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CAPÍTULO II – UM EXERCÍCIO PARA A COMPREENSÃO SISTÊMICA DO ENSINO E

2.5. Linguagem, reflexão e autoconsciência

De acordo com Maturana e Varela(2001: 244-247) a vida social humana, com seu constante acoplamento lingüístico, acabou por produzir um fenômeno distinto do que ocorre com os primatas mais próximos de nós: o surgimento daquilo que podemos conotar como a mente e a consciência. Se perguntarmos a um primata como ele se sente na condição de macaco, a resposta, nestes termos, não virá nunca por causa da sua estrutura biológica e das nossas restrições para desenvolver com eles um domínio de convivência particular que possibilite o surgimento dessas distinções comportamentais, no caso “sentir-se macaco” como distinções da linguagem na linguagem.

Com efeito, Maturana e Varela sugerem que a maneira mais óbvia de se comparar a experiência dos primatas com a experiência humana possa ser, não pela linguagem, mas sim a

partir de um objeto bastante relacionado com a reflexão – o espelho. É comum no reino animal tratarem a imagem refletida no espelho como a presença de um outro animal. Gostamos de colocar um gato ou um cachorro na frente de um espelho e observar como latem e abanam o rabo para sua própria e imagem e, pouco depois, se desligam dessa imagem. Nos primatas tal comportamento não poderia ser diferente: respondem a seu reflexo com uma variedade de gestos. Contudo, os gorilas e os chipanzés, por exemplo, ao se verem no espelho, parecem surpreendidos, mas assim como o cachorro, eles se acostumam rapidamente e acabam por ignorar sua imagem um pouco depois. Com o intuito de compreender melhor esta situação nos gorilas foi realizado um experimento. Anestesiaram um gorila e pintaram, no meio de sua testa, um ponto colorido que somente poderia ser notado quando colocado de frente a um espelho. Assim que o gorila saiu da anestesia, e foi confrontado com sua imagem no espelho, sua mão foi prontamente em direção ao ponto colorido de sua testa.

Os pesquisadores que realizaram o experimento acharam que ele poderia levar sua mão para tocar a imagem refletida no espelho. Acreditava-se que esses experimentos poderiam ser uma indicação que em primatas como os gorilas e chipanzés houvesse uma capacidade de auto-imagem, de reflexão. Se isso é possível, em primatas “superiores”, é motivo de controvérsia e muita polêmica, entretanto, nos seres humanos, a linguagem possibilita que a atividade de reflexão, de auto-imagem, seja inseparável de sua própria identidade. Nas palavras de Maturana e Varela(2001: 254):

Todos esses experimentos nos dizem algo fundamental sobre a maneira como, na vida diária, organizamos e damos coerência a essa contínua concatenação de reflexões que chamamos de consciência, e que associamos a nossa identidade. Por um lado, mostram-nos que o modo de operar recursivo na linguagem é condição sine

qua non para a experiência que associamos ao mental. De outra parte, essas

experiências fundamentadas no lingüístico se organizam com base numa variedade de estados de nosso sistema nervoso aos quais, não temos necessariamente acesso direto. No entanto, nós sempre os organizamos de maneira que elas se encaixem na coerência de nossa deriva ontogênica.

Como os autores argumentam isto é bastante sugestivo ao indicar que na complexa rede de interações lingüísticas, na qual convivemos diariamente, criamos uma permanente recursão descritiva que denominamos como o eu que nos possibilita conservar nossa coerência operacional lingüística e nosso acoplamento estrutural no domínio da linguagem. Ao entrarmos num espaço de ações em que distinguimos objetos e relações entre objetos e vamos criando uma recursividade, neste mesmo espaço de ações, distinguindo objetos de outros objetos e relações de outras relações, construímos aquilo que podemos conotar como autoconsciência. O eu surge na atividade conversacional, assim que um observador distingue o seu observar dele mesmo, e se torna uma distinção, que é vivida na linguagem como um

outro objeto em relação a outros objetos e relações. Passamos aí a ser observadores e descritores de nós mesmos. Humberto Maturana denomina de auto-observação ou autoconsciência este processo de distinção de sua própria observação que cria um novo objeto, o eu em relação ao seu entorno interacional.

Segundo Maturana e Varela (2001: 255), as palavras são ações que coordenamos mutuamente num espaço relacional de distinções de distinções. Essas ações coordenadas não são entidades que transitam entre nossas cabeças. De fato, nossa história de interações recorrentes nos possibilita um acoplamento estrutural lingüístico que compartilhamos com outros, num mundo que especificamos em conjunto imersos em ações recorrentes, de modo que nossas coordenações de coordenações de ações, que caracterizam a linguagem, são constitutivamente inseparáveis de nossa experiência cotidiana como seres humanos.

É a linguagem vivida em contextos socioculturais que possibilita o fenômeno da autoconsciência como a experiência mais íntima do ser humano. Desta maneira, como um processo que distinguimos na rede de acoplamento estrutural lingüístico, o que denominamos de mental não se encontra dentro de nossas cabeças. A consciência não é uma substância do meu cérebro, mas um fenômeno que experienciamos no domínio de acoplamento estrutural lingüístico. É no viver na linguagem que a autoconsciência surge como um fenômeno processual de distinções de distinções e de coordenações de ações recursivas. E como apontam os autores, Robinson Crusoé sabia muito bem disso ao manter um calendário e ler a sua bíblia como se outros existissem em seu meio, uma vez que é na rede de coordenações de ações recursivas que produzimos o que vivemos e quem somos. Quanto a esta recursividade, Paredes-Castro (2003: 69-70) se dirige forma interessante ilustrando esta discussão e explicitando a noção de recursividade:

Trata-se da nova possibilidade operacional de realizar distinções sobre distinções já efetuadas, como quando uma pessoa distingue uma característica específica de um pássaro que havia distinguido anteriormente. Esse mecanismo de meta distinções, aplicado recursivamente aos resultados da operação cognitiva anterior, pode gerar sucessivamente a experiência de distinguir o pássaro (à qual no âmbito comunicativo correspondem, por exemplo, comportamentos de referência a ele), distinguir a cor branca do pássaro, a distinção de aspectos presentes nesta distinção (por exemplo, fazer referência ao conceito de “cor”) e a distinção de ser a entidade que está distinguindo estas distinções de distinções (distinguir-se a si mesmo fazendo referências em termos de identidade e autoconsciência).

Portanto, o domínio da auto-observação, da autoconsciência e o viver na consciência são fenômenos que ocorrem no viver na linguagem, pois é no linguajar reflexivo e recursivo que nos tornamos autoconscientes e produzimos uma consciência no viver. Como seres linguajeiros no domínio relacional, nosso sistema nervoso passa a “linguajar” através de transformações estruturais no viver na linguagem dando origem a uma dinâmica de

correlações sensório-efetoras internas, coerentes com o viver na linguagem, o que nos possibilita a reflexão individual como se estivéssemos operando no discurso. O eu, a mente, a emoção, a reflexão, ou a reformulação de uma experiência no viver na linguagem não estão localizados na corporalidade, embora seja através da operação de sua corporalidade, em sua fisiologia (o que um observador distingue como interno), que estes se tornam possíveis. No entanto, eles só fazem sentido em seus domínios operacionais e relacionais nos quais a linguagem é nosso meio experencial.

Esta é nossa principal dificuldade de entender e explicar a autoconsciência. Estes fenômenos surgem nas conversas, com outros ou consigo mesmo, através das quais o observador distingue seu observar e se torna uma entidade que é vivida como tal na próxima distinção recursiva que é mencionado na conversa que se manipula como entidade. Então, a experiência do eu quando surge, não pode ser observado fora da experiência do eu que o observa. Por essa mesma razão que tudo que dizemos na ontologia constitutiva é sujeito dependente de um observador, que é diferente de (inter-)subjetiva. Considero estas colocações fundamentais para a compreensão deste trabalho. Segundo Maturana e Varela (2001: 29-31):

O momento da reflexão diante de um espelho é sempre muito peculiar, porque nele podemos tomar consciência do que, sobre nós mesmos, não é possível de nenhuma outra maneira. A reflexão é um processo de conhecer como conhecemos, um ato de voltar a nós mesmos, a única oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras e reconhecer que as certezas e os conhecimentos dos outros são, respectivamente, tão aflitivos e tão tênues quanto os nossos. Essa situação especial de conhecer como se conhece é tradicionalmente esquiva para nossa cultura ocidental, centrada na ação e não na reflexão, de modo que nossa vida pessoal é, geralmente, cega para si mesma. Parece que em alguma parte há um tabu que nos diz: “É proibido conhecer o conhecer”. Na verdade, é um escândalo que não saibamos como é constituído o nosso mundo experencial, que é de fato o mais próximo da nossa existência. Há muitos escândalos no mundo, mas essa ignorância é um dos piores.