• Nenhum resultado encontrado

A street art inserida num conjunto de práticas artísticas

Contextos e Práticas

6. Artistas de street art: Diversidade de Perspectivas

6.3. A street art inserida num conjunto de práticas artísticas

Ser-se street artist não é um atributo exclusivo. Ao invés, essa prática aparece interligada com um conjunto diverso de actividades, surgindo no âmbito de uma carreira artística ou no seguimento de práticas no âmbito do graffiti.

Para alguns dos entrevistados (sete do conjunto de dez artistas), a street art é parte de um conjunto de práticas artísticas, que se inserem num percurso pessoal em que há uma intenção de desenvolver uma carreira de artista. Esta intenção expressa-se nomeadamente através dos momentos de formação artística, quer ao nível de cursos superiores, quer ao nível do ensino profissional. Assim, dois dos entrevistados apresentam vários momentos de formação profissional em artes e áreas visuais - Vanessa Teodoro e Exas. Mariana Dias Coutinho, no seguimento da escolha de deixar de trabalhar em restauro para se dedicar à pintura, complementou a sua licenciatura formação com o curso de Desenho na escola ARCO. José Carvalho licenciou-se em Artes Plásticas; Bruno Santinho e Miguel Januário, em Design; e Leonor Brilha tem uma licenciatura em Pintura, outra em Design de Comunicação e Mestrado em Ensino de Arte.

Vejamos agora em detalhe a forma como a street art se interliga com o percurso pessoal dos entrevistados, quer no que refere aos momentos de formação, quer na construção de uma carreira artística, quer ainda no âmbito de outras práticas de rua – nomeadamente o graffiti.

Havendo uma ligação prévia ao graffiti, José Carvalho tentou explorar esse aspecto biográfico, mais na vertente de intervenção na rua do que na questão da identidade visual das letras, na sua aprendizagem durante a licenciatura nas Caldas da Rainha:

«Depois foi o secundário, foi a cena de artes, continuei a gostar muito do graffiti em si, embora tivesse sempre uma vertente em que a identidade das letras nunca foi algo de que gostasse muito, a minha parte do graffiti sempre foi mais pelo desenho do que as letras. Depois fui para as Caldas estudar, tirar artes plásticas. Tive alguns problemas, não vou dizer porque queria chegar às Caldas e continuar a meter o graffiti, a meter o graffiti na minha pintura. E depois… isto foi em 98, em Portugal ainda era assim uma… embora [a escola fosse] muito aberta, [...] o graffiti ainda era demasiado aberto para uma escola de artes.» (José Carvalho, Artista plástico e street artist, 2013)

José Carvalho refere que sentiu dificuldade em aliar a vontade de intervir artisticamente na rua, que derivou da sua aprendizagem informal no universo do graffiti, com a sua educação formal e académica em artes, que na altura, sublinha, era mais fechada em relação às práticas artísticas de rua comparativamente ao que verifica hoje em dia.

Já Mariana Dias Coutinho vivia a prática artística como um hobby, uma actividade paralela, trabalhando profissionalmente na área do Restauro. À decisão de dedicar-se profissionalmente à arte a tempo inteiro associou-se a posterior frequência de um curso de Desenho, decorrente de um sentimento de cansaço em relação à actividade prévia:

«E lá fiz o [curso de] Restauro. [Durante] imenso tempo só exercia o restauro [...]. Sempre levei uma actividade artística paralela, mas mais, digamos, como um hobby, nada como via profissionalizante. Ia tendo umas encomendas para fazer uns retratos, iam aparecendo assim uns trabalhitos pequeninos, que eu ia fazendo, mas estava sempre agarrada ao restauro. Até que, há para aí quatro anos, dei o ‘grito do Ipiranga’. Já estava numa fase péssima, sempre que me aparecia qualquer coisa para restaurar eu só bufava e demorava imenso tempo para fazer aquilo, depois, parava e fazia outras coisas e quando, finalmente, pegava outra vez naquilo já tinha oxidado tudo e tinha de voltar tudo outra vez ao início. Dei o ‘grito’ e disse: ‘Pronto, não vou aceitar mais nada e vou ver como é que corre se eu fizer só arte...’ E pronto, tem-me vindo a correr muito bem. Já devia ter feito isto mais cedo.» (Mariana Dias Coutinho, Artista plástica e street artist, 2014)

Esta artista assumiu a decisão de se dedicar à actividade artística a tempo inteiro como um momento decisivo na sua carreira, de ‘libertação’, já que parte de um momento de cansaço face à sua actividade prévia para a dedicação à criação artística, que até então constituia uma prática de tempos livres. A prática de street art apareceu no seguimento de uma vontade contínua de experimentar outras formas de expressão, no âmbito do seu trabalho enquanto artista plástica.

Quanto a Vanessa Teodoro, a experiência profissional nas áreas do design e publicidade interligam-se com as suas escolhas de frequência de cursos nessas áreas. Há no seu discurso sobre o seu percurso pessoal uma ideia de «experimentar» outros contextos de expressão:

«Quis ir para as Belas Artes… Acabei por não entrar. Fiz um curso técnico de Design Gráfico, nesse ano. Estive a trabalhar com o meu pai como designer. Depois, descobri a publicidade. Num dos módulos do meu curso de designer era Criatividade Publicitária. Descobri… Eh pá, isto afinal até é giro. Então disse: ‘Vou fazer mais um curso técnico de publicidade na ETIC’. [...]»(Vanessa Teodoro, Designer e street artist, 2013)

Ganhou a partir da frequência do curso de Design Gráfico o gosto pela área da publicidade, que motivou a opção por um curso nessa área. Considera que no meio criativo a formação académica ou técnica não é um factor crucial, sendo um portfólio variado uma forma mais relevante de mostrar os trabalhos que faz:

«Tirar um curso de três ou quatro anos não vale a pena. Geralmente na nossa área das Artes é muito pelo que tu fazes ou pelo que fizeste, o portfólio e não propriamente pelo canudo.» (Vanessa Teodoro, Designer e street artist, 2013)

Da frequência do curso em Publicidade começou a experiência profissional na área, a partir da qual continua a vontade de experimentar outros momentos de aprendizagens:

«Então, foi uma boa ideia: cheguei lá, fiz o curso. A meio do curso vem o estágio, numa agência de publicidade. Então, estive a tirar o curso e a estagiar ao mesmo tempo. Foi puxado, mas foi muito giro. Depois acabei o curso. Estive mais uns meses na agência. Depois saí. Estive um ano a fazer freelance, design gráfico, direcção de arte, na publicidade. Depois (…) voltei para a ilustração. Vou experimentar. Vou ao ARCO, vou fazer um curso de três anos. É isto mesmo que eu quero. Então, fiz o primeiro ano no ARCO.» (Vanessa Teodoro, Designer e street artist, 2013)

Esta componente de experimentação ficou patente na frequência de diversos cursos técnicos de artes e na acumulação de experiências profissionais. Também foi, portanto, através da experimentação que esta street artist e designer foi construindo e elaborando a sua carreira, usando a diversidade de momentos de formação e as experiências profissionais como mais-valias para um percurso único. Dentro do universo da street art identificam-se trajectórias diferentes e relações significativas também ao nível de outras práticas expressivas. É o caso do graffiti, que aparece como experiência comum – mas não transversal – nos percursos dos street artists entrevistados, sendo que a relação que cada um mantém com essa prática é distinta, bem como o papel que lhe conferem no seu percurso pessoal. Assim, vale a pena rever como é que estes percursos se relacionam com a prática de graffiti: quatro dos street artists entrevistados nunca tiveram A observação contínua sugere haver uma ligação ao universo do graffiti no percurso pessoal dos street artists, que, todavia, não aparece com a centralidade que se poderia supor – sendo no entanto essa prática muito influente no trabalho de street art daqueles que a vivenciaram.

É de salientar uma certa variedade nas práticas expressivas e trabalho artístico de todos os entrevistados. Assim, José Carvalho complementa o seu trabalho na street art com experiências em fotografia e com projecção de desenho no exterior – as quais consistem, referiu-nos, na projecção luminosa de desenhos seus em grande escala, sobre fachadas urbanas, de noite; Vanessa Teodoro, na actividade de publicidade e design, elaborou diversos trabalhos com características diferentes entre si, tendo também experimentado com o graffiti, o que lhe permitiu transpor para um contexto exterior um tipo de trabalho gráfico que já desenvolvia; Tinta Crua, fazendo sobretudo posters que cola pelas ruas da cidade, começou, a partir das experiências de produção de street art em contextos institucionais, a experimentar trabalhar com tinta em spray; Bruno Santinho incorpora diferentes técnicas e estilos, dependendo do contexto em que produz (galeria, exterior, etc.); Mariana Dias Coutinho apresenta um trabalho polivalente, incorporando pintura, escultura, cerâmica, e a street art ; Leonor Brilha encara a sua produção no âmbito da street art como completamente distinta do trabalho que faz em estúdio; Smile, para além do graffiti e da street art desenvolve trabalhos comerciais de decoração de roupas e ténis, bem como de pinturas murais a privados; Exas, para além da street art, e tendo parado de praticar graffiti, também elabora peças para galerias, desenho ou telas, e igualmente pinta murais para «privados» - os clientes do mundo da street art; Luísa Cortesão alia à sua prática de street art , que vê como um hobby, um outro, que é o da fotografia, no âmbito da qual já expôs trabalhos seus.

Por outro lado, Miguel Januário incorpora no seu trabalho artístico tanto a performance, como a street

art, o trabalho para galerias e para museus, sendo a experimentação das diferentes formas um dos seus objectivos (um exemplo de um seu trabalho é ilustrado na Figura 6.2);

Veja-se a seguinte caixa, para conhecer um pouco mais a fundo o percurso deste street artist: Miguel Januário: um percurso artístico diversificado

Miguel Januário nasceu em 1981 e é designer e artista. Desde cedo sentiu uma ligação às artes, em particular ao desenho, o que o levou a estudar na escola Soares dos Reis – a escola artística do Porto.

A prática de skate impulsionou uma ligação à rua que depois continuou com o graffiti e com a street art, no que designou por «um processo natural»: conheceu na escola pessoas que o faziam e experimentou, numa altura em que o graffiti no Porto ganhava mais expressão. Paralelamente, gostava de ver o graffiti quando vinha a Lisboa, bem como filmes ou revistas que abordassem o tema.

Considera sempre ter tido uma direcção política nos trabalhos que faz, ainda que refira que nos primeiros tempos era de um modo algo inocente. Para Miguel Januário, a prática de street art é, pelo simples facto de implicar uma intervenção no espaço público, um acto político, independentemente do estilo ou tema da peça em particular, seja esta ou não de teor politizado ou intenção subversiva.

A street art é, para este criador, um contraponto à publicidade, uma outra forma, mais livre, de ocupar o espaço visual da cidade.

O projecto +-, pelo qual é responsável e reconhecido, surgiu em 2005, enquanto consolidação de uma direcção política e estética do seu trabalho. A designação «+-» surge quando estava a terminar o curso de Design que tirou na Faculdade de Belas Artes. Miguel Januário relaciona o símbolo que criou com o design e com os questionamentos que tinha sobre a sociedade de consumo e do seu papel nela enquanto designer. Para si, +- reflecte uma sociedade de desigualdades, em que «uns têm mais e outros têm menos», e ao mesmo tempo a vontade de anulação desse sistema de desigualdades. Por outro lado, a opção por letras de imprensa pretas nas suas intervenções é oferece um contraponto à noção do graffiti de identidade do artista associada ao seu lettering.

Em relação às colaborações com as instituições, nomeadamente a GAU, este street artist considera que são positivas e indica que sempre que acontece essa oportunidade tenta jogar um pouco com isso e «ser também o mais subversivo possível»: exemplifica com a acção que fez aquando da sua exposição na galeria Underdogs, em que a GAU lhe concedeu duas paredes para intervir, no viaduto junto à embaixada dos EUA em Lisboa. A exposição chamava-se «Sell Out» e era esta a mensagem que tinham estabelecido que inscreveria nas paredes. Ao invés, pintou-as com um «Vende-se Portugal», que ainda lá permanece.

Miguel Januário relativiza a importância da visibilidade nos locais que escolhe para intervir, já que pode tirar uma foto, colocá-la na internet e chegar a muitas mais pessoas do que as que veriam a peça in loco. Considera estimulante o facto da street art ser efémera. Concebe-a como algo que se «dá» à cidade e às pessoas, deixando de ser seu a partir do momento em que terminou a pintura.

Para Miguel Januário, o projecto +- permite a confluência de diversas formas de expressão: a street art, a performance, e a construção de objectos com o intuito de serem expostos em galerias convencionais e vendidos. Estas formas de expressão por vezes cruzam-se, exemplificando com o caixão que usou na performance Guimarães 2012, que tendo estado dois anos num armazém, pode agora ser visitado no museu de Elvas, ganhando outra «vida» enquanto objecto artístico. Entusiasma-o o facto de haver aqui uma hipótese de perenidade que a street art não permite.

Miguel Januário reconhece que o contraste entre o reconhecimento artístico e o anonimato pode ser um processo conflituoso, mas que advém da vontade e escolha do artista em manter a sua actividade de street art como uma carreira artística.

Deste modo, vemos como a street art se interliga com momentos de formação e um conjunto vasto de práticas, desde o graffiti à fotografia e performance, em que o denominador comum é o próprio percurso pessoal de cada artista e os seus objectivos em relação às práticas, e o mote é a vontade de

experimentação.