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2 PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: PARADIGMAS

2.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Lei 8.069, de 13 de julho

2.2.3 Prevalência pela convivência familiar e comunitária

A convivência familiar harmoniosa é reconhecida, já no preâmbulo da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, de 1989, como a melhor maneira de alcançar o pleno desenvolvimento da personalidade da criança. A Constituição de 1988 no art. 226 e o ECA a partir do art. 19, reconheceram a importância da família. No mesmo sentido estão as políticas públicas, já que em 2006 foi publicado pelo CONANDA o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) (BRASIL, 2006b); o documento estabelece que, somente quando a família for espaço de violação de direitos da criança e do adolescente, medidas de apoio à família deverão ser tomadas, bem como outras que se mostrarem necessárias, de modo a assegurar-se o direito da criança e do adolescente de se desenvolver no seio de uma família, prioritariamente a de origem e, excepcionalmente, a substituta. O plano traz como princípios a excepcionalidade e a provisoriedade do acolhimento institucional, com ênfase na preservação, fortalecimento e restauração dos vínculos familiares.

O marco doutrinário do PNCFC, produzido por pesquisadores do IPEA (SILVA, 2004), defende a convivência familiar, mas destaca que devem ser levados em consideração os novos aspectos das famílias. A pesquisa aponta que a família brasileira vem passando por mudanças, especialmente a partir da década de 50, pois a aceleração da urbanização e o crescente processo de industrialização trouxeram novos valores em torno deste mesmo conceito. O estudo indica também que hoje no Brasil há uma diminuição do tamanho das famílias e uma diversificação de arranjos familiares, destacando-se o aumento daquelas de característica monoparental, bem como as compostas pelos cônjuges e filhos de casamentos anteriores, ou ainda por membros de várias gerações, dos domicílios multifamiliares e das unidades individuais (SILVA; MELLO; AQUINO, 2004).

Considerando a trajetória das demandas sociais brasileira, a hipótese prevalente a partir do século XX é que pobreza e risco se apresentam associados – e nesse contexto, a resposta primária do Estado era o afastamento da criança e do adolescente do convívio familiar. Pesquisas mais recentes27 apontam que a realidade permanece a mesma,

desconsiderando as mudanças pelas quais as famílias passaram ao longo do tempo,

categoria Estado, na perspectiva de não substituição do ente estatal; em sentido contrário está Kreuz (2012. p. 99).

27 Destaque para pesquisa realizada por Ferreira (2014), que coletou dados nos anos de 2009 e 2010 em abrigos

do estado de Minas Gerais, onde foi aplicado questionário com 43 perguntas divididas em quatro blocos que procurava desvendar, além das características das instituições, as formas como as crianças se relacionavam com a família e a comunidade, além de características das próprias crianças e adolescentes, tais como idade, tempo e o motivo do encaminhamento, sua conclusão é que essas famílias “acabam vivenciando situações relacionadas à pobreza, à violência sexual, ao uso de drogas por parte dos pais e/ou mesmo dos jovens”.

especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade social e econômica. Os primórdios da institucionalidade da política de proteção de crianças e adolescentes no Brasil, datada da década de 40, tinha a perspectiva de “proteção às crianças pobres e suas famílias”, que o fez através da criação do Departamento Nacional da Criança (DNCr)28, e ainda com o objetivo de incentivar a questão social do “menor” foi criado em 1942 o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), responsável por gerir os problemas dos “menores desvalidos e delinquentes”, na linha da Teoria da Situação Irregular e com foco na institucionalização. O SAM estava vinculado ao Ministério da Justiça e tinha uma orientação correcional-repressiva, baseando-se em internatos para adolescentes autores de infração penal e de patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofício urbano para os carentes e abandonados (SARAIVA, 2002).

A inclusão do princípio da prevalência pela convivência familiar e comunitária na Constituição de 1988 e no ECA foi uma estratégia para a superação das práticas de institucionalização das crianças pobres, pois, em consonância com a proteção integral, os serviços de atendimento não deveriam mais ser orientados segundo critérios de culpabilização individual e familiar, que no passado tinham como pano de fundo a situação irregular (MACHADO, 2011).

O ECA prevê que a inserção de crianças e adolescentes em unidades de acolhimento é uma das medidas especificamente protetivas, as quais pressupõem a existência e a manutenção de programas destinados a assegurar tais ações, que devem ser desenvolvidos por entidades de atendimento, governamentais e não-governamentais. Dentre os programas elencados no art. 101 do ECA, o acolhimento institucional, que substitui o antigo termo “abrigamento” (alteração feita pela Lei nº 12.010 de 03 de agosto de 2009, ao ECA), está indicado no art. 92. No plano normativo as unidades ou instituições de acolhimento institucional devem orientar sua atuação para a preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração familiar, pois se destinam a atender a população infantil que está em “situação de risco pessoal e social”, por isso, em consonância com a proteção integral, deve ser medida temporária e utilizado como forma de transição, uma vez que visa, formalmente, à reintegração familiar.

Apesar da positivação orientada para o fortalecimento da convivência familiar, a resposta institucional em favor do abrigamento ainda persiste, colocando em risco a aplicabilidade do princípio (DIAS; SILVA, 2012). A transição da situação irregular para a

28 Já no ano de 1900 foram estruturadas as primeiras instituições estaduais para crianças e jovens em situação de

rua com objetivo de “conter a criminalidade e a vadiagem infanto-juvenil”, como no caso do estado de São Paulo, que criou em 1902 o Instituto Disciplinar para crianças de 9 a 14 anos e a Colônia Correcional para jovens de 14 a 21 anos (NETTO, 1988-1989).

proteção integral com a valorização do convívio familiar se revela de difícil incorporação no imaginário judicial diante de um quadro em que esse mesmo ambiente familiar envolve carências de toda ordem. A racionalidade prevalente é da necessidade do afastamento de um ambiente adverso em decorrência de múltiplas carências, e o afastamento da criança é visto como solução para todas as violações de direitos pela qual a população em situação de vulnerabilidade social é exposta. O resultado é a mantença de práticas que carregam um discurso desqualificador da família, onde se admite o rompimento dessas relações quando se perceba que os genitores já não teriam mais um lugar de valor na trajetória de vida da criança (ARPINI; QUINTANA, 2009). Na decretação da medida extrema de afastamento de crianças de suas famílias um fator que não pode ser desconsiderado é a violência estrutural a qual estão submetidas crianças e adolescentes com direitos básicos violados através da manutenção das extremas desigualdades sociais, culturais, etárias, étnicas e de gênero que produzem a miséria, a fome, e várias formas de submissão e exploração de umas pessoas pelas outras e que não podem ser naturalizadas (NASCIMENTO, et al., 2010).

Debates na área da saúde em torno dos diferentes aspectos das famílias contemporâneas discutem a aceitação social da maternidade e da paternidade considerando raça, classe social, idade e parceria como circunstâncias mais ou menos legitimadores da reprodução e do cuidado com os filhos, defendendo a ideia de que existem hierarquias reprodutivas na nossa sociedade. Considerando a grande desigualdade de gênero entre homens e mulheres, a prole é uma questão muito mais da mãe, que quando exercida por mulheres sem suporte da família ou do pai da criança ou do Estado, tornam-se mais vulneráveis à discriminação, especialmente entre a população mais empobrecida. Assim, a maternidades (e paternidades) podem ser mais prestigiadas enquanto outras podem ser consideradas ilegítimas, subalternas ou marginais, fonte de preconceito, discriminação e violação a direitos (MATTAR; DINIZ, 2012).

A maternidade com menos aceitação social e sem apoio, gerada pela desigualdade social estrutural e crônica no Brasil, traz como uma de suas consequências a decretação da institucionalização de crianças e adolescentes e a perda do poder familiar de crianças pobres, já que as genitoras não conseguem suprir suas necessidades básicas e as de seus filhos com a falta de creches e escolas em tempo integral – circunstância que tematiza a reflexão acerca de maior suporte social e menos ações discriminatórias que levem à “criminalização da pobreza”.

A hipótese inserida pela Lei n.º 12.962, de 08 de abril de 2014, ao Estatuto da Criança e do Adolescente é um importante exemplo da norma que vem para corrigir as práticas, pois incluiu vedação expressa à perda do poder familiar em virtude de condenação criminal dos

genitores29. Mas a proibição não impede a recorrente destituição do poder familiar de genitoras encarceradas, configurando a categoria “hipomaternidade no cárcere” caracterizando para essas mães uma verdadeira prisão perpétua, pois após cumprirem suas penas não terão mais seus filhos, normalmente colocados para adoção após o acolhimento institucional quando não há rede familiar. Essas mães reclusas muitas das vezes não são ouvidas no processo já que quando encarceradas é nomeado curador especial para o processo de adoção e o mesmo tramita em segredo de justiça (BRAGA; ANGOTTI, 2015) e (BRASIL, 2015).

A despeito da situação precária da maternidade nos presídios nacionais, cabe destacar quanto à matéria um importante avanço na efetivação dos direitos de genitoras em reclusão, a concessão pela 2ª Turma do STF de Habeas Corpus coletivo (HC 143641) impetrado pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos tendo a Defensoria Pública de São Paulo atuado como amicus curiae (STF, 2018). A decisão unânime ocorreu dois meses após concessão parcial do HC 151.057-DF, por meio do qual Adriana Ancelmo30, esposa do ex- governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, teve restabelecido o cumprimento da prisão preventiva em regime domiciliar (STF, 2017). As decisões se basearam na aplicação da Lei nº 13.257, de 08 de março de 201631, o marco legal da Primeira Infância, que alterou as regras do Código de Processo Penal relativas à concessão da prisão domiciliar, que inseriu expressamente entre as hipóteses de prisão domiciliar a de gestantes e de mulheres com filhos de até 12 anos incompletos, tendo a decisão se fundamentado constitucionalmente no respeito ao art. 227 que garante a proteção integral de crianças e adolescentes.

Mesmo com a decisão do STF em fevereiro de 2018, a Defensores Públicos no estado de São Paulo têm feito pedidos individuais aos tribunais de primeira e segunda instância, bem como ao STJ para fazer valer a decisão no habeas corpus coletivo (HC 143641), os defensores afirmam que ainda encontram resistência de alguns juízes na transferência para prisão domiciliar de mulheres grávidas ou lactantes encarceradas. Em entrevista ao site da ANADEP um dos coordenadores do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da defensoria paulista,

29 A nova redação do§ 2º do art. 23 é a seguinte: A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a

destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão, contra o próprio filho ou filha.

30 O jornal Correio Braziliense noticiou em 23 de março de 2018 que o Promotor de Justiça do Distrito Federal

Valmir Soares, está seguindo os entendimentos dos tribunais superiores em casos célebres como o do ex- presidente Lula e da ex-primeira-dama do Rio de Janeiro Adriana Ancelmo. Em entrevista, o Promotor de Justiça afirmou que vem aplicando o “princípio Adriana Ancelmo” para pedir, especialmente nas audiências de custódia, a soltura de mulheres presas em flagrante que tenham filhos pequenos (CORREIO BRAZILIENSE, 2018).

Leonardo Biagioni de Lima, afirmou que alguns juízes e desembargadores ainda descumprem a decisão do STF com fundamento na abstrata gravidade do crime, ainda que esses delitos sejam, por exemplo, furto ou tráfico, crimes sem o uso de violência ou grave ameaça (ANADEP, 2018).

Outro caso que ficou bastante conhecido foi a discussão em torno da Portaria nº 03/2016 da 2ª VCIJ de Belo Horizonte (TJMG, 2016), em que os profissionais das maternidades públicas do município deveriam denunciar ao Poder Judiciário caso a parturiente tivesse em sua trajetória de vida envolvimento com uso de drogas e situação de rua, podendo sofrer alguma penalidade administrativa o servidor público que não cumprisse a ordem. A diretiva do Poder Judiciário local à época causou manifestações por parte de diversos setores sociais, especialmente da academia, tendo a Faculdade de Direito e Ciências do Estado, UFMG, se posicionado em junho de 2017, com a organização do seminário “Mães Órfãs: abrigamento compulsório de bebês e a estigmatização da maternidade vulnerável”, na ocasião foram apresentados dados do acolhimento institucional na cidade. Foi apontado que em 2013 eram 26 casos de crianças abrigadas; em 2014 foram 72 casos, no ano de 2015 140, 2016 apresentou 132 casos, e até maio de 2017 já eram 25 crianças abrigadas, somando-se quase 400 crianças abrigadas para apenas 14 abrigos em Belo Horizonte, que estavam recebendo crianças recém-nascidas, e a mãe só podia visitar uma vez por semana durante duas horas. O evento foi realizado na UFMG e matéria a respeito foi divulgada no site da Escola de Enfermagem (UFMG, 2017).

Os casos apresentados apontam para uma tendência do Poder Judiciário em admitir e decidir pelo rompimento das relações e do convívio familiar de crianças e adolescentes com seus genitores, especialmente para aqueles em situação de vulnerabilidade social e econômica.