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A pesquisa “com” criança: trilhando um diálogo etnográfico

CAPÍTULO 4 OS CAMINHOS DA PESQUISA: PERCURSO METODOLÓGICO

4.1 A pesquisa “com” criança: trilhando um diálogo etnográfico

Historicamente é possível perceber que as crianças sempre estiveram à mercê dos ensinamentos dos adultos, pois desde o limiar das sociedades as crianças tornaram-se

“objetos” nas mãos dos mesmos, que lhe impuseram concepções e padrões de vida, desde a forma delas se vestirem, até a forma que as mesmas deveriam se comportar diante dos adultos. Essa é uma visão calcada principalmente na sociedade ocidental, onde infelizmente a criança é pensada a partir de teorias sobre ela e não a partir dela mesma (REDIN, 2009; MACHADO, 2010).

Para Corsaro (2011), durante muito tempo, muitas das pesquisas que abordaram as crianças como foco principal de seus estudos tiveram como ponto de partida de suas investigações a Psicologia do Desenvolvimento, onde a criança era pensada como um objeto de estudo, muitas vezes visando responder aos objetivos dos pesquisadores, calcados em uma visão adultocêntrica, que tinha como parâmetros analisar e estudaras crianças a partir de depoimentos e relatórios de pais, professores e médicos. Nessa direção, Sarmento traz a seguinte contribuição:

A criança foi tomada como objeto de estudo por excelência de uma psicologia do desenvolvimento que pouco dialogou, na maior parte de sua produção com ciências como a sociologia, a antropologia e a história. Daí o paradoxo de termos abundantemente (excessivamente?) escrutinadas, analisadas, classificadas como seres biopsicológicos, mas ignoradas como atores sociais portadores, produtores de culturas” (2008, p. 7).

Ao refletir sobre essa citação, é possível afirmar que muitas das pesquisas acabaram por negligenciar as crianças em suas particularidades, em seus pertencimentos sociais diferenciados. Assim, Ferreira (2008) ressalta que as crianças são ignoradas por que são olhadas e não são observadas, são ouvidas e não são escutadas e, por isso, acabam sendo silenciadas. A partir dessas constatações onde predomina a soberania do discurso adultocentrado é que se situam as pesquisas sobre as crianças.

Em outra direção, este estudo procurou se distanciar de embasamentos teóricos que enxergam a criança como um ser incompleto, um ser que ainda não é, um adulto que virá no futuro, uma pessoa em vias de formação (SIROTA, 2001). Assim, o trabalho trilhou um caminho e dialogou com os estudos em torno das pesquisas “com” crianças que trazem novos olhares, onde as crianças e as infâncias ganham outras discussões e reflexões, que as colocam no foco da cena científica.

Nos estudos “com” crianças elas saem do estado de antagonismo para assumirem o status de protagonistas e deixam de ser objetos e passam a ser sujeitos, colaboradores e participantes das pesquisas, ou seja, a criança passa a tomar parte da investigação científica (CAMPOS, 2008; FERREIRA, 2008). Desse modo, as crianças ganham um lugar

privilegiado, onde é dado destaque às suas “vozes”, elas passam a ser concebidas como atores sociais pertencentes a grupos sociais específicos. A infância é reconhecida como uma construção sócio-histórica se constituindo como uma categoria geracional e estrutural (QVORTRUP, 2010; SARMENTO, 2005; CAMPOS, 2008; FERREIRA, Manuela, 2010; FILHO; PRADO, 2011).

Para enxergar a infância e a criança dentro dessas perspectivas, a Sociologia da Infância tem encampado atualmente vários métodos e processos de pesquisas que têm a preocupação em capturar as vozes, as perspectivas e os interesses das crianças. Vários métodos são adaptados para se adequarem às necessidades infantis, entre eles o mais recomendado é a etnografia (CORSARO, 2009; FERREIRA, Manuela, 2010; AMARAL, 2008).

A investigação etnográfica, de acordo com Mattos (2001), compreende um estudo que envolve a observação direta de uma forma de viver de um determinado grupo de pessoas, que está diretamente ligado à unidade social representativa para um estudo, que poderá ser formada de muitos ou de poucos elementos, e que requer um período prolongado por parte do pesquisador no campo da pesquisa.

Considero importante destacar com base nos estudos de Kakehashi (1996) que nesse tipo de pesquisa a observação, a descrição e a análise do contexto onde vivem os sujeitos investigados são elementos essenciais para compreensão do fenômeno estudado; é relevante destacar, também, que julgamento ou avaliação em torno das condutas observadas não cabem nesse tipo de metodologia.

Para esse contexto, destaco o pesquisador americano William Corsaro, que tem realizado um relevante trabalho nas pesquisas com crianças através do método etnográfico. Para Corsaro (2005), a etnografia envolve um tempo prolongado no campo, pois exige uma observação intensiva por um período de meses ou anos. Para esse investigador esse tempo é necessário para que o pesquisador seja aceito pelo grupo e ganhe status participante, o que significa ter como princípio integrar-se ao grupo.

É nessa esfera que entra a observação participante, onde o investigador mantém com os participantes estudados uma relação de parentesco, não somente estando “lá” mais estando “com” (VASCONCELOS, 2010). Posso inferir que é nessa linha de raciocínio que se situam os estudos etnográficos de Corsaro (2005) abordando a importância do “tornar-se nativo”, o que para ele significa que os pesquisadores entrem no campo, sejam aceitos, estudem e participem da vida cotidiana das crianças.

Os estudos de Filho e Prado (2011), que também defendem a etnografia com crianças, ressaltam que muitos estudiosos dessa área revelam que “em pesquisas educacionais não é possível levar ao ‘pé da letra’ os preceitos clássicos da etnografia” (2011. p. 97). Para esse autor, muitos desses estudiosos a partir dos estudos de Marli André sugerem algumas possibilidades de termos que podem ser adotados nas pesquisas etnográficas com crianças:

(...) tal qual, André (1995), a necessidade da adição de palavras como orientação, do tipo, de inspiração, de cunho para situar a diferença entre fazer etnografia e utilizar essa ferramenta como um dos instrumentos de observação (FILHO; PRADO, 2011, p. 97).

Nesse sentido, Silva, Barbosa e Kramer complementam a reflexão anterior e trazem uma importante contribuição em relação à metodologia nas pesquisas com crianças:

O resultado, do ponto de vista metodológico, não é uma “etnografia” no sentido estrito, tanto pelas estratégias adotadas, quanto pela reflexão sobre os pressupostos e implicações dessas interações na educação das crianças, embora com certeza irá se beneficiar das estratégias do trabalho etnográfico (2008, p. 83).

Ancorada pelo que aqui foi exposto e com base no referencial teórico desse trabalho, fiz a opção de realizar uma investigação qualitativa de abordagem etnográfica. Compreendo que esse tipo de pesquisa é um instrumento importante para aprimorar o conhecimento sobre a infância e sobre a criança. Colocar em destaque o ponto de vista e as experiências das crianças se constitui como elemento essencial para compreender os fenômenos sociais que lhes dizem respeito.

Outro ponto importante nesse tipo de investigação é que quanto mais detalhada e disciplinada for a observação etnográfica, ela poderá se utilizar de diversos instrumentos para capturar os dados (CORSARO, 2009a; FILHO; PRADO, 2011; ADES, 2009; REDIN, 2009).

Outra questão que foi considerada desde a minha entrada no campo de pesquisa foi a forma de utilização dos instrumentos para colher os dados, pois eles esbarram nas questões éticas em especial nos estudos com crianças, que envolvem a compreensão e a análise dos dados construídos face a face com os sujeitos da pesquisa.

Nessa direção, a maioria dos estudos na atualidade que colocam a infância e a criança como eixo principal de suas discussões revela que a dimensão ética é um desafio e uma dificuldade que devem ser enfrentados nessas pesquisas. Nela, destacam-se questões como anonimato, privacidade, negociações em torno dos consentimentos, formas de ampliar a

participação das crianças e o comprometimento com a devolução dos dados (KRAMER, 2002; DELGADO; MÜLLER, 2005; FERREIRA, 2008; FILHO; PRADO, 2011). Essa foi sem dúvida uma preocupação e um cuidado constante durante a minha permanência no campo investigativo.