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5 PROJETOS POLÍTICOS MENORISTA E PROTETIVO: A DISPUTA

5.1 A Constituição de 1988 como referencial político e jurídico do Estado

5.1.2 A proteção integral positivada no art 227 da Constituição de 1988 como um

O art. 227 da Constituição de 1988 positivou a Teoria da Proteção Integral consagrada como princípio nas declarações internacionais, a cronologia e a discussão teórica em torno da diretriz apontou que o Constituinte de 1987 optou em inserir um conjunto preceitual ao dispositivo, delegando ao legislador infraconstitucional um maior aprofundamento. Assim, como posto no segundo capítulo desta tese, caracteriza-se o dispositivo como princípio de direitos humanos de crianças e adolescentes. Ressalta-se que o objetivo deste trabalho não é fazer uma digressão acerca da historicidade dos direitos humanos ou da dicotomia entre direito natural e positivismo jurídico, mas de lançar um olhar acerca de seu caráter de indeterminação.

Os direitos fundamentais, assim considerados, farão parte dos textos constitucionais, na medida em que reconhecem e respeitam a essência do Estado. Para Perez Luño (2001) sua função é principalmente de limitação do poder político, participação social e justificação do próprio Estado, para colocar à prova a estrutura e funcionamento do aparato estatal. O autor enquadra os direitos fundamentais como normas constitucionais programáticas, que exigem do legislador infraconstitucional a concretização em um futuro próximo. Na sua visão, há o problema da demora excessiva no cumprimento dos direitos inseridos em normas programáticas no plano político, causando desencanto de amplos setores sociais, especialmente os mais interessados na sua efetivação. Para ele, as normas programáticas de direitos e liberdades básicas contêm pouco valor jurídico, mas possuem valor político pois significam um compromisso que vincula toda a orientação política estatal. O autor entende que os direitos fundamentais possuem a função e aparecem como princípios organizadores na medida em que colocam limites ao Poder Executivo e Legislativo.

Já Delmas-Marty (2003) defende que os direitos do homem não devem ser dissociados, isto é, devem ser aplicados e interpretados como um conjunto coerente e indivisível, mas adverte que a indivisibilidade não quer dizer falta de hierarquia, uma vez que as limitações temporárias ou permanentes são admitidas pois são transversais já que remetem a valores subjacentes. Nesse sentido, para a autora, é clara a insuficiência do texto constitucional para sua efetivação, sendo necessária além de ação legislativa, uma atuação interpretativa para que tais direitos sejam realizados. A autora propõe a complementação da separação de poderes no seio da sociedade civil e as articulações desta com o Estado, desde que se considere verdadeiro que o princípio da indivisibilidade dos direitos do homem

implique o reconhecimento das relações não apenas civis e políticas, mas também econômicas, sociais e culturais, e que mesmo com esses acréscimos, considera insuficiente a separação de poderes para transformar todas essas determinantes obrigatórias.

Em razão dessas dificuldades há doutrinadores que se posicionam defendendo a irrealidade dos direitos humanos por conta de sua linguagem vaga e ilusória aposta nas declarações nacionais e internacionais de direitos humanos. Villey (2009) é um deles, pois compreende esses documentos como verdadeiras fórmulas desprovidas de sentido que geram falsas expectativas ou direitos utópicos, caracterizando-os como ideais e afirmando que até mesmo quando podem ser exercidos, não o são, já que são contraditórios, indicando que para cada um destes direitos do homem há a negação de outros direitos do homem, que se praticados separadamente originam injustiças. A síntese do autor é que os direitos humanos são interiores ou espirituais, gerando a consequência de carecerem de exterioridade, por não serem stricto sensu direitos, daí decorre a conclusão de que os direitos humanos, assim como hoje são concebidos, não servirem aos interesses de todos.

A partir dos argumentos trazidos pelos autores, detectamos que a urgência na efetivação dos direitos fundamentais faz o Poder Judiciário assumir um protagonismo na concretização de tais direitos através, dentre outros artifícios, da conformação judicial das políticas públicas, produzindo os fenômenos da judicialização da política, atuação imprópria uma vez que a formulação de políticas públicas é atribuição, em regra, do Poder Executivo dentro dos limites estabelecidos pelo Poder Legislativo.

Werneck Vianna (1999, p. 149), ao apontar os motivos da judicialização das relações sociais no Brasil, destaca a invasão do direito em todas elas, sejam púbicas ou privadas, concluindo que a Constituição de 1988 foi a grande responsável por esse estado de coisas com o fim de proteção e de construção do cidadão ideal, que seria forjado pela norma em uma ação pedagógica para o bem comum. Outra causa, essa também apontada por Vilhena (2008) e Rosanvallon (2010), seria a falta de instituições confiáveis para a garantia da reprodução de um sistema democrático no país.

Bucci (2008) observa que a realização dos direitos fundamentais está condicionada a um papel ativo do poder público, destacando a atuação fundamental do Poder Executivo na concretização e aplicação das normas constitucionais. Mas a autora também reconhece a dificuldade na construção de um novo paradigma de concretização das disposições constitucionais, especialmente quando se fala no crivo de outras esferas de hermenêutica no reenvio às normas, legislativas e administrativas, como o Poder Judiciário. Afirma ainda que, no caso brasileiro, a falta de efetivação dos direitos fundamentais é uma questão muito mais

grave, já que a Constituição de 1988 foi carregada de direitos com o objetivo de atender à necessária redemocratização pelo qual o país passava na época, o que na sua visão traz um grande desafio de concretização de tais direitos, afirmando que a ANC 1987 gerou um inflação de direitos que não cabe no PIB. A grande gama de direitos fundamentais reconhecidos universalmente e apostos ao texto constitucional é parte do problema, pois muitos deles são inacessíveis a uma grande parcela da população, necessitando de efetivação.

O Constituinte de 1987 optou em “deixar coisas não decididas”, adiando a tomada de decisões sobre determinadas questões constitucionais para o futuro. Dixon e Ginsburg (2012) apontam para a concretização desse fenômeno que ocorre através da adoção de linguagem constitucional vaga ou de adoção de linguagem específica que delega explicitamente as questões para futuros legisladores, e que não se confunde com falta de efetivação ou que os direitos fundamentais são uma espécie de lirismo constitucional. Para os autores a regulação por legislação infraconstitucional indica uma estratégia alternativa para responder, ao longo do tempo, a novas informações ou circunstâncias, pertinentes a escolhas constitucionais relevantes. Valle (2014) aponta vantagens democráticas adicionais importantes à complementação das imprecisões constitucionais pela via da regulamentação, afirmando que se trata de espaço de densificação dos acordos constitucionais não plenamente construídos quando não se logrou alcançar consensos ao longo do processo constituinte.

Considerando os direitos de crianças e adolescentes, a Constituição de 1988 também prometeu mais do que era capaz de entregar, a disputa ocorrida na ANC 1987 entre menoristas e estatutistas, deu origem a um poder como verdade, ambíguo – protetivo com traços menoristas - materializando a luta interna do poder como verdade representada no bojo da sociedade, delegando ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) a tarefa de resolver a contenda.

O novo referencial normativo, em substituição ao Código de Menores, foi reconhecido internacionalmente como inovador perante as estruturas sociais vigentes, mas manteve ainda em sua essência o prisma adultocêntrico. A emergência de uma nova noção de cidadania a partir da década de 80 buscou quebrar com a tradição conservadora brasileira, refletida especialmente no campo normativo. Mas em verdade o próprio processo legislativo, carregado historicamente por uma tradição conservadora, refletiu construções normativas gestadas como instrumentos de garantia de direitos humanos, que, no entanto, em sua essência, reproduziram as desigualdades e a exclusão social.

Segundo alguns autores, a sociedade brasileira padece de um “vício de raciocínio”, que desfavorece qualquer tipo de mudança. Holanda (1998) caracterizou como “bovarismo”94 um dos traços da cultura brasileira, e que, na sua visão, impede o país de caminhar para mudanças reais em direção à modernização do país (SOUZA, 2013). O bovarismo transposto para o Direito reforça a ideia da tradição jurídica, contribuindo para as dificuldades de aproximação do poder como verdade protetivo do poder como direito ainda menorista.

A dificuldade na transferência e aplicação de modelos globais se apresenta também aqui na seara dos direitos fundamentais, por isso os regimes constitucionais dos direitos humanos devem se adaptar às áreas culturais, individualizando suas acepções de direitos fundamentais de acordo com os valores aceitos e possíveis de serem realizados para a realidade daquele Estado (VERGOTTINI, 2006), assim como nas categorias de Foucault, devem ser compatibilizados o poder como verdade, do poder como direito. Daí decorre a importância da descoberta de novos arranjos institucionais compatíveis com sociedades que combinam heterogeneidades estruturais com pobreza e desigualdade social (MAINWARNING, 1993), como é o caso do Brasil, ajustando essas características com os sistemas políticos vigentes.

A desigualdade social é também um elemento importante a ser considerado, pois assim como Vilhena (2008), compactua-se neste trabalho com o entendimento de que a desigualdade mitiga a compreensão e o conhecimento de conceitos jurídicos básicos, subvertendo a aplicação das leis e o uso da coerção estatal. O autor pontua que a lei e os direitos sob essas circunstâncias podem ser vistos como uma farsa, pois concretizam uma relação de poder onde seus donos negociam os termos de suas relações com os mais excluídos. De acordo com essa perspectiva, o sistema jurídico brasileiro sofre com a incongruência entre as leis editadas e o comportamento dos indivíduos e dos agentes públicos, uma vez que a exclusão social e econômica seria a causa da invisibilidade daqueles submetidos à pobreza extrema, colocando à prova a imparcialidade da lei e desestimulando os dois pólos - donos do poder e excluídos – em obedecer às leis e respeitar os direitos dentro de uma esfera de relações interpessoais. Uma última consequência apontada pelo autor é a

94 O conceito de "bovarismo" nasceu da inspiração da obra Madame Bovary, de Gustave Flaubert. No entanto, a

proposição de um discurso filosófico (inicialmente relativo à psicologia/psiquiatria e posteriormente a um sistema filosófico) em torno do conceito se deu com Jules de Gaultier em algumas obras publicadas no fim do século XIX e início do século XX, época em que se deu a publicação da obra mais central do autor: Le

Bovarisme, de 1902 (GAULTIER, 2006, citado por: DALVI, 2008). A palavra, não com a mesma atenção e

intenção, foi, antes mesmo de Gaultier, utilizada por outros autores, com outros sentidos. A ideia é transposta para o Brasil na obra de Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” quando o autor faz uma análise histórica da sociedade brasileira e traz como novo elemento as possibilidades de mudança social enraizadas nas efetivas condições sóciopolíticas do país (SOUZA, 2013). Kehl (2018) também se dedicou sobre o tema, ao apostar na comparação entre Bovary como metáfora de projeto de vida e a história de sociedades periféricas, a qual o Brasil é um exemplo, concluindo que o fenômeno não favoreceu a modernização desses Estados.

demonização daqueles que desafiam o sistema, apontando os movimentos sociais originados no bojo da sociedade civil organizada como o exemplo mais representativo.