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CAPÍTULO II – UM EXERCÍCIO PARA A COMPREENSÃO SISTÊMICA DO ENSINO E

2.3. Entre máquinas e seres vivos

Elaborada por Humberto Maturana e seu aluno e colaborador Francisco Varela, no início da década de 70, como uma proposta explicativa para compreender o que são os seres vivos, a então denominada teoria da autopoiese foi formalizada em um livro intitulado De maquinas y seres Vivos28. Esse livro procura distinguir os seres vivos das máquinas, a partir de um certo tipo particular de organização biológica a que os autores denominaram de organização autopoiética. Para tanto, mostraram que os seres vivos se “auto-produzem” (sistema autopoiético), ao se configurarem como sistemas dinâmicos que são o produto de seu próprio funcionamento, enquanto as máquinas são “produzidas por outros” (sistema alopoiético), já que há sempre alguém que as desenha, programa e as informa para executar uma determinada tarefa. Assim, os seres vivos não têm uma finalidade específica, um propósito de funções e ações programadas e programáveis como as máquinas. Dado o fechamento operacional do sistema nervoso, os seres vivos não são passíveis à instrução e à internalização de informações provenientes do meio, como são os computadores.

A Biologia do Conhecer se constitui como um mecanismo explicativo dos processos cognitivos dos seres humanos, oriundos da operação dos mesmos como seres vivos, envolvendo reflexões voltadas para sua história evolutiva e a natureza do conhecer para as explicações científicas da linguagem. A partir de um mecanismo conceitual recursivo e observável na experiência cotidiana dos seres humanos, Maturana oferece um aparato epistemológico diferenciado para explicar nossa experiência cognitiva e nossa linguagem no mundo. Ele considera o ser vivo como um sistema determinado estruturalmente,

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Ver a esse respeito, Maturana e Varela (1973). Foi com entusiasmo que li, pela a primeira vez, um autor de importância no cenário nacional da lingüística aplicada, Hilário Bohn (2002), fazer referência a esta obra de Maturana e Varela (1973) em seu artigo: “Lingüística Aplicada e Contexto Brasileiro: Reflexões e Boa prática”. Segundo o autor: (...) “Precisamos continuar aprofundando a discussão (epistemológica). Se havia motivos para efetivar este diálogo no passado, hoje parece que temos razões mais convincentes para retomarmos o debate. A noção de ciência, os novos paradigmas de pesquisa, a noção de complexidade apresentada por pesquisadores como Morin (1999) e Mariotti (2000), e as noções de corporeidade e autopoiese como propostas por Maturana

operacionalmente fechado, em acoplamento estrutural no meio, fruto de uma prolongada história filogenética que é reconstruída através de cada história ontogênica, num modo de vida particular que resulta no ser vivo observado.

Tendo como partida nossa dinâmica celular e neurobiológica, a Biologia do Conhecer dispensa o uso do conceito de representação mental, cognitiva ou neurobiológica (engrama neuronal), ou da postulação de qualquer outro intermediário epistêmico entre o mundo e o ser que conhece. Com o conceito de acoplamento estrutural perde-se a necessidade de postular conceitos, entidades e níveis que medeiam a relação indireta entre o indivíduo e seu meio social, ao propor que nossas interações num meio particular de ações geram perturbações sensoriais que podem desencadear mudanças estruturais na dinâmica de relações corporais internas do organismo, incluindo o sistema nervoso, de modo que tais modificações estruturais sejam congruentes com as transformações externas desencadeadas em seu domínio operacional de ações. Assim, o que observo como cognição é a congruência operacional do organismo no meio, uma ação efetiva. O acoplamento estrutural é uma constante na vida dos seres vivos e não uma variável.

Dessa maneira, nossa fisiologia e nosso domínio de ações comportamentais fluem junto, de maneira congruente, embora estes sejam domínios operacionalmente distintos e não intersectantes. A cognição ou o conhecer constitui, pois, uma ação efetiva que é a expressão de uma congruência operacional em domínios de ações distintos – o do comportamento e o da fisiologia – fruto de um constante fluir de mudanças estruturais de um organismo em acoplamento estrutural, num meio de ações particulares. Com efeito, para a Biologia do Conhecer, todo o conhecer é um fazer, todo fazer é um conhecer. No processo de deriva ontogênica, ou seja, no curso de mudanças estruturais de um ser vivo num meio, o ser vivo e o seu meio mudam juntos. Quando se perde a congruência operacional o ser vivo perde sua organização, desintegra-se, morre. O conhecer, portanto é um fenômeno biológico constante para os seres vivos: viver é conhecer e conhecer é viver. O comportamento adequado distinguido por um observador através da resposta a uma pergunta, por exemplo, se apresenta como a expressão do conhecer. Ser e conhecer na obra de Maturana são configurados em conjunto na convivência humana.

O conceito de determinismo estrutural postulado pela Biologia do Conhecer diz respeito ao operar do sistema de acordo com sua estrutura, ou seja, de acordo com o jogo das propriedades de seus componentes. Somente as propriedades dos componentes do sistema podem especificar o que pode acontecer com a estrutura do sistema. Nada oriundo do meio pode especificar o que vai acontecer com o sistema, uma vez que o organismo é

operacionalmente fechado. Assim, a Biologia do Conhecer rompe com o discurso computacional e com as metáforas do tubo, da aquisição e do contêiner (cap. I). Esse referencial teórico também supera as dicotomias e polarizações tão imbricadas no pensamento ocidental, através do estabelecimento de uma modulação mútua efetiva entre organismo e meio, entre ação e conhecimento, entre emoção e cognição, que não isola o domínio biológico do domínio sociocultural.

A Biologia do Conhecer assimila fatores não quantificáveis como o contexto, a emoção, a história, e fatores pessoais como elementos essenciais ao seu mecanismo explicativo. Em especial, as emoções, definidas como disposições corporais dinâmicas para ações, assumem o domínio emocional como incisivamente relacionado com os domínios cognitivo e lingüístico. Os fenômenos cognitivos e lingüísticos são compreendidos como processos e ações circulares, dialógicos e sistêmicos, intimamente imbricados, históricos, relacionais e interacionais, nos quais se entrelaçam nossa emoção e nossa razão. Maturana e Varela (2001: 140-146) propõem, através da noção de fechamento operacional do sistema nervoso, que seu operar não pode ser nem representacional, nem solipsista. O sistema nervoso opera através de contínuas dinâmicas de correlações internas, e é o estado estrutural deste sistema (incluindo seu emocionar) e não as variáveis do meio instrucional (os inputs) que especificam que perturbações emergentes na interação dos indivíduos podem desencadear mudanças (transformações) em sua dinâmica de correlações internas. Assim, para a Biologia do Conhecer o sistema nervoso não opera de maneira adequada fazendo representações do mundo que o cerca. O sistema nervoso opera através do desencadear de mudanças estruturais nas relações de estados da rede de conexões neuronais.

Deste modo, definir o sistema nervoso, como um computador, com entradas (input) e saídas (output), que processa informações, as armazena e as acessa, seria equivocado. Não há, nesta perspectiva neurobiológica, interações instrutivas com o meio interacional, mas uma congruência operacional, uma coordenação comportamental adequada, num domínio de acoplamento estrutural no meio em que se vive. Note-se que, desta maneira, é o indivíduo, um observador, que especifica em suas interações num meio o que pode ser ensinado/aprendido e não o meio instrucional que especifica a aprendizagem. E quem especifica se há ou não conhecimento é aquele que pergunta num contexto relacional de acordo com os critérios estabelecidos por quem faz a pergunta. Se a resposta satisfizer a pergunta que se questiona, pode-se dizer se a pessoa questionada conhece ou não. Ou seja, se ela comporta adequadamente de acordo com os critérios estabelecidos na pergunta. A questão do conhecimento então aqui tem relação com a identificação e validação do comportamento

adequado num domínio particular de ações, num contexto de observação no qual uma ação é efetiva/adequada. Discutirei algumas implicações desta maneira de conceber a cognição ao discutir a relação entre crenças, avaliação e conflitos entre estilos de ensino e aprendizagem no capítulo que segue as histórias dos participantes.

Portanto, na perspectiva da Biologia do Conhecer não há (nem pode haver, haja vista o fechamento operacional do sistema nervoso) transmissão de outputs, nem internalização de informações lingüísticas (inputs) numa memória, ou no sistema nervoso dos alunos de uma língua. Não há tampouco o desdobramento de uma gramática nuclear interna especificada a priori que passa a receber parâmetros diferenciadores periféricos do insumo de uma língua que passa a produzir regras de manipulação de representações semânticas. Nada proveniente do meio interacional pode especificar o que vai acontecer com a estrutura do sistema de um ser vivo. Conforme Maturana (1997 [1978]: 144) aponta na perspectiva da Biologia do Conhecer:

Qualquer descrição do aprendizado em termos da aquisição ou da representação do ambiente é, portanto, meramente metafórica, e não tem qualquer valor explicativo. Além disso, tal descrição é necessariamente enganadora, porque implica um sistema no qual interações instrutivas tenham ocorrido em um tal sistema está, epistemologicamente fora de questão.

Dessa maneira, o que se experimenta no ensino/aprendizagem de uma língua é a transformação estrutural da fisiologia do organismo, no âmbito das interações recorrentes estabelecidas e agenciadas pelos próprios participantes de uma sala de aula. Estas interações, se forem suficientemente recorrentes por um período suficientemente prolongado, e se tomados como significativo pelo agente, podem desencadear mudanças estruturais no ser vivo. Portanto, não há especificações anteriores às atividades realizadas pelos alunos interactantes num domínio particular de ações que são por eles mesmos especificados.

As interações recorrentes num meio geram perturbações que modulam a dinâmica estrutural de um ser vivo. Assim, o conhecer não é uma percepção, no sentido de uma captação e apreensão de algo externo aos seres humanos, nem é muito menos a manipulação mental de símbolos ou a mediação de construtos psicológicos. O conhecer é o transformar-se num meio particular de interações e ações recorrentes e consensuais que podem gerar comportamentos que se estabilizam e geram padrões de atividade. No estabelecimento de um domínio de interações e de convivência, as dinâmicas corporais – bem como as emoções – favorecem que eles coordenem ações recorrentes e distinções consensuais numa dinâmica recursiva que dá origem a novos elementos. Assim, é possível promover transformações em suas dinâmicas de ações e dinâmicas corporais internas, que podem levar à estabilização de

coerências operacionais nos domínios da fisiologia e do comportamento. Essa possibilidade depende da própria estrutura do organismo, incluindo sua dinâmica emocional. Num espaço de interações particulares, o emocionar modula o curso de ações de um agente.

Nesta perspectiva, os processos distinguidos por um observador como mentais são dinâmicas que ocorrem nos domínios relacionais e interacionais do viver humano, o que Maturana costuma distinguir como espaço psíquico, um modo de viver, seja ele em suas dimensões reflexivas, conscientes, ou em suas dimensões que não nos damos conta no viver, inconscientes. Para Maturana (2001) somos na relação e não no físico, embora dependamos dele. Não é fácil admitir que o modo de ser humano não se dá na interioridade corporal (ainda que dependa dela e exista através dela), mas sim na dinâmica relacional. O mental tem a ver com um modo de ser e de estar com outros no mundo e com nós mesmos, que no nosso caso tem relação imbricada com a linguagem. Passamos a desdobrar a emergência dos domínios lingüísticos nos seres humanos e suas conseqüências para as explicações científicas.