• Nenhum resultado encontrado

O Enquadramento da pesquisa

3. Um olhar sociológico sobre as expressões artísticas e de rua na cidade de Lisboa

3.2. Experiências artísticas com a efemeridade

«Há uma multidão transeunte que redescobre permanentemente a emoção da arte.» (Caeiro, 2014:304).

O aspecto efémero na arte parece intimamente ligado à sua contemporaneidade. Instalações de arte pública, graffiti, street art, eventos, happenings, performances, são acontecimentos de valia artística conotados com a vivência dos dias de hoje, e que, como nota Margarida Calado, «aparecem ligados a um clima de festa, de espectáculo, e muitas vezes de propaganda dos poderes que os patrocinam – políticos, municipais, económicos.» (Calado, 2012:180). No entanto, a história da arte efémera revela séculos de expressão de poder, através de mecanismos que tanto a aproximam de alguma da arte efémera contemporânea, como a afastam de outras práticas neste âmbito, com outros propósitos e objectivos.

As manifestações artísticas efémeras já aparecem registadas pela alta Idade Média, sendo na Idade Moderna, com o Renascimento, que a arte efémera se liga a um carácter assumidamente espectacular,

com origem em Florença e disseminação pelas monarquias da Europa. Em Portugal, entre casamentos reais, visitas diplomáticas e outros eventos de Estado, foram diversas as ocasiões em que se realizaram cortejos monumentais, com estruturas artísticas criadas propositadamente para a ocasião. De facto, a arte efémera pública surge entre o século XVI e os inícios do século XX associada a contextos comemorativos e diplomáticos, com a construção de arcos do triunfo, carros de aparato e alegóricos, fogos-de-artifício ou iluminações, entre outros elementos (Pereira, 2000).

No entanto, a questão da efemeridade na arte é totalmente reequacionada com todas as revoluções que na produção artística o século XX acolheu. A arte – e nomeadamente a pública – torna-se crítica, revelando um tremendo potencial de transformação social e de experimentação plástica. O seu potencial, enquanto expressão efémera, prende-se com uma maior «intensidade comprimida» por parte do artista (Phillips, 1998). Já não se subjugando à expressão pura dos poderes políticos, a arte urbana na sua «imaginação do aqui e agora» (Caeiro, 2014:398) revela na sua efemeridade um potencial expressivo ampliado, pois, argumenta Caeiro, «o que está em causa é a acção como projecto urbano, nesse palco privilegiado para esta actualização social que é a arte.» (Caeiro, 2014:398).

Arte como ética e não tanto como estética, portanto. Nesse sentido, ao cidadão são reconhecidas capacidades de construção de uma cidadania política que inclui necessariamente cidadania cultural e científica (Andrade, 2010:13). Ao indivíduo é imputado um poder transformador da sociedade em que vive, o que passa por tomadas de posição em relação à própria vida urbana, como nos diz Condesso:

«(...) como ser simultaneamente sujeito cultural e ser histórico situado, o homem não pode limitar-se a intervir no mundo económico, social e político em todos os âmbitos das relações de poder existentes no mero contexto da vida urbana pré-feita do local onde se reside, mas também tem de participar e tomar posição sobre o futuro e a qualidade de vida urbana, o que pressupõe uma intervenção permanente como sujeito cultural em termos da defesa do património, em questões ambientais e no plano da manutenção e afirmação de valores estéticos.» (Condesso, 2010:71)

Em Portugal, com o 25 de Abril de 1974 começam a surgir, em moldes democráticos, propostas de artistas e de críticos relativamente à forma e conteúdo das políticas culturais. A vontade de experimentar no espaço urbano o seu potencial de liberdade faz com que novas experiências artísticas aqui tenham lugar. A revolta do artista contra os formatos demasiado institucionais e constritores de fazer arte motivou a experimentação artística de âmbito, de certa forma, mais livre dos constrangimentos das instâncias habituais de legitimação, surgindo a rua como terreno propício a essa experimentação. O mote era aqui a livre expressão e o ímpeto participativo - criar em conjunto. Os anos imediatamente a seguir à revolução de Abril são de celebração e também de «debate sobre a função da arte e a sua relação com a urbanidade, num país à procura de um sentido para o seu desenvolvimento.» (Caeiro, 2014:112).

As dinâmicas criadoras colectivas aparecem também no teatro, com a companhia A Comuna, por exemplo, na música, com o GAC – Grupo de Acção Cultural, e na arquitectura, com os projectos SAAL – Serviço Ambulatório de Apoio Local.

Quanto às artes plásticas, os questionamentos que a classe artística faz em relação à sua actividade, neste contexto, despoletam uma série de acções de carácter efémero, nas ruas da cidade. Estas aparecem como novo território de criação artística, em contraponto ao espaço fechado da galeria e do museu. Paralelamente, à escultura monumental no espaço público contrapõem-se os murais, as experiências participativas que proporcionam o debate de ideias. A rua constitui-se então como habitat de uma arte em conquista da cidade e dos seus habitantes. Vejamos alguns exemplos de intervenções artísticas de carácter efémero que tiveram lugar no período pós-revolucionário.

Um exemplo deste tipo de intervenções artísticas do período pós-25 de Abril é a proposta do Grupo Acre39. Composto por Alfredo Queirós Ribeiro, Clara Menéres e Lima Carvalho, este grupo, no 1974

pós-revolução, interveio em Lisboa na Rua do Carmo, pintando padrões abstractos – operação levada a cabo de noite, e que surpreendeu os transeuntes na manhã seguinte (Caeiro, 2014 e Gonçalves, 1991). Também intervieram no Porto, na Torre dos Clérigos.

Um outro grupo de artistas, o PUZZLE40, propôs igualmente acções, não só em Lisboa como também no Porto, Viana do Castelo e Caldas da Rainha, com o objectivo de aproximar as populações à arte. Ainda no âmbito deste tipo de intervenções destinadas às populações locais, é de referir o acontecimento do grupo de artistas do Movimento Democrático de Artistas Plásticos, que reuniu na Galeria de Arte Moderna de Belém a 10 de Junho de 1974 os seus 48 membros – simbolizando os 48 anos de ditadura – tendo sido feito um painel com a participação de todos, numa «festa popular extraordinariamente concorrida, mal deixando espaço para a realização de um enorme painel, acompanhado por grupos musicais e teatrais.» (Gonçalves, 1991:119).

A vontade de incluir a participação popular esteve também patente em projectos que levaram artistas de Lisboa e Porto ao interior para pintura de murais, com resultados mais ou menos bem-sucedidos (Viseu e Évora, por exemplo). Estes momentos participativos também tiveram lugar nas festas do jornal Avante, onde eram mostrados os trabalhos de vários artistas.

Nesta altura, a cidade tornou-se palco de expressão em liberdade, num momento em que, para a criação artística no Portugal urbano, parecia ser a «vida a tomar protagonismo» (Caeiro, 2014:117). Este ímpeto de experimentação com a efemeridade foi, também ele, de pouca duração: «a partir de 1977, os muros são apagados, os governantes recolhem-se aos seus gabinetes, a intriga de bastidores sobrepõe-se à discussão franca, as comissões consultivas são afastadas.» (Gonçalves, 1991:117). A exposição em Belém «Alternativa Zero», organizada por Ernesto de Sousa, inspirado pela Fluxus de Joseph Beuys, incluiu performances no espaço público e marcou o fim do clima de performatividade da arte portuguesa dos anos 70 (Lopes, 2007).

39 O seu lema era, expressivamente, «Uma arte para toda a gente» (Caeiro, 2014:113).

40 Formado em 1975 e composto por João Dixo, Carlos Guerreiro, Albuquerque Mendes, Dário Alves, Armando

Azevedo, Graça Morais, Jaime Silva, Pedro Rocha, Pinto Coelho, Gerardo Burmester e Egídio Álvaro (Caeiro, 2014:114).

Na década seguinte, o enfoque da criação artística no espaço público passou do performativo para o escultórico, crescendo exponencialmente o número de esculturas públicas por todo o país, muito por iniciativa dos recentes poderes locais autárquicos democráticos, e decorrendo do facto de pouco haver em relação à promoção e preservação estatal do património artístico (Caeiro, 2014:125). Já na década de 90 do séc. XX, no campo da produção artística de âmbito efémero, foi lançada a iniciativa Lisboa’94 Capital Europeia da Cultura. Numa lógica de criação e revitalização de estruturas culturais no tecido urbano da cidade de Lisboa, houve peças de carácter efémero que demonstraram uma sensibilidade crítica ao espaço urbano, ilustrada por trabalhos como os de Fernanda Fragateiro ou Leonel Moura. Todavia, o destaque deste momento e acontecimento é a inauguração de uma lógica de

evento, cujo apogeu em Lisboa foi sem dúvida a Expo’98. A lógica de evento parece ser central no que diz respeito a muita da produção de arte no espaço público em Lisboa, lógica que persiste até ao momento actual.

Ao evento podemos associar um carácter de festividade e de efemeridade. Esta última permite abordar uma diversidade de públicos, também pela lógica de gratuitidade que a maior parte das vezes a acompanha. Simultaneamente, as diferentes escalas a que um evento de intervenção artística se pode propor permitem abordar aspectos particulares, ou geografias específicas do espaço público urbano. Retomando Bourdin (2005), o evento, onde diferentes actores estabelecem uma rede de relações, é uma forma de elaboração de contextos de produção de cidade, salientando o autor o seu papel de excepcionalidade face à vida quotidiana, da qual, acrescentamos, também depende o seu poder transformador.

Na passagem para o novo século, Lisboa foi palco de vários eventos de arte pública de marcada efemeridade, como Lisboa Capital do Nada (Outubro de 2001), Luzboa (2004 e 2006), performance urbana de luz; e Vicente (iniciado em 2011).

Lisboa Capital do Nada ofereceu importantes aspectos de reflexão. Este projecto juntou um conjunto de artistas na Freguesia de Marvila, na qual cada um propôs uma intervenção específica. Uma reflexão sobre o espaço público seria o tema central, que cada artista interpretou individualmente. Nas palavras do seu organizador, Mário Caeiro:

«Em suma, tratou-se de um debate intensamente vivido, sobre a construção da cidade e dos seus espaços, não menos que pura poesia total. (...) Foi um monumental exercício de contacto com a paisagem e a vida urbanas de um lugar, reagindo em particular às descontinuidades simbólicas e físicas da forma urbana.» (Caeiro, 2014:147)

O contacto e a interacção dos artistas com o lugar e com as pessoas que nele vivem foi, segundo Marta Traquino, mais bem conseguido por uns artistas do que por outros, em que uma «elegante estratégia conceptual» aparece como «sem intenção de vontade de conhecer o Outro» (Traquino, 2010:135). No entanto, a autora destaca a participação de Fernanda Fragateiro, que utilizou a sua intervenção para a construção e planeamento de um jardim que já havia sido iniciado por um habitante local:

«Consciente da margem de manobra institucional que o capital simbólico que detém lhe confere, a artista gere uma dinâmica de produção de espaço público em que os habitantes da cidade são chamados, por via da metodologia de desenho utilizada, a intervir.» (comenta a antropóloga Filomena Silvano cit. in Traquino, 2010:139)

O aspecto que ressalta destas experiências, dos anos 70 até à actualidade, é o potencial de construção de espaço público pela arte, nomeadamente através da relação que aquela permite estabelecer com os habitantes locais. Estimular públicos de arte, fomentar cidadania, estreitar a relação com o espaço urbano e entre as pessoas e partilhar conhecimento e estimular o diálogo são alguns dos efeitos positivos que uma intervenção artística no espaço público pode ter. Paralelamente, transformar o espaço público e os habitantes locais em elementos de experiências artísticas, impor objectos sem contextualização e sem a procura de diálogo e contacto directo são perigos sempre presentes nestas práticas.

Nesta linha de discussão, e como abordaremos a fundo no capítulo 5, alguma da street art que é produzida no contexto de Lisboa actualmente enquadra-se numa lógica de evento, nomeadamente de festival41. Esta lógica de evento aplicada à produção de street art revela a ligação entre os diversos

momentos de arte efémera que agora aflorámos e a street art.