mantendo uma identidade visual que torna o seu trabalho facilmente reconhecível como seu. Na verdade, foi um dos seus desenhos que acabou por se transformar no logótipo do workshop. Em relação à sua participação no Lata 65, e posteriores incursões por iniciativa própria, Luísa diz:

«E por causa disso [o Lata 65], (...) ‘olha, agora que estou reformada e tenho tempo, vou aprender.’ Cheguei lá e estava o Adres [street artist e formador] – eu faltei ao primeiro dia, que foi o de mexer nas latas, e não sei quê, e mostrar o que é que era graffiti, e essas coisas. Fui só ao segundo dia que era stencil. Bem, eu agarrei num papel e cortei uma bruxa para stencil, não é nada difícil para mim perceber o que é que é positivo e o que é que é negativo. E tirando um senhor que lá estava também na formação, e que era pintor de automóveis, e portanto sabia perfeitamente o que era um stencil, sabia o que era pintar com spray e sabia por exemplo o que era pôr uma letra num letreiro, e portanto para ele também foi muito fácil perceber que tipo de desenho é que resulta em stencil… eu recortei logo uma bruxinha e o Adres olhou para aquilo ‘ah mas isso é muito giro, tens de pôr isso na rua’ e eu disse ‘estás maluco!’. Bem, no dia seguinte

100 Inclusive, a sua página de facebook tem o nome de «*L is not an artist».

101 A que chamou de ‘colheres’, e que foram bastante populares, tendo sido publicados num artigo de uma revista

(...) eu resolvi fazer uma velhinha com o spray e o Adres e a Lara [Seixo Rodrigues] acharam muita piada… a Lara pediu-me esse stencil para fazer o logótipo do Lata. De vez em quando arranjo uns amigos que me querem fazer companhia e de vez em quando vou com a minha neta mais velha, que a mais nova fica muito ansiosa… mas sempre em sítios muito sossegados, onde não haja problemas… e com muito cuidado, nunca pôr nada em cima de azulejos, nunca pôr nada em cima de pedra lioz, só em superfícies que já estejam suficientemente degradadas ou já tenham camadas suficientes, para aquilo não ser muito agressivo. Agora, fugir à polícia, arrisco-me. Nunca aconteceu mas já quase que aconteceu» (*L, Médica reformada e street artist, 2014)

É, assim, interessante notar que, do que se pretendia com um workshop de orientação dos tempos livres de idosos, nasceu uma street artist com actividade frequente.

Sobre *L, Luísa Cortesão, tornaremos a falar nos capítulos seguintes, dedicados aos criadores de

street art em Lisboa, e cuja diversidade de perfis o seu testemunho também ilustra. Quanto ao Lata 65, tem suscitado interesse, tendo sido a organização convidada a participar em conferências sobre educação102 e gerontologia103. Também outras entidades e pessoas têm mostrado interesse

em conhecer mais sobre o projecto, tendo por exemplo Martha Cooper, a fotógrafa de graffiti, aquando da exposição em que participou na Underdogs, querido conhecer o projecto Lata 65 e, particularmente, Luísa Cortesão. Luísa tem aliás contribuído para a divulgação do projecto, nomeadamente no festival Walk and Talk, a que foi com Lara Seixo Rodrigues, e na segunda edição do Wool na Covilhã.