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CAPÍTULO II – UM EXERCÍCIO PARA A COMPREENSÃO SISTÊMICA DO ENSINO E

2.9. A pesquisa de cunho etnográfico em sala de aula

Como posso pesquisar uma sala de aula como um espaço relacional complexo e multifacetado adotando uma perspectiva sistêmica? Como posso observar, documentar e explorar dentro da perspectiva da objetividade entre parênteses o multiverso desses espaços interacionais? De que maneira posso constituir um olhar para a diversidade de ações e sentidos configurados em uma sala de aula? Como construir uma inter-relação entre as ações/emoções relacionais dos participantes e os sentidos que esses atribuem as essas ações/emoções?

Segundo o etnógrafo Frederick Erickson (2001), a etnografia de sala de aula “é o método de pesquisa fundamentalmente mais construtivista à nossa disposição”. Utilizando-a, não preciso adotar uma justificativa metodológica pautada no pêndulo teórico polarizador da tradição ocidental. Este pêndulo está presente na metodologia de pesquisa em ensino/aprendizagem de língua estrangeira através do dualismo quantitativo/qualitativo e de seus imbricamentos dicotômicos como o par objetivo/subjetivo. Essa escolha significa, sobretudo, colocar-me como um observador que, configurado numa objetividade entre parênteses, sou responsável por reconhecer que as categorias conceituais do sistema que analiso foram criadas por nós (observadores) e escolhidas por mim (a partir de minhas emoções), para responder a determinadas questões (que são também especificadas por este observador).

Portanto, escolher um enfoque qualitativo é optar por um modo de ver a sala de aula que pode abrir janelas para a compreensão dos fenômenos do meu interesse. Dentre as abordagens metodológicas correntes no campo de pesquisa sobre ensino/aprendizagem de língua estrangeira, acredito que uma abordagem qualitativa de cunho etnográfico, aliada a uma pesquisa narrativa, possa me auxiliar a responder de maneira adequada às questões que me interessam. Nesta seção vou explorar conceitos fundamentais da pesquisa de orientação etnográfica na sala de aula. Em linhas gerais, uma abordagem etnográfica procura investigar e compreender a cultura interacional de um grupo de pessoas específicas em circunstâncias

particulares, envolvidas numa atividade coletiva, a partir da imersão-participativa do pesquisador nesta cultura por um determinado período. Esse tipo de atuação é chamada de observação participante. Como o etnógrafo educacional Fredrick Erickson (2001:14-15) aponta, o “processo de observação participante pode gerar insights sobre a organização das ações/interpretações coletivas de cenas corriqueiras do cotidiano das salas de aula”.

A etnografia tem como objetivo integrar um observador/pesquisador numa cultura e descrever/explicar aquela cultura. O pesquisador etnográfico procura observar uma micro-cultura, documentando determinados eventos recorrentes para jogar luz no que procura examinar e, a partir daí, ir se aproximando dos participantes daquele espaço e explorando os significados que esses constroem e atribuem a suas interações, utilizando-se de questionamentos gerados em suas observações. O foco principal da etnografia é a descrição e a explicação dos padrões comportamentais de uma cultura a partir das interpretações dos participantes e do pesquisador sobre as ações daqueles que vivem uma determinada cultura. Para tanto, utiliza-se de técnicas como notas de campo escritas pelo pesquisador, sessões de aula gravadas em vídeo/áudio, entrevistas com os participantes com gravação em áudio, e posterior transcrição, questionários de levantamento de informações no início e final do período de coleta dos documentos.

O valor da etnografia como metodologia de pesquisa qualitativa está relacionada com suas perspectiva êmica e visão holística. O modo como pretendo implementar essa última será por meio de uma descrição densa (Geertz, 1973) daquele espaço sociocultural de ensino/aprendizagem no qual, durante um período regular de estudo - um semestre letivo, o observador participante se integra e documenta de maneira amplificada o que se passa naquele contexto. O conceito de descrição densa (Geertz, 1973) busca um tipo de esforço intelectual que envolve a observação mais rica possível e a interpretação cuidadosa de culturas particulares. Esta atividade é realizada na socialização e na participação do pesquisador no conviver com um determinado grupo de pessoas. Neste processo de investigação e participação, o pesquisador procura estabelecer conexões, padrões, rupturas e significados das ações no emaranhado sistêmico das relações humanas ali estabelecidas. Isto se dá com a coleta de documentos de campo variados. Estes podem apresentar diferentes perspectivas dos participantes e do pesquisador, um processo distinguido como triangulação. Com base nestes documentos, o pesquisador pode estabelecer um intercruzamento de suas obsersevações que auxiliam na compreensão do processo de transformação na convivência da sala de aula.

Já a perspectiva êmica oferece a possibilidade de comparação contrastiva entre como os participantes falam sobre o processo de aprendizagem e o que fazem em momentos

específicos. Desta maneira, um dos focos principais de uma abordagem etnográfica é procurar saber o que os alunos e um professor numa sala de aula fazem e dizem sobre aqueles fazeres. Um dos grandes objetos de estudo da etnografia objetiva trazer à mão a visão do participante - a visão êmica - sobre sua experiência naquela cultura. Nas palavras de Frederick Erickson (2001: 12), um dos etnógrafos proeminentes da tradição ocidental:

O que são os métodos da etnografia e microetnografia educacional? Os propósitos essenciais dessas abordagens são documentar em detalhe o desenrolar dos eventos cotidianos e identificar os significados atribuídos a eles tanto por aqueles que deles participam, quanto por aqueles que os observam. O trabalho idealmente envolve observação e participação de longo prazo no cenário que está sendo estudado com a finalidade de propiciar familiarização com os padrões rotineiros da ação e interpretação que constituem o mundo cotidiano local dos participantes. A ênfase nessa pesquisa é descobrir tipos de coisas que fazem diferença na vida social; ênfase no qualitas mais que na quantitas.

Segundo Van Lier (1988: 55-57), o uso de uma etnografia implica em que o pesquisador observe e pergunte continuamente sobre o quê os participantes pensam sobre o que fazem na sala. Esses procedimentos podem variar do mais estruturado para o menos estruturado, do mais controlado para o menos controlado. A observação etnográfica tende a ser menos seletiva a priori, e tende a selecionar o que explorar à medida que padrões interacionais recorrentes e inusitados vão surgindo nas ações e nas falas dos participantes sobre suas ações na sala de aula. A esse respeito, Erickson (2001: 13-14) aponta que:

O etnógrafo usa dois meios primários de coletas de dados: observar e perguntar. O que as ações das pessoas significam para elas pode ser aparente a partir da observação, no entanto, é necessário perguntar-lhes por meio de entrevistas formais e informais para confirmar tais sentidos. Observar e perguntar podem gerar diferentes fontes e tipos de coletas de dados: notas de campo, comentários de entrevistas, gravações que se tornam base para transcrições de comportamentos verbais e não verbais e documentos locais. (...) Na medida em que a análise vai sendo realizada, e as intuições acerca dos padrões desenvolvidos com base em notas de campo são cruzadas e confirmadas em relação aos dados das entrevistas ou documentos locais, tem-se uma evidência mais forte do que se a evidência viesse apenas de uma fonte de informação. O termo formal para isso é “triangulação”.

Desta maneira, um estudo de cunho etnográfico, relatado num artigo por Laura Miccoli e Merril Swain(1994), investigou as experiências de sala de aula vivenciadas por uma aluna japonesa de inglês como segunda língua no Canadá. Esse aborda a ação efetiva dos alunos de uma sala na confluência de variáveis sociais e afetivas e o papel da reflexão no seu processo de transformação em sala de aula. No artigo, a aluna distinguiu seu processo de integração na comunidade da sala de aula a partir de diferentes fases: ansiedade, depressão e felicidade. Nesse último estágio, a aluna sentiu que era valorizada pelos colegas como um membro efetivo daquele grupo, que contribuía para o desenvolvimento das atividades

propostas. Do ponto de vista dessa aluna, essa dinâmica emocional apresentou relações efetivas com seu envolvimento nas atividades de ensino/aprendizagem naquela sala de aula.

Além desse trabalho, que serviu como piloto para o estudo posterior de seu doutoramento, Miccoli (1997) argumenta, num estudo etnográfico sobre as experiências individuais e coletivas de aprendizagem de seis alunos de Letras da UFMG ao longo de um semestre letivo na faculdade, que do ponto de vista dos participantes o processo de ensino/aprendizagem de uma segunda língua envolve experiências que vão além dos domínios lingüísticos e cognitivos que são acompanhados por experiências sociais e afetivas, assim como são relacionadas com experiências prévias dos alunos. Estas experiências são tão inter-relacionadas que foi difícil compreendê-las de maneira separada.

Sobre o domínio afetivo Miccoli (1997: 138) aponta também que seus dados etnográficos sugerem que sentimentos negativos, positivos, motivacionais, de interesse e esforço são questões que afetaram os participantes em seu estudo. Uma experiência recorrente coletiva observada por ela diz respeito ao medo dos participantes de serem criticados pelos colegas, que resultava na não participação de alguns alunos em certas tarefas. Miccoli (1997) aponta ainda uma outra situação recorrente: os alunos demoravam para responder a uma questão do professor, que tinha que fazer a pergunta no mínimo três vezes. Os participantes disseram na entrevista que não respondiam por que temiam ser criticados pelos colegas e serem rotulados como esnobes ou sabichões. Além desse, um outro relato sobre o domínio afetivo e sua relação com as ações compartilhadas e aceitas como legítimas pelos membros daquele grupo diz respeito à emoção de fazer parte de um grupo, emoção de pertencimento semelhante ao estudo da japonesa no Canadá.

Estudos como os de Laura Miccoli (1997) e Swain e Miccoli (1994) parecem-me pertinentes uma vez que argumentam que fenômenos emocionais, que surgem nas ações efetivas dos participantes como, por exemplo, atitudes/atividades competitivas que excluem determinados alunos da participação dessas mesmas atividades, medo de ser criticado e uma sensação de isolamento do resto da turma - marcam profundamente as experiências de alunos, assim como apresentam impactos profundos na sua aprendizagem e em seu desempenho efetivo. Essas disposições para ação surgem nas interações entre os alunos e seus colegas na sala, assim como fazem parte de uma modulação histórica que um aluno traz, de maneiras diversas, para a sala de aula. Note-se que uma das teses centrais da Biologia do Conhecer argumenta que o conhecer é um ou se dá num compartilhar efetivo com outros num mundo, e que é nesse compartilhar mútuo que construímos mundos em comum. Retomarei a pesquisa

de Miccoli (1997) e Swain e Miccoli (1994) ao discutir os resultados desta pesquisa, que fortalecem e trazem contribuições para pesquisas qualitativas de cunho etnográfico.