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O Muralismo: escala e visibilidade para a expressão artística

O Enquadramento da pesquisa

1. O que é street art ? Percurso para uma definição do conceito

1.2. O Muralismo: escala e visibilidade para a expressão artística

«I emphatically do not want to paint up houses.» (Oskar Schlemmer, cit. in Harrison, 2003:207)

Comunicar é um aspecto essencial da experiência humana. As imagens e as palavras com que o fazemos, na vertente comunicativa não-verbal, encontram-se em tantos suportes físicos quantos os permitidos pela imaginação. Múltiplos são os espaços onde indivíduos escolhem partilhar pensamentos, indignações, sentimentos, dúvidas, interagindo com quem os lê. E também diversos são os espaços escolhidos para intervir artisticamente na cidade. O muro e a parede surgem assim como o lugar por excelência destas intervenções em que a arquitectura – e também a própria vida urbana, no caso de estas intervenções terem lugar no espaço público – complementam e contextualizam o suporte. É nestas interacções entre o suporte, a arquitectura e a cidade, bem como nas possibilidades de escala que lhes estão subjacentes, que reside o antigo2 fascínio pela pintura mural, que, nalguns aspectos,

aparece ainda hoje aliada à corrente produção de street art.

Formas antigas do muralismo são referenciadas para o período helenístico. É nesse momento que a arte se destaca das suas possibilidades «mágicas» ou rituais, e começa a ser objecto de interesse por elementos abastados das comunidades, que pagam para ver os muros e paredes das suas casas pintados com cenas variadas. Terá sido aliás nesta altura que surgiu, com o trabalho artístico pago, a especialização dos artistas num ofício: a pintura de determinado tipo de cenas, sendo a pintura de frescos uma componente visual importante numa comunidade – abrangendo comércio, teatro, casas particulares, ruas, etc. (Gombrich, 2010). A profusão de paredes pintadas com cenas de paisagens, colunas e molduras é ainda hoje visível nas ruínas de Pompeia.

Outras formas de pintura mural podem ser referenciadas na história da arte, algumas das quais constituem exemplos célebres. Nomeadamente, no Antigo Egipto, em que as paredes de templos e outros edifícios se cobriam de hieróglifos, verdadeiros relatos nos quais símbolos e figuras de perfil transmitem aspectos mitológicos e também da vida quotidiana (Gombrich, 2010). Outro exemplo é o do início do Cristianismo, em que a pintura mural nos templos é também alternativa à elaboração de estátuas, conotada então com a idolatria pagã (op.cit.). Por outro lado, a continuidade desta prática pela Idade Média é tida como forma de transmitir os «ensinamentos» da Igreja.

O percurso pela prática da pintura mural revela também inovações técnicas, nomeadamente no que refere ao fresco, como os elaborados por Giotto no início do séc. XIV em Pádua, ou ao uso da perspectiva, presente nos murais de Masaccio, inovação técnica que contribuiu para o surgimento do Renascimento em Florença. São ainda de destacar os frescos de Fra Angelico, Mantegna e Piero della Francesca, bem como, incontornavelmente, de Botticelli, Leonardo da Vinci, Miguel Angelo e Rafael.

A pintura de frescos foi posteriormente alvo de crise, com o advento da austeridade protestante no séc. XVI no norte da Europa, tendo posteriormente ressurgido enquanto elemento decorativo nos interiores opulentos e de culto religioso (op. cit.). Esta selecção breve de momentos da história da arte mural ilustra a permanência da prática muralista e as circunstâncias históricas da sua evolução – maior detalhe de autores transcende o objectivo deste texto. Assim, avancemos então até ao séc. XX, onde um enquadramento mais eficaz de algumas das formas artísticas que estão na génese do objecto desta pesquisa será não só possível como necessário. Comecemos pela Bauhaus.

O muralismo na Bauhaus

Esta escola, formada por Walter Gropius no ano de 1919 em Weimar, pretendia restabelecer o papel de responsabilidade da arte, na qual o papel da arquitectura seria preponderante: «A pintura, a escultura, as artes e o design industrial deviam tornar-se elementos integrantes da arquitectura, mãe de todas as artes e que a todas abrangia.» (Walther, 2005: 177). Com métodos de ensino inovadores, esta escola reuniu um conjunto de artistas que também aí leccionaram. De facto, a procura de uma ligação mais estreita entre arte e sociedade foi um dos objectivos da Bauhaus. (Walther, 2005:176). De mencionar o papel de Oskar Schlemmer, artista e director do workshop sobre murais, que, tanto enquanto artista como no ensino, elaborou uma reflexão sobre o muralismo. O trabalho muralista de Schlemmer é inovador em termos técnicos e estéticos. Jogos de perspectivas entre a pintura e o ambiente circundante dão expressão à sua ideia de complementaridade entre a arquitectura e a arte muralista, bem como o papel ético que o artista conferia à prática de pintura mural. No seu diário, lê- se:

«Mural painting, rightly praised as a genre that is capable of accomplishing an emphatic relationship to space and architecture, in contrast to the autonomous character of easel-painting and the associated danger of l´art pour l’art, must find an appropriate site and solution here at the Bauhaus.»

(Fragmento do diário de Oskar Schlemmer, entrada de Novembro de 1922, cit. in Harrison e Wood, 2003:307)

Schlemmer atribui portanto ao muralismo um papel de destaque no contexto da Bauhaus. Afirma ainda que a sua prática não é indissociável de uma função no plano ético:

«Mural art must be justified in ethical terms, and the central idea it presents must be a universal one, or at least it must harbor those values that will allow it to become such. The proper function of mural painting is to give appropriate form to some important theme.» (Fragmento do diário de Oskar Schlemmer, entrada de Novembro de 1922, cit. in Harrison e Wood, 2003:307)

Os murais que elaborou para a Bauhaus de Weimar foram posteriormente destruídos em 1930, no seguimento da ascensão do partido nacional-socialista, com a justificação de serem «exercícios desprovidos de valor artístico.» (Paul Schulze-Naumburg, cit. in Walther, 2005:181).

O muralismo mexicano

De teor fortemente político e inspirado pela Revolução Mexicana, outro momento marcante no percurso histórico da pintura muralista inicia-se em 1922 com o movimento muralista mexicano. Este integrou pintores como José Clemente Orozco, Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros. A vertente de pintura mural destes artistas liga-se ao Realismo Expressivo, e recolhe ainda influências das incursões muralistas de Fernand Léger. Pintando figuras de teor político em murais monumentais situados em diversas estruturas públicas e não só, os muralistas mexicanos encontraram franco acolhimento junto das populações e, simultaneamente, a oposição dos seus adversários. Curiosamente, é no trabalho de Siqueiros que surge uma importante inovação técnica: a pintura com pistolas de ar comprimido, proporcionando maior rapidez no acto de pintar, para assim lhe permitir acompanhar pictoricamente o desenrolar e evolução dos acontecimentos sociais e políticos da época (Walther, 2005:206).

Siqueiros, na «Declaração de Princípios Sociais, Políticos e Estéticos»3, cujo esboço elaborou, afirma

a necessidade de uma arte de carácter público e monumental, guiada por valores educativos e ideológicos, e, simultaneamente, acusa a «arte de cavalete» de ser elitista e privada:

«We repudiate the so-called easel painting and every kind of art favored by ultra-intellectual circles, because it is aristocratic, and we praise monumental art in all its forms, because it is public property. We proclaim that at this time of social change from a decrepit order to a new one, the creators of beauty must use their efforts to produce ideological works of art for the people; art must no longer be the expression of individual satisfaction which is today, but should aim to become a fighting, educative art for all.» (David Siqueiros, in «A Declaration of Social, Political and Aesthetic Principles» (1922), cit, in Harrison e Wood, 2003:406-407)

Mais tarde continuou a afirmar a necessidade quer de que a arte muralista pública se substituísse à publicidade outdoor, quer de que fosse ensinada:

«We must foment the teaching of exterior mural painting, public painting, in the street, in the sunlight, on the sides of tall buildings instead of the advertisements you see there now, in strategic positions where the people can see them, mechanically produced and materially adapted to the realities of modern construction.» (David Siqueiros, in «Towards a Transformation of the Plastic Arts» (1934), cit. in Harrison e Wood, 2003: 429-431)

Chegou ainda a acusar a elaboração de pintura muralista feita com propósitos turísticos, no que revela a precocidade de uma tensão que ainda hoje tem expressão, entre pintura mural e o seu aproveitamento turístico4:

We must put an end to tourist-inspired Mexican Muralism with its archaic technique, and bureaucracy; murals painted in out of the way places and which only emerge from hiding in select monographs published for foreign amateurs.» (David Siqueiros, in «Towards a Transformation of the Plastic Arts» (1934), cit. in Harrison e Wood, 2003: 429-431)

3 «A Declaration of Social, Political and Aesthetic Principles» (1922), David A. Siqueiros et al., cit. in Harrison

e Wood, 2003:406.

O muralismo fascista italiano

O potencial para propaganda política da pintura muralista foi um aspecto também aproveitado pelo outro lado do espectro político, nomeadamente com o Novecento Italiano e o muralismo fascista que dele derivou. De estética e valores regressivos e mesmo reaccionários, e naturalmente com o aval do poder político vigente, a produção artística deste período inclui também a pintura mural. A escala que a pintura mural permitia, bem como o potencial de visibilidade para o público, foram factores que levaram os fascistas italianos a apropriar-se desta forma de arte como forma de endoutrinar as populações. Um dos seus artistas e ideólogos é o ex-futurista Mario Sironi, que no seu «Manifesto da Pintura Mural» (1933)5 afirma:

«In the Fascist state art acquires a social function: an educative function. It must translate the ethic of our times. (...) Thus art will once again become what it was in the greatest of times and at the heart of the greatest civilizations: a perfect instrument of spiritual direction. (...) Mural painting is social painting par excellence. It acts on the popular imagination more directly than any other form of painting, and inspires lesser arts more directly. (...) From mural painting will arise the ‘Fascist style’ with which the new civilization will be able to identify. The educative function of painting is above all a question of style.» (Mario Sironi (1933), cit. in Harrison e Wood, 2003:425)

Tecnicamente, e em consonância com a ideologia fascista, Sironi salienta a necessidade de disciplina do artista muralista, cujo trabalho se subjugaria sempre à ordem, ao rigor da composição e à renúncia total da «concepção individualista» de arte e do significado de a criar, em prol da transmissão de uma mensagem ideológica.

Escala e Visibilidade

Há dois aspectos a reter destas experiências com a prática muralista: a escala e a visibilidade que a pintura em muros ou paredes exteriores possibilita. A dimensão potencialmente maior de uma pintura mural exterior, ocupando muros ou empenas de edifícios, atribui-lhe uma visibilidade considerável, consituindo um veículo eficaz para passar uma mensagem ou ideia. Deste modo, estes são ainda e sempre dois factores aliciantes na escolha desse suporte – não só como meio de comunicação expressiva, como para a prática artística, mas também, como vimos, para a propaganda política e para a publicidade, aspecto a que daremos sequência ao longo do trabalho.

O muralismo é igualmente revelador da dualidade que o próprio muro exprime entre o público e privado, na medida em que este é um objecto que delimita, separa, oculta. A sua superfície pode «mostrar» essa diversidade de conteúdos das diferentes intervenções, revelando, igualmente, as tensões de que essas intervenções são expressão. É nesse sentido que nos parece relevante mencionar as diferentes experiências que têm vindo a ser feitas actualmente no âmbito do muralismo de teor comunitário.

O muralismo comunitário

Estes murais, elaborados com fundos modestos (das próprias comunidades ou das entidades públicas), são um trabalho de proximidade entre artistas e comunidade, e constituem representações das identidades e história locais e da forma como estas se relacionam com o espaço urbano e a comunidade. Sieber, Cordeiro e Ferro (2012) ilustram este tipo de produção com os murais elaborados nas comunidades negras da Dudley Street em Boston (E.U.A.), que, partindo de um contexto de representações conflituais dos espaços urbanos, abordam temas de natureza democrática, centrando-se na luta contra as injustiças sociais, aspirações dos jovens para um futuro melhor, entre outros temas. Neste caso em particular o papel dos jovens é destacado, dado serem elementos-chave no processo de construção da comunidade, sendo os murais um aspecto em que laços de solidariedade entre si são estreitados. O mural é um elemento de resistência a todo um conjunto de representações sociais, quer pelos media quer pelas instituições, que são desfavoráveis aos habitantes destes bairros, que desta forma tentam reclamar para si o espaço físico onde a sua comunidade vive. Nas palavras destes autores:

«Especially in excluded and stigmatized neighborhoods, the grassroots creation of counter-hegemonic representations is a deliberate form of resistance against economic and media assaults experienced by locals, and an attempt to appropriate community space for purposes of constructing compelling, visible positive images and messages of survival, cultural affirmation, pride, and hope.» (Sieber, et all, 2010:276) Também no contexto norte-americano, outro exemplo da prática de muralismo comunitário hoje em dia, como forma de estreitamento de laços de uma comunidade tendencialmente excluída, é o que Dolores Hayden (1997) relata relativamente aos murais da comunidade hispânica em Los Angeles (E.U.A.), que mostram imagens de teor religioso católico (santos e virgens), ou referentes à revolução mexicana, sendo estas ilustrações símbolos de afirmação comunitária no espaço público onde essa comunidade vive.

A história do muralismo mostra que esta forma expressiva e artística constitui um poderoso recurso para fazer passar uma mensagem, seja esta de teor político ou social, tendo sido diversos os actores a recorrer ao mural com vista à exploração desse potencial. Não obstante, desde os anos 70 do século XX, o muralismo e outras formas expressivas e artísticas de rua coexistem com uma outra prática que persiste até aos nossos dias e que constitui uma componente incontornável da paisagem urbana, o

graffiti. Este está, também, como as outras formas artísticas e expressivas que têm vindo a ser abordadas neste texto, na origem do que agora conhecemos como street art . É essa relação estreita que iremos abordar no subcapítulo seguinte.