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A produção de street art em Lisboa: percurso para a construção de um objecto de análise

O Enquadramento da pesquisa

3. Um olhar sociológico sobre as expressões artísticas e de rua na cidade de Lisboa

3.4. A produção de street art em Lisboa: percurso para a construção de um objecto de análise

O primeiro contacto com a street art deu-se, muito simplesmente, com a vivência quotidiana na cidade, com o caminhar pelas ruas e com a frequência, diurna e nocturna, dos seus espaços públicos:

posters, stickers, cutouts, stencils, e murais coloridos de estilos variados que, apesar de aparente afinidade, já não pareciam conotar-se totalmente com os graffiti que a cidade há muito apresentava nas suas paredes. Este universo material sugeria uma intenção diferente, já não a de espalhar o nome, mas a de comunicar uma mensagem a um público mais geral que o dos iniciados no graffiti, e de expressar com intuito artístico, de formas e técnicas mais diversas do que o aerossol e a intrincada elaboração de

letterings. Começaram a surgir questões de forma natural, nomeadamente: quem seriam os actores responsáveis por estas formas de expressão? Que relação haveria exactamente com o graffiti, já que parecia aparente que tal relação existia? Em que medida os mundos do graffiti e da street art se

sobrepõem – e o que é que os distingue? Que intenção subjaz à prática de street art? Que sentidos atribuem os actores a essa prática?

Entretanto, numa de tantas incursões ao Bairro Alto, ao subir a Calçada da Glória, notando pela primeira vez os painéis que haviam sido colocados, em que cada um exibia um tipo de pinturas em aerossol, coloridas e com temas variados, perguntei-me se isto seria apenas um possível resultado de uma prática de graffiti sem condicionantes de tempo e de questões legais – e, portanto, com a possibilidade de ser mais elaborado e exploratório. Por outro lado, surgiu a interrogação sobre o que poderia estar na origem da decisão de colocar placas de mdf, como que inventando um contexto expositivo em moldes rígidos mas no contexto mais fluido da vivência e circulação do citadino, a rua. Questões sobre o que esta iniciativa poderia dizer sobre as relações de poder no espaço público e sobre como poderia indiciar uma forma das instituições tentarem controlar o imprevisível e o espontâneo, foram surgindo.

Igualmente me indaguei sobre os públicos a se poderiam dirigir estas intervenções – se seriam os transeuntes, as comunidades locais, os turistas, o mundo da arte ou os próprios artistas.

Esta observação inicial suscitou ainda um questionamento sobre se haveria um conceito próprio de

street art assumido pela instituição municipal, o qual poderia ou não corresponder às práticas espontâneas nesse sentido. Ainda do lado do papel das instituições, perguntei-me qual seria para estas o potencial da escala da pintura mural – opção para a produção de street art cada vez mais visível em Lisboa – para a construção de uma imagem de cidade, conscientemente curada.

Paralelamente, relativamente ao ponto de vista dos praticantes de street art, surgiu a questão de como seria elaborada a gestão das diferentes e aparentemente vastas formas de expressão artística ao seu dispor, sobretudo em relação à diversidade dos contextos destas práticas, quer legais quer ilegais. As consequências que as opções que os artistas de street art fazem, e a forma como é construído um percurso artístico pessoal - havendo hipoteticamente essa intenção – foi outra interrogação que a observação inicial suscitou.

Com o aumento exponencial de iniciativas de street art em Lisboa, em contextos legais e em escalas cada vez maiores – e, paralelamente, com a abertura de uma galeria a ela dedicada, e com variadas exposições sobre street art – a última questão que referenciei começa a tomar contornos um pouco mais abrangentes. Nomeadamente, que relação pode haver – à primeira vista parecia mesmo haver uma – entre a street art e o mundo da arte contemporânea, com as suas instâncias de consagração, mercados e contextos expositivos e de circulação alargada? Dois momentos contribuíram para estas questões: numa fase inicial do percurso da pesquisa, a visita à exposição d’Os Gémeos no CCB51, por

mostrar o trabalho de street artists num contexto expositivo não apenas de interior, mas sobretudo com um considerável «peso» simbólico; e em fase posterior, a exposição de Vhils no Museu da

Electricidade52, momento marcante para a visibilidade de um artista de street art português. Ambas

acabaram por dar origem a um dos aspectos centrais desta tese de doutoramento, ao ilustrarem a presença cada vez mais assídua de artistas de street art em museus.

A própria designação do objecto de pesquisa representou um desafio: os termos que são usados para definir este fenómeno artístico das ruas formam uma constelação tão complexa como variável. Street

art, arte urbana, graffiti, pós-graffiti, arte de rua, neo-muralismo… não sendo termos equivalentes são por vezes usados de forma difusa, sugerindo por um lado um aspecto que é característico de um mundo artístico em constituição e, por outro, uma divergência lexical que parece advir com as práticas artísticas no espaço público53.

Algumas dessas expressões foram já discutidas e definidas neste texto; outras, como arte de rua e neo- muralismo, parecem pecar por não serem suficientemente abrangentes, ou por sugerirem direcções que não as que estão em causa no fenómeno. Foi longa, durante o processo de pesquisa, a oscilação entre os termos street art e arte urbana. Se por um lado não pretendia utilizar uma expressão em inglês se tivesse o seu equivalente em português, eventualmente apercebi-me de que não seria o caso entre estas duas: o que define primeiramente esta expressão artística é o seu carácter de rua, sendo o nível da rua que a expressão correspondente deveria ilustrar – street art; por outro lado, «arte urbana» parece sugerir outras expressões que também na cidade tenham lugar, não me surgindo como tão específico. A opção por utilizar a expressão street art foi portanto instrumental e não isenta de alguma subjectividade. A elaboração teórica aqui subjacente perspectiva, portanto, a conceptualização e configuração em torno da definição, e vem conferir-lhe objectividade.

No entanto, a opção pela formulação «street art» atraiu novas questões, sem dúvida ricas para esta pesquisa, como por exemplo: quando artistas de street art expõem num museu, as peças que exibem são street art? A questão será desenvolvida no capítulo 10, mas fica aqui a sua referência para ilustrar como a escolha de uma expressão em detrimento de outras acarreta questões particulares, sendo uma parte importante no processo de investigação e fundamental no sentido da construção ideal-típica dos conceitos sociológicos.

Prática com diferentes expressões – do legal ao ilegal, do pequeno poster ao mural em grande escala, da rua à galeria e ao museu – a street art é também prática em que a diversidade de quem faz é aparente. Tornou-se então também objectivo desta investigação saber quem são os artistas da street art de Lisboa, não com objectivos exaustivos, já que a pesquisa quantitativa nunca foi orientação que considerasse adequada para esta pesquisa, mas com uma vontade de ilustração qualitativa desses perfis. A grande questão inicial para este aspecto foi a seguinte: Haverá uma cultura subjacente às práticas de street art ? O que têm as pessoas que a fazem em comum, em relação aos seus perfis, objectivos, opções plásticas, etc.? O que têm de diferente? Como se posicionam?

52 Exposição Alexandre Farto aka Vhils: Dissection, Museu da Electricidade, de 05/07 a 05/10/2014. 53 Semelhante de certo modo às discussões e desencontros em torno do tema da arte pública (Sequeira, 2008).

Autores há que incluem a street art num conjunto de práticas que revelam «alteridades artísticas urbanas marginais» (Pedro Andrade, 2010), de natureza efémera e autónoma, distinta portanto da «arte pública legítima», apoiada pela administração central ou local, ou pelo sector privado. Em contraponto, a observação da diversidade de contextos de produção em que a street art é elaborada, desde iniciativas individuais e espontâneas, a projectos ligados às instituições – como a CML - e associações e colectivos – como a APAURB, Wool, Lata 65, Ébano Collective, entre outros - implica também uma diversidade correspondente aos intuitos com que as peças são elaboradas, e eventualmente às opções plásticas seguidas por cada criador.

Ao mundo da street art correspondem diferentes actores, estratégias e modalidades de cooperação. Reconhecer a diversidade de actores que se movem neste mundo da street art em Lisboa (os artistas; os produtores; a CML; as marcas; as associações; as empresas) implica reconstituir os de pontos de vista e compreender os objectivos que manifestam em relação a uma prática cujos sentidos, como veremos, extravasam largamente o da simples expressão artística (ver capítulos 5 e 8). É de notar também o ambiente mediatizado, sendo o interesse dos media sobre a street art crescentemente visível. Também ao nível do marketing das cidades e do turismo há consequências que serão afloradas nesta pesquisa, nomeadamente na construção de imagens de cidade através da street art para promover um destino urbano como apetecível, ou na sua utilização enquanto complemento visual ao discurso de marketing sobre determinada marca.

Uma análise da produção de street art em Lisboa pode revelar visões conflituais do espaço público, nomeadamente no facto de a actuação camarária englobar e legitimar determinados projectos de street

art numa lógica de promoção e de marketing urbano, enquanto deslegitima outras práticas no âmbito da street art. Por outro lado, a observação de que a street art é na sua génese ilegal, mas pode adaptar- se à «encomenda», aos concursos que a Câmara Municipal propõe – o que coloca questões sobre o que nos diz a street art não legítima nas ruas, sobre o espaço público, ou sobre os diferentes níveis de produção de street art na obra de um mesmo artista (legais e ilegais) - também pode sugerir uma certa conflitualidade.

Tudo isto indica que há, sem dúvida, neste fenómeno, um objecto de estudo particularmente rico, por revelar dinâmicas urbanas ao nível das práticas, das identidades, dos mundos da arte e da construção de espaço público numa cidade em particular: Lisboa.