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O Enquadramento da pesquisa

2. Cidade, Arte e Espaço Público: Ideologias, Conflitos e Possibilidades

2.2. Dinâmicas do espaço público urbano

Diz-nos Francesco Indovina (2002) que o espaço público é não somente fundador da cidade, mas é a própria cidade. É condição para a realização da vida urbana, espaço de identidade e de fartas conotações nas simbólicas pessoais e colectivas; e é lugar de socialização, sendo esta a dimensão que melhor exprime o carácter de imprevisibilidade e casualidade dos encontros, o que constitui a cidade (Indovina, 2002:119). Esta formulação, de que o espaço público é a cidade, é partilhada por Vítor Matias Ferreira (2004:168).

Sendo o espaço público urbano primeiramente um espaço social, de uma expressividade muito intensa, é um terreno fascinante para a sociologia pelas dinâmicas sociais que nele se desenrolam, nomeadamente as relações de poder que nele se conjugam e que podem ser expressivas em diferentes níveis de escala, do micro ao macro.

Vejamos de que forma o tema é aflorado por diferentes autores, abordando perspectivas que se debruçam sobre a construção social do espaço, a dualidade entre espaço público e espaço privado, os

35 Interrogação suscitada pela comunicação de Marta Traquino, «Paredes de Vidro», no âmbito da conferência

mecanismos segundo os quais as relações de poder são tornadas visíveis no espaço público, e a forma como este se constitui em lugar de encontro.

Espaço urbano como espaço de transformação

Como vimos, Lefebvre refere o espaço público como um artefacto histórico e social (Lefebvre, 2000). O autor propõe a imagem do espaço urbano como um «mil-folhas», no sentido em que nele se sobrepõem múltiplas dinâmicas sociais muito intensas. É uma produção social e construção social para a qual tanto a arte como as ciências contribuem (Guibentif, 2008:16).

A ideia de que o espaço é socialmente construído pode ser um dado adquirido, na sua fisicalidade, mas a organização e o significado do espaço é o resultado de uma tradução, transformação e experiência sociais (Soja, 1994:80). Sobre estas dinâmicas transformativas da espacialidade, Soja considera-as em permanente transformação, segundo a sua interpretação materialista do espaço:

«Spatiality exists ontologically as a product of a transformation process, but always remains open to further transformation in the contexts of material life. It is never primordially given or permanently fixed.» (Soja, 1994:122)

Segundo a argumentação de Soja, a noção de espacialidade compreende os seguintes aspectos: por um lado, a espacialidade é reconhecível e substanciada, incorporando os espaços físicos e psicológicos, e por outro, é um produto social, simultaneamente meio e resultado da acção social e das inter-relações. Está-se assim perante uma estruturação espácio-temporal da vida social que define a forma como a acção social e as relações se concretizam, num processo problemático, conflituoso e contraditório. Tais contradições advêm da dualidade do espaço produzido como produto e como meio. Para Soja, então, a espacialidade concreta é uma arena de luta sobre produção e reprodução de práticas sociais que pretendem a transformação ou manutenção dessa espacialidade; a vida social está enraizada simultaneamente em contingências espaciais e temporais/históricas. (Soja, 1994:129-130).

Uma das formas de estudar o urbano seria, segundo Sharon Zukin (1996), a economia simbólica (a outra, a economia política, referente às condições materiais dos grupos). Com esta proposta, Zukin pretende ilustrar a relação que existe entre cultura e poder, as relações entre representações dominantes da cidade, pela arquitectura, pelo design urbano e pela publicidade, pelo ‘direito à cidade’ (na expressão de Lefebvre, 2012), e pela inclusão e exclusão de certos grupos da sociedade urbana:

«The ambiguity of urban form is a source of the city’s tension as well as of a strugle for interpretation. To ask ‘Whose city?’ suggests more than a politics of occupation; it also asks who has the right to inhabit the dominant image of the city.» (Zukin, 1996:81)

A esta economia simbólica estariam subjacentes dois sistemas de produção: a produção de espaço, através de investimentos de capital e significados culturais, e a produção de símbolos, enquanto moeda de troca para as trocas comerciais e a linguagem da identidade social.

Abordemos então de que forma os processos de produção social do espaço podem ser manifestos nas cidades contemporâneas, nomeadamente nas diversas formas de espacialização das relações de poder no espaço público.

Liz Bondi (2005) apontou, por exemplo, o género que, enquanto aspecto ubíquo e inerente à vida urbana, influencia as várias dimensões da vida urbana e constitui um eixo de desigualdades. Isto é, ao passo que o género pode ser encarado como parte de uma identidade pessoal, pode também ser abordado como um princípio organizador das sociedades, existindo exteriormente e precedendo as experiências e actividades dos actores. O género pode ser encarado como uma relação social, sendo o tecido urbano chave na forma como o género e as desigualdades são espacializados:

«Approaching gender as a social relation localizes gender outside the bodies of individual human subjects, in the environments women and men inhabit and within the organizing principles underpinning the development and evolution of these environments. In this sense, gender is something encountered ‘out there’ in the course of everyday lives and transcends the identities and practices of individual men and women.» (Bondi, 2005:9)

Acerca das questões de género no espaço público, também Malcolm Miles (1997) aborda esta questão, ao referir a exclusão do género do discurso arquitectural, quando associa o próprio desenho das cidades a noções de ‘ordem’ utópicas e às quais estão necessariamente subjacentes efeitos de exclusão fortíssimos.

Outra forma de desigualdade que é flagrante no espaço público é a étnica. Wilbur Zelinsky (s.a.) concebeu o conceito de «paisagem étnica», referindo-se ao facto de a imagem das cidades (sobretudo das ocidentais, nas quais confluem pessoas das mais diversas proveniências) resultar da interinfluência de diferentes culturas que nela convivem. Já Dolores Hayden destaca o conceito de «paisagem vernacular», sublinhando a ideia de que precisamente o quotidiano e todas as influências culturais dos indivíduos que habitam nas cidades é o aspecto que as torna únicas:

«The beauty that we see in the vernacular landscape is the image of our common humanity, hard work, stubborn hope and mutual forbearance striving to be love. I believe that a landscape that makes these qualities manifest is one that can be called beautiful.» (Hayden, in Zelinsky, s.a.:37).

José María Cardesín (s.a.) também abordou este tema da forma como o espaço é estruturado pelas instâncias de poder, considerando que a organização coerciva do espaço foi a base do desenvolvimento de políticas de memória expressas no espaço público urbano, numa certa ‘cenografia do poder’, do estado e das elites. Porém, ao longo da história das cidades, a população não se resumiu a um recipiente passivo destas práticas de poder, quer qualificando-as e limitando o seu uso, quer questionando-as abertamente em momentos de crise, e reinterpretando as ideias políticas dominantes subjacentes a esses ‘objectos cénicos de poder’ para os adaptar aos seus fins. Um bom exemplo é o da polémica estátua de Franco, em Ferrol, Espanha, ou a ocupação de praças públicas como forma de protesto político.

A cidadania assume-se assim como a capacidade de reinventar e modificar o território, sendo o espaço público o lugar que contém a possibilidade de interacção. A cidade, aliás, acumula camadas históricas dessas intervenções, perceptíveis na geografia dos seus espaços públicos.

Espaços públicos e espaços privados

Para Michel Foucault (in Traquino, 2010; Soja, 1994), se a obsessão do séc. XIX havia sido a História, a da actualidade seria o Espaço. A experiência humana constrói-se da vivência num espaço heterogéneo e relacional, de diversas configurações de experiências e relações que influem sobre o pensamento e acção dos indivíduos. Destes ‘espaços’ que se multiplicam (o privado, o público, o familiar, o laboral, etc.), o espaço público é particularmente expressivo de oposições, contrastes, relações de poder: «Space was treated as the dead, the fixed, the undialectical, the immobile. Time, on the contrary, as richness, fecundity, life, dialectic.» (Michel Foucault cit. in Soja, 1994:4). Foucault chamou a atenção para a importância dos fenómenos espaciais como objecto de estudo, sendo o espaço, numa época de simultaneidade e justaposição, heterogéneo e palco de um conjunto de relações (Foucault, 1984).

É neste sentido que Edward Soja desenvolve o conceito de terceiro espaço, que reúne os aspectos históricos, sociais e espaciais do espaço público, englobando em simultâneo a sua dimensão real e imaginada (Soja: 1994).

Paralela à noção de espaço público é a noção de espaço privado, definido como aquele que não está sujeito à influência directa do estado e o que remete para os fins pessoais, distintos do bem público (Turner, 2002). É nesta dualidade público/privado que Habermas desenvolveu a sua noção de esfera

pública, como sendo criada simultaneamente dentro e fora da sociedade civil:

«A esfera pública baseia-se (1) numa noção de bem público como algo distinto do interesse privado; (2) em instituições sociais (como a propriedade privada) que possibilitam aos indivíduos participar de forma independente na esfera pública, visto as suas subsistências e o acesso a elas não estarem dependentes do poder político ou de um patrono; (3) em formas da vida privada (nomeadamente as famílias) que preparam os indivíduos para agir na esfera pública como sujeitos críticos e racionais autónomos.» (Turner, 2002:468)

Para Habermas, a esfera pública funciona como espaço de mediação entre o sistema político e os sectores privados e os sistemas de acção. É assim que, na perspectiva deste autor, as estruturas comunicacionais do espaço público devem ser mantidas intactas, para que uma sociedade civil activa seja possível (Martuccelli, 1999:357).

A noção de esfera pública aparece, para Hannah Arendt (2001), intimamente ligada ao trabalho: é o espaço construído pelo trabalho e no qual tem lugar o mercado de trocas: «Este mundo (..) tem, antes, a ver com o artefacto humano, com o produto das mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem.» (Arendt, 2001:66). É também lugar de encontros e reunião.

Para além da distinção entre público e privado, há ainda autores que distinguem entre espaço público e espaço colectivo: para Antoni Remesar e Fernando Nunes da Silva, espaço público é

«(...) aquele que, sob o ponto de vista do seu uso pelos cidadãos, não é percebido facilmente como espaço privado. É óbvio que uma boa parte destes espaços não são, numa perspectiva urbana, públicos. São espaços que denominaríamos ‘colectivos’. De titularidade privada e regidos pelas normas de uso do proprietário são, não obstante isso, espaços abertos à sua utilização por parte do cidadão.» (Remesar e Nunes da Silva in AAVV, 2010:91)

Autores há que identificam na contemporaneidade uma crise no espaço público, que associam ao movimento simétrico de maior enfoque ao espaço privado, e nas consequências que daí podem advir para a vida em sociedade numa cidade. É o caso de Richar Sennett, que considera que esse movimento não é isento de profundos efeitos para os indivíduos urbanos:

«Because an urban society which has a public geography has also certain powers of imagination, the devolution of the public and rise of the intimate have a profound effect on the modalities of imagination which prevail in that society.» (Sennett, 1992:41)