• Nenhum resultado encontrado

2 PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: PARADIGMAS

2.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Lei 8.069, de 13 de julho

2.2.2 Responsabilidade solidária da família, sociedade e Estado

O ECA ao tratar da reponsabilidade solidária quis se referir às esferas de proteção de crianças e adolescentes, indicando que a efetivação dos direitos contidos no diploma legal passa, necessariamente, pela responsabilidade da família, da sociedade e do Estado, de acordo com o disposto no art. 227 da Constituição Federal e do art. 4º do ECA.

21 O art. 100, parágrafo único, inciso IV do ECA, com redação dada pela Lei nº 12.010/2009, ao dispor sobre

aplicação de medidas protetivas e intervenção com famílias de crianças em situação de risco, orienta as ações concretas de toda a sociedade, Estado e família, para que os direitos de crianças e adolescentes sejam atendidos sempre pensando no melhor para eles.

22 O art. 4º-parágrafo único do ECA apresenta deveres da família, sociedade e Estado, que devem ser efetivados

de forma prioritária, sendo que tais obrigações constituem um rol meramente exemplificativo; o art. 3º do ECA determina que todas as oportunidades e facilidades devem ser dadas à criança e ao adolescente para que tenha seu pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social; além da Lei nº 12.010/2009, que no art. 1º, §1º, estabelece que as políticas sociais públicas e os órgãos públicos devem priorizar crianças e adolescentes, com destinação privilegiada de recursos públicos, apoio e promoção social.

A família é a primeira responsável por assegurar a criança e ao adolescente meios para o seu pleno desenvolvimento, sendo que o conceito está descrito no art. 25 do ECA. A evolução na dinâmica social possibilitou a coexistência de outros tipos de familiares23, sendo que o ECA incorporou tais mudanças no parágrafo único do art. 25 e incluiu o conceito de família extensa, compreendida como aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.

Ariés (1981) ao discorrer sobre a história da família e da criança na humanidade aponta que na família medieval tradicional os laços biológicos é que ligavam as pessoas, já que as trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas fora do seio familiar, diferente da família moderna contemporânea que está edificada no afeto. O grupo familiar tem o papel de assegurar à criança e ao adolescente a concretização dos direitos fundamentais previstos na lei.

Pereira Júnior (2002) aponta os poderes-deveres dos pais e apresenta seu arcabouço legal no Brasil, previsto nos art. 229 da Constituição de 1988, arts 1.630 e arts 1.634 a 1.638 do Código Civil e no ECA os arts 21, 22, e 129, além do inciso V - art. 229 da CFRB de 1988 em que os pais tem obrigação de assistir, criar e educar os filho menores. Utilizando as referências de Moraes (1984, p. 128), o autor indica que os pais devem atender às necessidades dos filhos em três âmbitos de assistência, de acordo com as suas necessidades com referência na Constituição de 1988: assistência material (criar), assistência moral (educar) e assistência jurídica (assistir). A assistência material será prestada pelos responsáveis mediante o cumprimento de deveres voltados à satisfação das necessidades físicas da criança ou do adolescente. Desdobra-se nos deveres de criação o sustento e a guarda, e por criação entende-se o cuidado relacionado ao desenvolvimento físico do menor, incluindo também lazer e recreação, além do zelo, que se traduz por crescimento fisiológico. Já o sustento se relaciona aos deveres inerentes às necessidades alimentares e médicas do menor, assim como a guarda, que inclui habitação e vestuário. A assistência moral, também chamada de assistência pessoal não material, será prestada pelos responsáveis e inclui o dever de companhia, pelo qual os pais devem estar próximos do filho dando-lhe a atenção afetiva necessária para que sua constituição emotiva seja segura e equilibrada, e o dever de educação, que forja a personalidade do indivíduo nas diversas frentes que compõem a pessoa humana:

23 Novas formas de pensar a família surgem com a modernidade, destacamos aqui a análise detalhada acerca da

classificação dos tipos de famílias em três dimensões: estrutura e dinâmica global, relação conjugal e relação parental (CANIÇO, 2010).

moral, religiosa, intelectual e profissional. E por fim, a assistência jurídica, que será prestada pelos responsáveis por meio da representação, assistência stricto sensu, consentimento para casamento, nomeação de tutor por testamento ou documento similar, administração dos bens do menor e usufruto legal.

Os dispositivos legais relacionados a cada uma das formas de assistência foram identificados por Pereira Júnior (2002, p. 157) em um quadro, conforme se segue.

Quadro 2. Formas de assistência (associação dos diplomas normativos).

ASSISTÊNCIA MATERIAL ASSISTÊNCIA MORAL ASSISTÊNCIA JURÍDICA CF, art. 229: criar CF, art. 229: educar CF, art. 229: assistir

- Criação: crescimento físico - Sustento: cuidado da saúde - Guarda: proteção física

- Companhia - Educação

- Representação

- Assistência stricto sensu - Consentimento para casar - Nomeação de tutor - Administração de bens do filho

- Usufruto legal CC: arts. 1.566, IV; 1.634,1 CC: arts. 1.566,IV; 1.634, l e

II; 1.740, l e 1.747, III

CC: arts. 1.634, III, IV, V; 1.689-1.693; 1.741; 1.741, I ECA: art. 22 ECA: art. 19 ECA: art. 22, última parte

Existem situações que legitimam a intervenção de atores externos à família, apontadas no art. 98, inciso II do ECA, fundamentam a interferência quando se constata "falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável" prejudicando os direitos das crianças. São situações de inobservância dos limites mínimos ou deveres exigidos pela lei, para o exercício livre do poder familiar, autorizando a intervenção da sociedade civil e do Estado. A conduta omissiva ou abusiva dos pais com relação aos filhos implica, necessariamente, desrespeito a algum dos preceitos do poder familiar, mas a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para sua perda ou suspensão, pois em nome do princípio da responsabilidade solidária da família, sociedade e Estado, há a possibilidade de socorro aos pais sem substituí- los quando dessa violação, através das medidas de apoio constantes no inciso VI do art. 101 do ECA.

Na verdade o que há é uma fiscalização do exercício dos deveres do poder familiar por parte da sociedade e do Estado, considerando que, mesmo a despeito das dificuldades de subsistência material, se os pais continuam se esforçando positivamente por fazê-lo devem ser assistidos materialmente pela sociedade e pelo Estado, é esse o sentido do princípio da solidariedade. Ocorre que alguns atores externos vão ser chamados a se manifestar para agirem como instrumentos de fiscalização, orientação e intervenção quando há má gestão do poder familiar pelos pais, os responsáveis legais originários para o seu exercício. A família,

por conta do fundamento constitucional (art. 226, caput e § 8º da CRFB) é a base da vida em sociedade, e autoriza a ingerência externa por ser o centro das preocupações institucionais do Estado, por isso a atuação insuficiente do primeiro círculo - família - exige de imediato a atuação do meio social seguinte, a sociedade civil, e em terceiro lugar coloca-se o Estado, estrutura (instrumental) que tem por função zelar pelos serviços públicos como representante da sociedade política na gestão dos poderes que pertencem a ela (PEREIRA JÚNIOR, 2002, p. 56).

O ECA incorporou a orientação mais moderna e possibilitou, com a inclusão do conceito de família extensa, a possibilidade de pessoas com significativa referência afetiva na comunidade, caso possam e aceitem, responsabilizar-se pela efetivação dos direitos de crianças ou adolescentes expostos à clara situação de risco quando em contato com os responsáveis que compõem sua família nuclear, e somente quando a família extensa comprovadamente representa risco ou no caso de inexistência de referências familiares e afetivas, outras soluções devem ser buscadas, como o acolhimento institucional. A norma impôs uma série de deveres aos pais, previstos nos arts. 4º e 22 do ECA, sendo que seu descumprimento pode levar a sanções criminais previstas no Código Penal24 e/ou infrações administrativas25 no próprio ECA. Ao impor tais sanções a lei exige que a família, independente de sua forma de constituição, tenha condições sociais, materiais e afetivas para proporcionar à criança e ao adolescente seu pleno desenvolvimento (KREUZ, 2012).

Uma observação mínima sobre a realidade da população em situação de vulnerabilidade social em nosso país aponta para o distanciamento entre o mundo real e o legal, pois o contexto de privação as quais muitas crianças estão inseridas as expõe a situações de risco social, fazendo com que os pais sejam privados da convivência com seus filhos por determinação judicial, pois o descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar pode dar causa à suspensão ou destituição do mesmo. Assim, a falta de verificação adequada da situação familiar através de estudo diagnóstico prévio, vem levando o Poder Judiciário, que ainda pauta as práticas na área da infância por uma cultura de repressão, a um processo de culpabilização de grupos familiares com dificuldades econômicas, sendo os mesmos incapazes de educar e prover o sustento de seus filhos adequadamente, predispondo a situações de violência já que as redes sociais de apoio à família e a ação articulada entre elas é compreendida como a melhor forma de superação das questões objetivas e subjetivas que

24 Arts. 136, 244, 246 e 247, que tratam respectivamente dos crimes de maus-tratos, abandono material,

intelectual e moral.

25 O art. 249 do ECA estabelece multa para aquele que “descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres

envolvem as situações de risco pessoal pela qual estão expostas crianças e adolescentes inseridas em contextos de vulnerabilidade social e econômica (BRASIL, 2012).

Assim, o instrumento estudo diagnóstico prévio, tem como objetivo subsidiar a decisão acerca do afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar, os fluxos e responsabilidades referentes à realização do estudo deverão ser definidos a partir de acordos formais firmados entre os órgãos envolvidos, considerando a realidade, os recursos existentes e o respeito às competências legais de cada órgão da rede de atendimento e do Sistema de Garantia de Direitos (BRASIL, 2012b, p. 29). Por isso que, antes da aplicação de sanções criminais ou administrativas, o Juiz da Infância deve aplicar as medidas protetivas do art. 101 do ECA, que também podem ser cumuladas, pois normalmente a garantia de apoio, orientação e acesso às políticas públicas básicas são suficientes para reduzir os riscos sociais e possibilitar a manutenção do convívio familiar.

A sociedade e a comunidade também têm atuação fundamental na efetivação de direitos de crianças e adolescentes, especialmente pelo papel ativo que exercem na política pública protetiva. A comunidade é considerada o grupo social em sentido lato e sociedade o grupo social em sentido estrito (NOGUEIRA, 1998). Além da sociedade, a comunidade também deverá ser igualmente responsável pela efetivação de direitos, com destaque para grupos sociais institucionalizados, incluindo-se as associações, civis, organizações não governamentais e o Conselho Tutelar (DALLARI, 2008). Por isso que importante mudança introduzida pelo ECA foi o reconhecimento dos membros do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD) como atores do processo político para que possam imprimir ações conjuntas governamentais e não governamentais em nível da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. De acordo com a Resolução CONANDA nº 113, de 19 de abril de 2006 (BRASIL, 2006a), que formalizou o sistema, fazem parte dele os Conselhos Tutelares e o próprio Poder Judiciário.

Para a efetivação do princípio da responsabilidade solidária, o Estado deve atuar e ser compreendido como poder público nas esferas municipais, estaduais, distritais e federais, englobando o Poder Executivo, como responsável pela promoção das políticas públicas para crianças e adolescentes, e Poder Legislativo, uma vez que a implementação das políticas protetivas começa com a prioridade na destinação de recursos públicos na elaboração das leis orçamentárias, de acordo com o disposto na alínea “d” do art. 4º do ECA26.

26 Entendemos neste trabalho que o Poder Judiciário exerce função executora e fiscalizadora como membro do