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Posicionamento da investigadora perante o objecto

O Enquadramento da pesquisa

4. Do enquadramento metodológico ao trabalho empírico

4.2. Posicionamento da investigadora perante o objecto

Importa agora clarificar a postura metodológica subjacente a este trabalho, e que, por crucial que seja a influência da perspectiva etnográfica – com um olhar «de perto e de dentro» (Magnani, 2002:11) - e da convocação de uma necessária multidisciplinaridade, faz dele um trabalho de cerne sociológico. Uma primeira construção do problema disciplinar e metodológico é a formulada por Gilberto Velho:

«no meu entender, uma das razões para este estado de coisas é uma certa preocupação bizantina entre o que seja uma investigação ‘sociológica’ e uma ‘antropológica’ (...). Essa preocupação em marcar áreas exclusivas ou compartimentos estanques pode dificultar muito o estudo da sociedade urbana que, pela sua complexidade, exigirá o concurso de diferentes tradições de trabalho.» (Velho, 1989:11)

O autor considera que procurar estabelecer linhas demarcadas entre o que é sociológico e o que é antropológico, numa pesquisa que tem como palco o meio urbano, é profundamente artificial, interessando essencialmente a adequação das metodologias e técnicas, e não a sua proveniência académica.

A postura geral subjacente a este trabalho remete para o que Pierre Bourdieu (2001) designou por

objectivação participante, e que distingue da observação participante, que contempla a participação do investigador no grupo que pretende analisar, com vista ao seu melhor entendimento. A objectivação participante, segundo a formulação deste autor, propõe a ruptura dos aspectos subjectivos de proximidade com o objecto, que são precisamente os que poderão estar na base da escolha desse objecto como campo de estudo:

«A objectivação participante, sem dúvida o cume da arte sociológica, por pouco realizável que seja, só o é se se firmar numa objectivação tão completa quanto possível do interesse a objectivar, o qual está inscrito no facto da participação, e num pôr-em-suspenso desse interesse e das representações que ele induz.» (Bourdieu, 2001:58)

Esta postura neste caso implicou, por exemplo, pôr de lado qualquer apelo estético pessoal que alguma

street art teria para a investigadora, em detrimento de outra, ficando as considerações estéticas para o âmbito da análise que delas fazem os actores envolvidos na sua produção, ou os aspectos técnicos com ela relacionados, nomeadamente as condições que permitem a um artista construir um trabalho mais ou menos elaborado. Também o facto de não ter qualquer ligação a nível de vivência com a cultura do

graffiti e as práticas da street art facilitou uma abordagem deste género, já que não havia uma camada de vivência pessoal e de relações de longa data que pudesse ter de objectivar no âmbito da pesquisa, e que entrasse no âmbito da desconstrução de determinantes pessoais e da identidade da própria investigadora. Assim, é pertinente a observação de Gaston Bachelard, para quem a questão da objectivação se desenrola ao nível psicológico, com ferramentas que são as que constituem uma forma de pensar essencialmente científica:

«C’est vraiment la pensée scientifique qui permet d’étudier le plus clairement le problème psychologique de l’objectivation.» (Gaston Bachelard, 1999:18)

Sendo «objectivar (...), conferir a si mesmo os meios de reintroduzir na análise a consciência dos pressupostos e dos preconceitos, associados ao ponto de vista local e localizado daquele que constrói o espaço dos pontos de vista.» (Bourdieu, 2001:52), o desafio que esta perspectiva colocou foi a de constante ruptura com a própria tentação da investigadora em colorir a sua observação com pressupostos ideológicos sobre o papel que consideraria que a street art poderia ter, ou também sobre o papel que os diversos intervenientes poderiam assumir. Decerto, não se trata de eliminar qualquer ímpeto valorativo por parte da investigadora, mas de ter consciência da sua existência e objectivar o seu papel na pesquisa – isto é, na formulação de C. Wright Mills:

«Não há forma pela qual qualquer cientista social possa evitar a escolha de valores e considerá-los implícitos ao seu trabalho como um todo. Os problemas, como as questões e as preocupações, relacionam-se com as ameaças aos valores aceites sem cujo reconhecimento não podem ser formulados claramente.» (Mills, 1979:192)

Transversal a todo o trabalho da presente pesquisa foi um constante movimento de «familiarização e estranhamento», não sendo esta portanto isenta de desafios da proximidade, remetendo para o trabalho de Gilberto Velho (2003). Se no início da pesquisa o universo da street art me era desconhecido, para além de um reconhecimento visual da presença dessa forma expressiva e artística, fruto de uma vivência urbana quotidiana, os primeiros momentos da investigação foram de familiarização com este universo, para além dessa superficialidade do mero «reconhecimento».

«O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido.» (Velho, 1987:126)

Pesquisando bibliografia sobre o tema, explorando websites, blogues e páginas de artistas, bem como através das primeiras entrevistas, foi sendo construída uma familiarização um pouco mais profunda sobre a street art, bem como sobre os discursos de quem a faz. Porém, o que começou como um processo de familiarização desenvolveu-se, nas direcções que as múltiplas questões que a observação, reflexão e a recolha de testemunhos me levaram. Foi assim necessário um movimento de distanciamento em relação a essa «familiaridade» inicial, que, como tal, vinha acompanhada de primeiras hipóteses e pressupostos que assumi numa primeira instância e que senti necessário questionar. Este aspecto, o da consciência do investigador de que o seu ponto de vista não é imparcial, é apresentado por Gilberto Velho como sendo uma característica do processo de produção de conhecimento científico sobre a sociedade:

«A “realidade” (familiar ou exótica) sempre é filtrada por determinado ponto de vista do observador, ela é percebida de maneira diferenciada. Mais uma vez não estou proclamando a falência do rigor científico no estudo da sociedade, mas a necessidade de percebê-lo enquanto objectividade relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa.» (Velho, 1987:129)

Nesta investigação, um destes pressupostos foi a impressão, num momento muito inicial deste processo de familiarização, de que a street art era «essencialmente» uma forma expressiva de subversão, de reclame do espaço público, de carácter sobretudo individual, anónimo e subterrâneo. Esta é uma ideia recorrente sobre o tema, e ilustra de facto um aspecto indissociável à street art e à sua génese. Porém, analisando a realidade de Lisboa, o problema começou a parecer francamente mais complexo. A diversidade dos actores envolvidos na sua produção acabou por revelar uma constelação de perspectivas que, interligadas, acabaram por ilustrar como a street art, mais do que uma intervenção de subversão anónima, pode afinal constituir também um veículo expressivo para diferentes formas de pensar o espaço público, e o papel que a arte pode nele ter.

Há aspectos da metodologia etnográfica – em particular a que se dedica às pesquisas em contexto urbano – que revelam formas diversas de recolha de dados na especificidade deste contexto de

pesquisa. Uma delas, e que se procurou ter em conta durante o trabalho de campo, é o que Manuel Delgado (1999) destaca do trabalho de Colette Pétonnet («L’Observation flottante»), a observação

flutuante. Esta consiste em:

«(...) mantenerse vacante y disponible, sin fijar la atención en un objeto preciso sino dejándola ‘flotar’ para que las informaciones penetren sin filtro, sin aprioris, hasta que hagan su aparición puntos de referencia, convergencias, disyunciones significativas, elocuencias...,de las que el análisis antropológico pueda proceder luego a descubrir leyes subyacentes.» (Delgado, 1999:49)

A pretensão de que as informações «flutuem sem filtro» não é realista, mas é um bom ponto de referência para o tom a que este texto deve aspirar. Uma das concretizações técnicas desta metodologia é a elaboração de um caderno de campo, também adoptado no âmbito desta pesquisa, com anotações várias, desde observações a questionamentos e interrogações que o terreno suscitou, mostrando assim ser um valioso recurso nos momentos de opção entre várias direcções para a pesquisa. Também as «histórias de pesquisa» (Costa, 2001) foram registadas neste caderno de campo, para a eventualidade de revelarem detalhes ou pistas de investigação importantes. A título de exemplo, uma entrada registada no caderno de campo algumas horas antes de um encontro marcado com uma dupla de street artists, descreve a observação de funcionários da Câmara Municipal de Lisboa a preparar os painéis da GAU na Calçada da Glória, e o ambiente físico em seu redor:

«Chego à Calçada da Glória pelas 14h35 e decido ficar pela zona e observar. Os painéis que habitualmente vejo cobertos de pinturas coloridas estão neste momento a ser pintados de branco. Tinta branca cobre os painéis e prepara-os para uma nova mostra de arte urbana. Fotografei os dois funcionários da Câmara que procediam a esta tarefa. Não deixa de ser um pouco insólito vê-los pintar os painéis de branco enquanto ao seu lado passava o eléctrico coberto de tags de várias cores, e estando igualmente as paredes da rua cobertas destas grafias. O gesto destes homens, que pintam de branco uns painéis montados na rua, é o de preparação de um lugar legitimado para a exibição de arte urbana. Ainda que rodeado de intervenções espontâneas e informais. Aqui é delimitado um espaço claro onde é permitido pintar, onde a arte urbana pode ser exibida – os painéis -, e um espaço onde não é legítimo intervir – as paredes, o eléctrico. Mas as marcas do acto de intervir na rua persistem, legítimas ou não, permitidas ou não. No entanto, a presença destes painéis acaba por estimular, inadvertidamente, a presença dos tags em seu redor. Será este um movimento de «aproximação», ainda que meramente física, a um tipo de qualidade estética e complexidade que a arte urbana presente nos painéis tem e os tags não mas os seus autores poderão aspirar, ou, por outro lado, um comentário adverso a esta distinção entre lugares legítimos ou ilegítimos – ou ainda, à tentativa de participação de uma entidade pública num campo que sempre foi espontâneo e da rua?» (Caderno de Campo, Lisboa, 18/03/2013)

A observação descrita neste trecho do caderno de campo deu origem a todo um conjunto de questionamentos, nomeadamente sobre esta convivência entre street art legítima e práticas informais ligadas ao graffiti, e nos efeitos que desta poderão resultar, bem como a forma como os actores que a

produzem – os street artists – lidam com esta aparente ambiguidade, e como concebem o papel de uma instituição como a Câmara Municipal de Lisboa na sua prática de street art. O desenvolvimento destas reflexões foi também possível pela inclusão no guião das entrevistas de um conjunto de questões que as permitiram explorar junto dos actores. A presente entrada descreve um momento que associo a uma introdução visual à complexidade do tema da street art no espaço público urbano de Lisboa, nas suas ambiguidades e na diversidade de actores envolvidos, dos artistas às entidades. Em Sidewalks, a propósito da pesquisa acerca dos vendedores de rua do bairro nova-iorquino de Greenwich Village, Mitchell Duneier apontou que o que pode ser a maior vantagem da observação directa e desse modo de recolha de dados, pode também ser a sua maior desvantagem: quanto maior é o detalhe da informação que é recolhida junto dos actores, maior é o risco de essa informação se tornar distractiva em relação aos factores de âmbito mais macro social que, sendo menos visíveis para os actores, têm um papel preponderante nas suas vidas, práticas e representações (Duneier, 1999:10). Se o conhecimento antropológico se estrutura em torno da micro escala do quotidiano e do contacto pessoal entre o observador e o observado (Agier, in Cordeiro, 2003:15), a uma pesquisa sociológica é também incontornável a ligação ao nível macro da realidade social, transversal ao quotidiano à escala da interacção humana, e fundamental para contextualizar as teorizações sobre os espaços urbanos concretos, não se desprendendo dessa realidade concreta:

«Une bonne manière de nous redonner la possibilité de parler de la ville consiste donc à nous placer au plus près des ‘pratiques microbiennes, singulières et plurielles’ des citadins.» (Agier, 1999:9)

A etnografia urbana é uma perspectiva valiosa no sentido em que se propõe «descobrir estas novas modalidades de relação entre o local e o distante» (Cordeiro, 2010:120). Neste sentido, os indivíduos aparecem como «intérpretes de mapas e códigos socioculturais, enfatizando-se uma visão dinâmica da sociedade e procurando-se estabelecer pontes entre os níveis micro e macro.» (Velho, 2003:16). Deste modo, nesta pesquisa pretendo construir a street art enquanto objecto segundo uma perspectiva da sociologia urbana e da arte, partindo dos discursos dos diferentes actores que estão ligados à produção desta forma expressiva e artística no contexto urbano de Lisboa – artistas, agentes mediadores, produtores, entidades e instituições -, e dos significados que lhe conferem. Sendo actualmente a produção de street art um mundo de crescente complexidade, é necessário ter em conta a diversidade e especificidade dos diferentes campos de actuação destes actores, bem como a forma como se relacionam entre si. Será assim possível situar a produção de street art na intersecção destes diversos âmbitos de actuação, desde o que remete para a iniciativa expressiva dos artistas, até ao planeamento urbano, ao marketing comercial e das cidades, e ao mundo da arte e seus mercados.