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Percorrer a cidade: imagens e processos de recolha

O Enquadramento da pesquisa

4. Do enquadramento metodológico ao trabalho empírico

4.4. Percorrer a cidade: imagens e processos de recolha

Paralelamente às situações de entrevista, houve outros momentos de recolha de dados que também se revelaram adequados e boas opções para este contexto de investigação, no qual a cidade aparece como habitat da arte. Assim, para além da recolha audio dos momentos da entrevista, posteriormente transcrita e transformada em dados legíveis, foi igualmente importante a recolha de dados visuais57 e a

redacção de um caderno de campo58, no qual todas as observações relevantes, pensamentos e reflexões

que estas me sugerissem, interrogações e possíveis pistas de investigação futura foram registadas. Este caderno de campo, através das anotações que nele fui registando, acabou por ser muito útil nos momentos de decisão entre direcções que a pesquisa poderia tomar, ou aspectos a abordar em detrimento de outros. O facto de nele se exprimirem questões, dilemas e pensamentos sugeridos pelo olhar sobre o campo em estudo, fez com que não se perdessem as primeiras impressões - nunca virgens, porque o olhar do investigador dificilmente o é, mas espontâneas -, suscitadas pela observação de peças de street art (concluídas ou a serem elaboradas), de artistas e dos outros actores, bem como das pessoas que pelas ruas se cruzam e que fabricam o espaço público em articulação com estas expressões artísticas que o pontuam.

Procurei seguir o alerta lançado por Lyn Lofland, remetendo para Choldin, relativamente a uma certa «agorafobia» que nota nos cientistas sociais, que na sua observação parecem recear o espaço como potencial variável:

«Agoraphobia is defined as a fear of open or public spaces and of crowds. To say that sociologists suffer from it is, admittedly, to take some liberties with that definition because what I actually mean to convey here is the sociologists’ fear of the idea of space as a potential causal variable.» (Lofland, 1998:180) Se aqui não houve a intenção explícita de transformar o espaço numa variável causal, há a clara percepção de que as configurações que assume revelam, como vimos em capítulo anterior, relações e dinâmicas de poder, identidade, memória e interacção entre os habitantes e transeuntes da cidade. Assim, foi clara a necessidade de fazer incursões pelas ruas da cidade com o intuito de observar as peças de street art, tal como momentos de intervenção, assumido que estava o espaço público como elemento central desta pesquisa.

O acto de caminhar pela cidade enquanto opção metodológica, foi por João Teixeira Lopes salientado como permitindo traçar um retrato de proximidade da cidade, na medida em que permite ao investigador observá-la de dentro, através dos seus sentidos:

«O retrato da cidade que pretendemos sugerir tem (...) contornos de grande proximidade: olha-se para o lado, para cima, em frente, na medida dos nossos sentidos e na largueza do gesto. Completa-se o olhar

57 Pelo que a presença constante de uma pequena máquina fotográfica, tecnicamente pouco ambiciosa mas

competente no registo, se tornou indispensável no bolso da investigadora.

58 Marcando outra presença constante no kit de trabalho de campo, juntamente com o gravador digital, a máquina

fotográfica, o caderno de anotações bibliográficas e o e-reader (feliz invenção para leitura portátil de artigos e teses em formato digital).

com os odores que brotam da atmosfera circundante e com a sensibilidade táctil de quem toca, por experiência simultaneamente pessoal e social, as esquinas da cidade.» (Lopes, 2008, 72)

Este é o cerne da metodologia do andante (Lopes, 2008 e 2013), para a qual o acto de andar pelas ruas da cidade convoca o pensamento reflexivo, cria «poéticas práticas do espaço» e corresponde a uma aprendizagem intensa relativamente à interacção no espaço público urbano – simultaneamente, aquele que observa integra comunidades efémeras, no encontro com os outros (op.cit.). É, assim, de realçar o enorme potencial de compreensão e interpretação obtido através da observação estimulada pela incursão do investigador pelo espaço urbano, no sentido em que lhe permite desencadear um processo analítico de elaboração de relações entre as variadas facetas do objecto que se dão ao olhar deste

sujeito andante e falante. Remetendo ao texto de João Teixeira Lopes:

«Ora, caminhando, eis a proposta, prática e analítica, as identificações vão sendo forjadas de forma dinâmica, dialógica e multifacetada, em permanente relação e aprendizagem pela experiência – neste caso, a experiência de andar na e pela cidade, de conceber o sujeito andante como sujeito falante, que inscreve os seus passos na ordem da discussão, uma outra forma, afinal, de fazer lugar, ocupando os espaços vazios da cidadania.» (Lopes, 2008:79)59

Por esta via, para apreender a especificidade visual deste contexto, a street art de Lisboa, foram necessárias várias incursões pelas ruas da cidade, na medida em que desvendam aspectos desta cidade, que se mostra assim ao olhar do investigador segundo a perspectiva que aborda, num processo visualmente elucidativo. A questão do percurso, elucidada no referido texto de João Teixeira Lopes (2008), é também abordada por diversos autores, concretamente para o contexto de Lisboa. É o caso de António Firmino da Costa que, ao investigar o tecido específico do bairro de Alfama, revelador de dinâmicas sociais, refere também a sua visibilidade do exterior, nomeadamente concretizada através de visitas escolares, festivas ou turísticas, sendo estas últimas, quando organizadas por operadores turísticos, caracteristicamente orientadas sobre um percurso ‘histórico’ que se inicia nos miradouros das Portas do Sol ou de Santa Luzia, pelo bairro adentro até ao Largo do Chafariz de Dentro (Costa, 1999:52). Ou, num registo mais urbanístico, João Pedro Silva Nunes, na sua abordagem ao bairro Olivais Sul, nomeadamente na forma como o percurso que fez no autocarro 21 lhe permitiu a visualização de vários momentos da construção e planeamento da cidade de Lisboa, que se sobrepõem (Nunes, 2003:104). Ou ainda José Machado Pais, e as reflexões que a observação dos outdoors, em artérias de tráfego automóvel paralisado, lhe sugerem (Pais, 2009).

Para esta investigação, a elaboração de percursos pela cidade foi uma opção necessária. Andar a pé, para observar peças de cuja existência já estava informada - por ter visto imagens na internet ou em revistas e jornais, nalguns casos – ou para «descobrir» intervenções de cuja existência desconhecia, foi central num trabalho de pesquisa que se situa no seio desta problemática. Não houve uma intenção de

seguir uma lógica de aleatoriedade, mas de tentar, ainda que não exaustivamente, cobrir várias zonas da cidade de Lisboa, seja por via da informação recolhida previamente, seja por exploração.

Destas incursões resultaram centenas de fotografias que, se não documentam exaustiva e extensivamente a realidade da produção de street art em Lisboa, traçam um retrato da sua diversidade expressiva e de uso, constituindo boa parte do corpo de dados visuais em que esta investigação também se apoia.

Ver fazer

Em articulação com o trabalho de recolha e análise de relatos de entrevista, e com a metodologia andante, interessava ver fazer. Assim, destacam-se os vários momentos em que pude assistir à elaboração de pinturas, nomeadamente em contextos programados, legais. Estes momentos deram-se ou por mero acaso, em duas situações em que passava em determinados locais e reparei que estavam a acontecer intervenções, ou porque estavam agendadas e, previamente informada60, fui assistir; ou

ainda porque me foi indicado por artistas entrevistados de que iriam intervir, para eu poder assistir. Estes momentos foram naturalmente plenos de informações sobre a forma de trabalhar no espaço público, o uso específico das técnicas (nos casos presenciados, spray), a forma de transpor um desenho feito em papel para uma parede, e também, igualmente interessante, as interacções e sociabilidades

momentâneas que se formam entre os transeuntes e observadores, motivadas pela situação concreta da intervenção. Aqui noto o quão importante é o espaço imediatamente circundante ao da intervenção, que pode ser transformado temporariamente (através da colocação de grades ou fitas que delimitam o «espaço da intervenção» do «espaço da observação»), e que desta forma contribuem para criar situações de público que observa o que é, essencialmente, uma performance – independentemente de o artista ter ou não esse intuito.

Igualmente surpreendente e rica foi a constatação de que estes momentos por vezes atraem alguma atenção mediática, notando-se a presença de fotógrafos61 e também de entrevistadores para revistas.

Num momento em particular, sentiu a investigadora que integrava então uma pequena multidão de observadores de um momento de criação de street art, ainda que os olhares fossem diferentemente guiados - o que evidentemente sugere reflexões sobre a multidimensionalidade de um objecto que tanto assume formas de intervenção expressivas e artísticas de carácter anónimo e espontâneo, como de carácter performativo, totalmente exposto ao olhar de quem passa e ao registo mediático.

60 É de salientar a importância que as redes sociais e a internet têm na obtenção deste tipo de informação,

nomeadamente através de newsletters e páginas de facebook dedicadas à programação de street art – as dos próprios programadores e as das entidades e associações a elas ligadas. Não teria de todo sido possível apreender a quantidade de eventos e intervenções de street art que acontecem pela cidade de Lisboa se não fosse a atenção que foi direccionada à actividade dessas entidades através das redes sociais.

61 Com equipamento cuja dimensão e complexidade apontam para alguma profissionalização, ou intenção nesse

É no entanto irresistível convocar a noção de Goffman de encontro, particularmente do «encontro focado» (focus gathering), no qual os participantes estão organizados de forma a manterem entre si um enfoque partilhado da sua atenção (Goffman, 2011). Este aspecto foi explorado por João Pedro Silva Nunes no âmbito das dinâmicas de sociabilidade e de interacção que se criam em torno de um grupo de jogadores de cartas em espaço público urbano, e que envolvem os que assistem, os que passam e os que simultaneamente usufruem de outra forma desse espaço público:

«Entre les joueurs et l’assistance, les commerçants et les passants, s’établissent des échanges et des usages quotidiens de la rue qui transforment l’espace et le sens qui lui est conféré.» (Nunes, 2012:161) É central a noção de que estes momentos de atenção focada numa actividade que se desenrola no espaço público contribuem para o transformar, sendo também convocada no contexto desta pesquisa, relativamente às intervenções de street art que, por se desenrolarem em contextos legitimados – e portanto legais – permitem um público e consequentes situações de interacção e sociabilidades. Estes momentos deram assim origem a todo um conjunto de reflexões e direcções de pesquisa interessantes, que serão abordadas no capítulo 7.