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Contextos e Práticas

5. Contextos de Produção

5.1. Experiências iniciais

O Bairro Alto é uma das zonas mais emblemáticas de Lisboa. Zona histórica, parece transformar-se do dia para a noite, transitando de uma zona de pequeno comércio «tradicional» e lojas de moda e design, para uma zona de diversão noctura, onde os bares e os restaurantes se multiplicam. O contraste entre estas duas vidas do Bairro Alto não é isento de conflitos, sendo este aspecto recorrente nos discursos que expressam os aspectos negativos desta dualidade, como a profusão de tags que as paredes deste bairro exibem. Percorrendo as ruas do Bairro Alto, não podemos deixar de contemplar as suas paredes, sabendo que estão na origem da sucessão de eventos que precedem a actual conjuntura da street art na cidade de Lisboa. Tracemos, portanto, essa história recente.

Quando situámos os eventos que foram significativos para a forma como a street art se popularizou em Lisboa82, destacámos a Visual Street Performance. Esta iniciativa marcou o início de uma forma

mais conceptual de pensar o graffiti e a street art, explorando as suas possibilidades expositivas, numa tentativa de sair dos limites culturais ou mesmo geográficos que apareciam associados às suas práticas, e de, simultaneamente, lhes conferir um tipo de visibilidade distinta, destinada a um tipo de público mais abrangente.

Nota-se aqui um intuito de «explicar», ou de «mostrar» que o graffiti não tem de ser conotado somente com tags e vandalismo, sendo também uma forma artística urbana bastante rica na sua expressividade, que procura então, naquele momento, algum reconhecimento enquanto tal, no espaço público. Este tipo de discurso é o que subjaz, por exemplo, à elaboração do documentário Referência, Volume 1, que

expressa ou veicula a ideia de «desmistificar», «explicar» e «mostrar» o graffiti à população em geral, para além dos iniciados. Esta necessidade terá provavelmente partido da própria vontade dos writers e

street artists, que pretendiam tornar mais amplo o âmbito da sua acção através de iniciativas legais onde pudessem mostrar as suas capacidades técnicas e artísticas sem os constrangimentos típicos da prática espontânea e ilegal. Por outro lado, o intuito de alguns writers de direccionar a prática do

graffiti para propósitos de âmbito social é também evidente a partir das iniciativas VSP. Portanto, a exploração de novas formas de graffiti e street art deriva também, em certa medida, da vontade de vários writers e street artists de explorar não só uma dimensão mais estética, técnica e artística do

graffiti, como as suas potencialidades de intervenção social, nomeadamente a nível da requalificação e reabilitação dos espaços públicos urbanos, ainda que mantenha, paralelamente, a dimensão associada à procura de reconhecimento entre os pares pela visibilidade do nome e ao desafio de intervir em locais «difíceis»83.

Surge assim a VSP, exprimindo a intenção de concretizar a exploração dessas duas dimensões, no seguimento das exposições que a LEG Crew havia organizado no Seixal e em Vila Fraca de Xira (Ferro, 2011). A primeira edição da VSP teve lugar em 2005 no espaço «Interpress», tal como a segunda, em 2006. A edição de 2007 ocorreu no espaço da Fábrica Braço de Prata, antiga fábrica de armamento que agora acolhe actividades de índole cultural e artística. Em 2008 teve lugar a quarta edição da Visual Street Performance, desta vez num espaço cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, o edifício «A Capital» no Bairro Alto, que, para além do extinto jornal, havia também sido ocupado pela companhia de teatro Artistas Unidos. Esta cedência de espaço pela CML - em pleno Bairro Alto e em zona de proibição total da prática de graffiti, recorde-se - constituiu na verdade o primeiro passo da instituição no sentido de uma posição de abertura em relação às potencialidades do graffiti e da street

art. Confirmação deste movimento foi dada na quinta edição, que teve lugar também em Lisboa mas desta vez na Rua das Gaivotas, inaugurando-se também o projecto no Porto, na Rua da Fábrica Social, onde ocorreu também a sexta edição, em 2010.

Estas iniciativas acolheram não apenas a elaboração de pinturas ao vivo e sua exibição, mas também a intervenção em zonas degradadas quer na Grande Lisboa quer no Grande Porto, e uma exposição de fotos que documentam essas intervenções. A propósito desta última vertente da VSP, Lígia Ferro, na observação que fez, designa por papel de mediação, que os writers envolvidos assumem em relação às populações dessas zonas urbanas deprimidas, numa lógica de partilha e comunicação, e com um sentido prático:

«Falo de um papel activo de mediação nos meios urbanos em que os writers intervêm. Quero com isto dizer que são os actores que procuram os seus próprios meios de autofinanciamento para tornarem estes projectos possíveis. (...) Percebe-se assim que existem subgrupos de writers que vêem no graffiti um meio de luta contra a desigualdade social, colocando as ferramentas artísticas ao dispor dos protagonistas urbanos mais desfavorecidos em termos sociais e económicos.» (Ferro, 2011:300)

As VSP tiveram não só um papel de relevo na criação de novas dinâmicas em relação à street art e ao

graffiti, como de gerar interesse pelo potencial destas práticas, por agentes, como a CML, que até então ignoravam essas potencialidades. No relato que Pedro Soares Neves fez, aquando da entrevista concedida à autora, ressalta o aspecto inovador destas iniciativas, bem como o momento em que o próprio nelas começou a participar:

«[Os organizadores] geraram esse evento, o Visual Street Performance, e estavam-no a desenvolver depois com interesses muito divergentes, mesmo dentro do próprio grupo de pessoas que estavam a organizar esse evento, mas a toada conjunta do que acontecia era que se estava a afirmar que existia um evento relacionado com graffiti e street art, o que na altura era inédito. Nunca tinha acontecido. E anualmente estava a acontecer, estava [já] na terceira edição em 2008, [que] foi no Braço de Prata, e [aí] eu cruzei-me com essas pessoas – algumas novas, completamente, e outras que vinham do passado, portanto que eu já tinha contactado nos anos 90.» (Pedro Soares Neves, Arquitecto; Programação e criação de projectos de arte urbana, mediação; writer/street artist, 2013)

Para Pedro Soares Neves, a participação nas VSP é então resultado de um estabelecer de contactos com novos intervenientes, bem como outros com que se havia cruzado aquando da sua própria experiência enquanto writer, no universo do graffiti.

Essa participação nas VSP, e a constatação da tensão que as paredes do Bairro Alto deixavam transparecer, fez com que Pedro Soares Neves, tendo ainda acumulado experiência de âmbito académico em metodologias de participação no espaço público, procurasse organizar um encontro para, precisamente, se discutir o futuro das paredes do Bairro Alto. Nas suas palavras:

«Isso despoletou uma sequência de acontecimentos – a minha ausência de Lisboa resultou de um percurso académico que não estava nada relacionado com a prática, digamos assim, e vim com uma grande vontade e uma grande necessidade de ir para o campo fazer qualquer coisa, e vim desenvolver um projecto (em Roma estudava Metodologias de Participação no Espaço Público), e comecei a aplicar essas metodologias de participação no espaço público no Bairro Alto. Na altura da pré-limpeza, digamos assim, na altura havia camadas e camadas de 30 anos de tags e street art, etc., que tornavam aquele espaço muito tenso e contrastante em termos de usos, não é? Como senti que essa tensão existia, para já tentar tabelar um bocado com as pessoas deste grupo da VSP, organizei uma proposta civil de encontro para discutir certos temas relacionados com o futuro das paredes do Bairro Alto.» (Pedro Soares Neves, Arquitecto; Programação e criação de projectos de arte urbana, mediação; writer/street artist, 2013)

Este encontro, a que foi dado o nome de «O Futuro das Paredes do Bairro Alto», e cuja organização incluía não só Pedro Soares Neves como Lígia Ferro, teve lugar na Galeria ZDB, entre 4 e 6 de Julho de 2008. Pensado como forma de, através do diálogo e do encontro entre os diversos actores envolvidos, se encontrar soluções para o estado das paredes deste bairro emblemático de Lisboa, cuja intensa profusão de tags se relacionaria com o sentimento de desconforto que o espaço parecia assim

transmitir, este encontro contou com a presença de elementos da CML, Junta de Freguesia da Encarnação, Associação de Comerciantes do Bairro Alto, um representante de uma marca de sprays, jornalistas, artistas plásticos, arquitectos e writers, bem como residentes no bairro (Ferro, 2011:210). A descrição detalhada deste encontro pode ser encontrada no trabalho citado de Lígia Ferro, cabendo aqui sublinhar que foi neste encontro que o representante da CML anunciou a intenção de implementar um plano de limpeza das paredes do Bairro Alto, ignorando a intenção de estabelecer um momento de discussão colectiva inerente a este encontro. Esse plano teria lugar entre esse ano, 2008, e o seguinte, consistindo na aplicação de películas anti-graffiti e removendo os que aparecessem, ficando ainda expressa a intenção de fornecer kits de pintura e manutenção aos moradores do bairro (Ferro, 2011:212).

Pedro Soares Neves considerou ter sido este um momento importante no início de uma prática de diálogo entre criadores de graffiti e street art e a instituição camarária, estando este encontro e o apoio que a CML deu – traduzido na cedência do edifício que acolheu a VSP do mesmo ano - na génese da criação da Galeria de Arte Urbana:

«E esse momento foi paradigmático, porque a Câmara foi numa perspectiva de apresentar uma proposta fechada – aquilo era um encontro participado, a ideia era auscultar os cidadãos… - eles levaram muito para trás, as pessoas da Câmara, e levaram sobretudo um recado de inclusão do que foi discutido naquela sessão, de inclusão das vozes dos utilizadores do espaço do Bairro Alto. Nomeadamente das vozes de quem fazia graffiti. E isso abriu caminho para a criação da Galeria de Arte Urbana e para um conjunto de acontecimentos que depois se sucederam à abertura da Galeria de Arte Urbana.» (Pedro Soares Neves, Arquitecto; Programação e criação de projectos de arte urbana, mediação; writer/street artist, 2013) Assim, o encontro «O Futuro das Paredes do Bairro Alto» consistiu numa oportunidade de troca de perspectivas entre os diversos participantes, daí resultando que os próprios representantes da CML tivessem constatado a importância da inclusão das vozes dos praticantes no que diz respeito à forma de gerir a profusão de graffiti e de street art no espaço público urbano. Daqui terão igualmente sido estabelecidos contactos entre os vários interlocutores, o que terá posteriormente facilitado a troca de perspectivas e ideias para o desenhar dos contornos do que viria a ser a Galeria de Arte Urbana. Vejamos agora como surgiu e se desenvolveu essa estrutura da CML, e quais as iniciativas em que se tem desdobrado, da sua criação até ao momento presente. Ao reconstruirmos a génese da GAU e situarmos a sua esfera de iniciativa, recortaremos uma experiência de inclusão de práticas de street art no âmbito institucional, da qual nasceu um conjunto de dinâmicas. Estas remetem não só ao que diz respeito a novas possibilidades que às suas práticas os artistas poderiam associar, como também a todo um conjunto de oportunidades para o campo de actuação de outras entidades interessadas na produção e promoção de street art em Lisboa, no que, na verdade, constituiu o início de um período de abertura

a estas práticas, e de atenção institucional ao seu potencial para a construção de uma imagem da cidade.