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CAPÍTULO 3 INFÂNCIA, EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA, ARTE E SEU ENSINO

3.1 Uma breve abordagem histórica

O conceito de infância foi sofrendo alterações e ganhando novos significados ao longo do tempo, emergindo a partir de olhares, de reflexões e de discursos, que variam entre sociedades, culturas e comunidades, variando também de acordo com a estratificação social e a definição institucional dominante em cada época.

A noção de infância, tal como percebemos hoje, nem sempre existiu, como ressalta Ariès (2011), ao investigar como historicamente foi se construindo a infância como categoria social. E é considerando a infância uma categoria social que o referido autor problematiza que a infância não se constitui uma experiência universal e fixa, mas sendo construída social e historicamente. Seu conceito varia de acordo com as formas de organização das sociedades e deve considerar a diversidade que constitui os sujeitos, ligada a questões como gênero, classe, etnia, cultura e história.

Nessa construção, Ariès (2011) é apontado por alguns estudiosos como sendo um dos teóricos da História da infância que dá destaque às formas pelas quais os adultos concebem a infância, ressaltando que essas concepções têm sofrido alterações desde o ponto de partida desses estudos, no final da Idade Média. Para eles, Ariès prestou uma relevante contribuição aos “novos” estudos sociais da “infância”, por ter sido ele o primeiro estudioso que demonstrou “ser a infância uma construção social e histórica e não um fato natural e universal das sociedades humanas” (MARCHI, 2010; FRANCISCHINI; CAMPOS, 2008).

A visibilidade da infância só emerge na modernidade, entendida inicialmente numa perspectiva de falta, inocência, impureza. Mas, é principalmente no século XX que as

discussões sobre a infância passam a corroborar o entendimento das crianças como sujeitos sociais protagonistas nas relações educativas.

Tal como revelam Ariès (2011) e Postman (1999), na Idade Média as crianças eram consideradas seres biológicos, não existia para elas autonomia existencial, elas eram consideradas seres inferiores, incapazes, não habilitadas a emitir opiniões válidas, vistas como adultos em miniaturas, pois não existia distinção entre crianças e adultos:

Na sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida, o sentimento da infância não existia - o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto. Essa consciência não existia (ARIÈS, 2011, p. 99).

Essa falta de atenção para com a infância fica evidente quando Postman (1999) e Ariès (2011) afirmam que no período medieval quando a criança saía do desmame era inserida precocemente no meio dos adultos como um igual, passando a viver independentemente, cuidando de si mesma, adaptando-se aos costumes e ao modo de ser e de viver desses adultos.

Esse foi um período marcado pelo grande índice de mortalidade infantil, em que a morte das crianças era vista como algo normal. A indiferença em relação às mortes das crianças permeava o mundo adulto, pois, como a maioria das crianças não sobrevivia, os adultos evitavam se envolver emocionalmente com elas. Postman (1999) aponta outros aspectos marcantes desse período como: a falta de alfabetização; a inexistência do conceito de educação e a falta do conceito de moralização. Essas são razões pelas quais o conceito de infância não existiu no mundo medieval. Para Sarmento (2004), esse foi um período em que as crianças tinham realidade empírica, mas não tinham autonomia, nem como sujeitos de ação, nem como uma categoria geracional com reconhecimentos e direitos próprios.

Na Idade Moderna, com a redução da mortalidade infantil, com os avanços das ciências, das tecnologias, com as mudanças econômicas e sociais, surge a invenção da prensa tipográfica. Esse acontecimento alavanca a importância da leitura e da escrita. Surge então o interesse em torno da educação das crianças. Assim, o mundo do adulto alfabetizado é separado do mundo das crianças analfabetas. Essa nova fase adulta excluiu as crianças do mundo dos adultos, tornou-se necessária a criação de um novo mundo em que a criança pudesse habitar. “Esse outro mundo veio a ser conhecido como infância” (POSTMAN, 1999, p. 34).

Nesse contexto da Modernidade, é instaurado o lugar do ‘aluno’, pois se iniciam a preocupação e o interesse por parte dos adultos para que a criança aprenda a ler e a escrever, e para isso torna-se necessário um processo de escolarização, pois a escola passou a ser vista como um meio para educar as crianças, representando também um instrumento de passagem do estado da infância para o do adulto. Assim, surgem também a preocupação e o cuidado do adulto em relação ao desenvolvimento da criança, passando a preservar sua inocência e sua ingenuidade, evitando que ela pudesse estar exposta à maldade e à crueldade de certos adultos. Nessa expectativa, começaram a ser desenvolvidas estratégias de mudanças para receber a infância, começando pelos modos de vestir as crianças estendendo-se para elaboração de atividades específicas para elas.

Segundo os estudos de Ariès (2011), a invenção da infância nasceu dentro do contexto histórico e social da modernidade junto às classes médias e foi marcada por dois sentimentos: a paparicação e a moralização. A paparicação estava inserida no seio da família e significava paparicar a criança, ou seja, achá-la engraçadinha, bobinha e pura, onde a criança representava um brinquedo gracioso para distração do adulto que insiste em manter a pureza e a inocência dela.

A moralização, por sua vez, surge no âmbito da escola a partir de eclesiásticos, moralistas e educadores no século XVII, que criticaram a paparicação, pois consideravam que esse sentimento era responsável por as crianças se tornarem mimadas e mal educadas. Esse foi um período marcado por uma educação moralista e pedagógica com o intuito de treinar, conduzir, corrigir e controlar a criança, visando fazer delas homens racionais e cristãos (ARIÈS, 2011).

Sarmento (2004) esclarece que foi nesse contexto que surgiu a infância como categoria social, de onde emergiram os estudos nos quais a criança e a infância eram pensadas a partir das instituições da família e da escola. Algumas das implicações que surgem sobre essa questão são as críticas em torno da Sociologia Tradicional, por seus estudos relacionados à infância e à criança ficarem incorporados aos estudos da Sociologia da Educação e da Sociologia da Família. Esses estudos não consideraram a criança como foco de pesquisas, priorizando o processo de socialização e o percurso escolar. Enquanto a Sociologia da Educação enxergou a criança dentro de critérios ligados à escolarização, por outro lado a Sociologia da Família trouxe a criança para ser objeto de práticas educativas encampadas pelos pais:

Isto é, nestas disciplinas, a infância/criança eram objetos subsumidos ou indiretos de análise, sendo investigadas através das instituições sociais que têm por função a sua socialização. Neste sentido, o foco da investigação esteve sempre voltado a estas instituições e aos processos de socialização e nunca à infância ou às crianças elas mesmas (MARCHI, 2010, p. 187).

Muller e Carvalho (2009) complementam essa reflexão quando afirmam que a Sociologia Tradicional fortaleceu a ideia das crianças vistas como fardos sociais, reconhecendo que nas teorias da socialização a infância era concebida como um período de dependência separada do mundo social mais amplo. Nesse sentido, de acordo com Marchi (2010), as crianças na Sociologia da Educação e na Sociologia da Família não foram estudadas com autonomia conceitual, pois a criança era vista como um ser ausente, sempre pensada sobre a perspectiva das instituições da família e da escola, que por sua vez focalizam seus estudos na adolescência e na juventude. Apesar da preocupação da Sociologia em discutir a infância, ela não reservou às crianças uma atenção específica: “De fato a sociologia tradicional não ignorou as crianças, mas as silenciou” (MÜLLER; CARVALHO, 2009, p. 22).

Essas autoras também destacam que o pensamento da Sociologia sobre a criança tem raízes no trabalho teórico sobre socialização, pois a criança era enxergada a partir das instituições e não vistas a partir dela mesma. Essa forma de ver a criança nos leva a refletir sobre alguns paradigmas que foram sendo perpetuados através dos tempos estendendo-se para a esfera atual, através dos campos da Educação, da Pedagogia, da Psicologia e da Sociologia, que nos fazem enxergar ainda a infância e a criança, como já foi destacado, dentro de um pensamento que coloca em foco a paparicação, a inocência e a moralização:

Profissionais da educação, pedagogas/os, psicólogas/os, sociólogas/os, enfim todas/os nós esbarramos ora nas representações de paparicação, ingenuidade, graciosidade, pureza e inocência vividas na poesia de Abreu: “Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais (...)”. Ora nas representações de futuros adultos, como vir -a -ser, incompletas, que necessitam da moralização e da educação ministradas pelos adultos (DELGADO, 2003, p. 5).

Essa visão dá ênfase a um estado de inocência em que as crianças são vistas como bobinhas, passivas e obedientes, que desde seus nascimentos necessitam ser educadas dentro de parâmetros calcados nas instituições da família e da escola, visando à assimilação da moral e dos costumes, dentro de perspectivas éticas e morais do ponto de vista do adulto, que por sua vez vai projetar na criança um adulto que virá no futuro.

Para Müller e Hassen (2009), essa visão de ser incompleto que somente conseguirá a maturidade na fase adulta tem influência do pensamento de Durkheim (1994), que parte de uma associação da educação com processo de socialização, onde eram impostos às crianças pelos adultos as maneiras como elas deveriam ver, sentir e agir, pois as mesmas não eram consideradas capazes de conseguir desenvolver sozinhas esse feito:

Especialmente a Sociologia da Educação permaneceu durante um longo período presa à definição durkheimiana de imposição de valores adultos sobre a criança, levando estas a permanecerem em silêncio, “mudas”, ou seja, em uma posição marginalizada e passiva diante do mundo adulto (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2010, p. 42).

Na direção argumentativa e interpretativa totalmente oposta do que vinha sendo preconizado pela Sociologia da Educação, surgem em 1980 os estudos da Sociologia da Infância (SI5), na tentativa de se afastar dessa visão adultocêntrica, para dar ênfase à criança e à infância, a partir de outros olhares, de novas reflexões e de outras linhas de pensamentos. Esses estudos têm como proposta principal pensar as crianças a partir delas próprias e para tirar a criança e a infância do interregno em que estavam colocadas, trazendo inflexões na tentativa de falar das mesmas a partir de outros referenciais.