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3 A TEORIA DO PODER EM MICHEL FOUCAULT E SUA

3.2 A política e o governo

Compreender o Estado como uma grande estrutura articuladora institucional e politica do poder faz parte das reflexões na obra de Foucault. Historicamente as teorias jusfilosóficas do século XVIII tentaram justificar o poder como direito originário baseado no contrato social, os contratualistas39 formularam a tese de que o poder seria exercido como legalidade ou violência institucionalizada (SILVA, 2017).

O papel do Estado na concepção de poder de Foucault é inegável, pois reconhece que a representação de poder estruturada nasceu quando da consolidação dos Estados Nacionais na Europa, sob o regime monárquico (MAIA, 1995, p. 86). Também o direito em sua teoria sobre o poder é importante, pois é elaborada partindo-se dele, caracterizando a norma e a sanção normalizadora vinda do Estado como representantes da imposição de ordens pautadas em dispositivos de comando em escala de hierarquia, levando a uma previsão de comportamentos aceitáveis e eficientes para o controle da população. Apesar do direito ser o ponto de partida de sua teoria, é dominante a tese de que não existe teoria jurídica abstrata ou legalista no pensamento de Foucault, aparecendo o direito apenas como objeto na obra (MAIA, 1995, p. 87) e (BARRETTO, 2009, p.366-369). A noção de norma em Foucault está diretamente ligada à disciplina.

Foucault afirma que a política é tarefa funcional de controle e, na sua visão, a ética é tão somente uma consequência imaginária dessa lógica no funcionamento econômico-social, fundada na perspectiva, cínica ou ingênua, dos tecnocratas e assemelhados, que fingem ou acreditam agir em nome do bem comum (BRANCO, 2001, p.239). Já a sua concepção de

39 Rousseau, Hobbes e Locke defenderam uma concepção do Estado fundada em um contrato social, por isso são

chamados de contratualistas. Hobbes e Locke defendiam uma perspectiva jurídica, pois se preocuparam com os direitos naturais dos cidadãos, já Rousseau desenvolveu uma avaliação do Estado mais voltada para aspectos sociais e econômicos e menos jurídicos (SILVA, 2017).

governo é de um conjunto de procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens, e que pode se apresentar de dois modos: como poder pastoral e como razão de Estado (FOUCAULT, 2017, p. 30).

Assim, o poder fundado na disciplina supõe um sistema mais apurado de coerções materiais do que a figura de um príncipe soberano. Com o lançamento de “Vontade de saber”, em 1976, opera-se uma mudança nas pesquisas de Foucault, que se dedicará a estudar o corpo molar da população por meio de uma nova tecnologia, a bio-política ou bio-poder. O conceito se articula com o de poder disciplinar em substituição à análise dos micro-corpos dos indivíduos, já que a confecção da norma defende o autor, corresponde à aparição do poder sobre a vida da comunidade, o bio-poder ou bio-política.

Não se trata de abandonar a utilização do poder-disciplinar; pelo contrário, poder- disciplinar e bio-poder se integram para um controle/gestão mais efetivo dos corpos. E a partir do ano de 1978, Foucault desloca as discussões de poder para a temática de seus últimos anos de trabalho: o governo, desenvolvendo uma nova ideia, a governamentalidade (MAIA, 1995, p. 98). A categoria é entendida como “o problema de como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo e com que método” (FOUCAULT, 1984, p. 278-285). O conceito de governo em Foucault é utilizado em um sentido dinâmico, de condução e gestão, defendendo que a arte do governo rompe com a tradição da teoria jurídica da soberania ao afirmar que o governo está bem mais relacionado à questão da condução do que ao tema da soberania.

Importante para nossa análise a ideia de “Estado Ampliado”, aqui utilizada na perspectiva de Gramsci40, citada em Semeraro (1999). Essa concepção compreende o Estado a partir das esferas da sociedade civil e da sociedade política, distintas pela função que exercem e pela articulação e reprodução das relações de poder numa análise da vontade coletiva. Enquanto na sociedade política existe uma dominação fundada na coerção, na sociedade civil as classes representadas no conjunto de instituições responsáveis pela elaboração e difusão de valores (simbólico e/ou ideológico), buscam uma hegemonia através da direção e do consenso (SILVA, 2018). Por isso a sociedade civil seria a responsável pela confecção e propagação das ideologias e dos valores simbólicos que visam a “direção”, e a sociedade política, dotada de aparelho institucional, teria o monopólio legal da violência com vistas à dominação.

40 Gramsci e Foucault desenvolveram ambos teorias do poder com base na noção de "relações de força" de

Maquiavel, compreendendo as relações de poder como um complexo mecanismo social, sendo que a posição adotada por Gramsci difere da de Foucault, por conta do primeiro empreender uma análise fundada na ideologia. Optamos em não aprofundar a discussão nesta tese, que foi bem desenvolvida em: Daldal (2014) e Alessadroni (2016).

Ao aderir à teoria do “Estado Ampliado”, concebemos o poder não apenas como algo negativo, identificado como poder de dominação repressor, mas também por uma representação positiva, com um papel produtivo capaz de atuar em prol da transformação social. Na analítica política de Foucault, ao contrário do enfoque jurídico, o Estado como instituição, via de regra percebida como originário das relações de poder, tem seu papel remanejado, não sendo mais o centro constituidor destes mesmos liames.

Maia (1995, p. 88), ao comentar a perspectiva de análise política da “genealogia do poder”, aponta que a pesquisa foucaltiana impõe um deslocamento em relação ao Estado ao identificar a existência de uma série de relações de poder na sociedade atual que se colocam fora da esfera estatal, e que não podem de maneira alguma ser analisadas em termos de soberania, de proibição ou de imposição de uma lei. Não que seja negligenciado o papel do Estado, mas há apenas um deslocamento em relação às análises tradicionais.

É significativo para nosso exame o fato de que Foucault nomeia sua análise de “descendente”, pois infere em sua teoria que o poder nasce no Estado e se ramifica para todos os setores da sociedade, até os mais baixos, reproduzindo-se, sendo apenas uma continuação, atuando em rede e permeando todo o corpo social para articular e integrar todos os focos de poder. Sua análise informa que o poder tem existência própria e que o Estado não necessariamente é o centro e origem do poder (FOUCAULT, 2017, p. 16).

Não obstante a correta advertência do autor, na tese ora apresentada o destaque vai para as relações que tem o Estado como referência, já que possui aparato técnico e procedimentos desenvolvidos para dirigir a vida do indivíduo e para controlar a vida subjetiva de cada um dos membros da sociedade, visando um “governo por individuação ou normalização”. Na terminologia de Foucault esse é o substituto contemporâneo do poder pastoral desenvolvido no passado pela igreja católica. Essa técnica do poder pretende conhecer a consciência das pessoas, com o objetivo de dirigí-las. O resultado desse processo de controle nada mais é do que o sujeito assujeitado a normas e padrões de constituição de sua subjetividade, e auto identificado por meio de regras previamente perpetradas de conduta. Trata-se, nesse caso, do indivíduo condicionado e autocondicionado, do bom moço instituído nos padrões individualistas do modo de vida, para dar um exemplo ocidental, regido pela moralidade capitalista e seu paradigma do modo de ser burguês (BRANCO, 2001, p. 246).

O Estado seria, segundo a reflexão de Foucault, o espaço onde se condensa, em última instância, a correlação de forças, que se expressa em leis e em políticas públicas, adotadas a favor ou contra os interesses da população (em especial das classes subalternas) e é para o

Estado que se voltam parte significativa das expectativas da sociedade, mas sofreu críticas por ocultar a dimensão social e de classe dessas correlações de forças (DUTRA SILVA, 2015).

Foucault trata em seu debate das forças que se chocam e se contrapõem no corpo social, intercedendo com o argumento de que a partir das lutas de resistência se chegaria ao autogoverno dos indivíduos livres e autônomos, sendo essa a parte do conceito de governamentalidade. De acordo com esse entendimento, a autonomia numa esfera pública não restritiva depende apenas do grau de autonomia e liberdade de cada um dos membros da comunidade e da sociedade. Esse espaço público seria recriado e reinventado, sob novas formas de sociabilidade e novos estilos de existência, reformulando o espaço do outro, no que constituiria a “heterotopia foucaultiana”, um ideal de local público que busca resgatar o espaço do outro que a racionalidade ocidental afastou. Essa é uma condição indispensável para a realização de um espaço público livre e democrático em Foucault (BRANCO, 2001, p. 247).