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3 A TEORIA DO PODER EM MICHEL FOUCAULT E SUA

3.4 Teoria da Proteção Integral e manifestações de poder

3.4.3 O Conselho Tutelar como estrutura de poder fora do Estado

A concepção de repressão social e de submissão do corpo social aos mecanismos de controle e manipulação são o centro da digressão de Foucault em “Microfísica do poder” (FOUCAULT, 2017). Considerando que no campo da criança e do adolescente as relações se desenvolvem a partir da família, Estado e sociedade civil, as estruturas de poder devem ser pensadas a partir dessas interações, de crianças e adolescentes com a família, Estado e sociedade. Sendo que nesta tese as relações com a sociedade civil terão destaque. Na sua obra a sociedade civil adquire grande relevância, pois de acordo com Foucault, no seu interior são confeccionadas e propagadas as ideologias e os valores simbólicos que visam a “direção” do grupo social.

A ideia de sociedade civil sofre reformulações a partir de Gramsci quando o autor concretiza a ideia de “Estado Ampliado”, fruto da junção entre Estado e sociedade civil, que se unem e complementam para formar um todo. No seio da sociedade civil estariam os mais diversos grupos da sociedade, como igrejas e sindicatos, disputando espaço político e

exercendo um poder ideológico sobre o todo social. Portanto, a sociedade civil faz parte desse Estado Ampliado, já que constitui um espaço de tensão onde convivem e se chocam projetos ideológicos distintos (GRAMSCI, 2005, p. 458).

Fontes (2006, p. 210) afirma que Gramsci recuperou e reformulou a visão de Hegel, reaproximando a reflexão sobre o Estado das formas de organização social num projeto político que almeja a plena realização dos indivíduos, já que a consequência seria a vivência intensa da participação na vida política e social. A tensão entre os projetos hegemônicos (vindos da classe dominante) e os contra-hegemônicos (originados dos grupos subalternos) dará origem ao Estado Ampliado, o qual consiste no espaço onde se dá a luta entre as classes, através de organizações nas quais se formam e se modelam as vontades e a partir das mesmas formas da dominação se espalham como convencimento (GRAMSCI, 2001, p. 47).

O Conselho Tutelar ocupa esse lugar, de construção da formulação da vontade e da consciência daqueles que não tem voz nesse Estado Ampliado, exercendo influência nas concepções próprias do Estado com a disseminação dos valores e ideias da proteção integral, além de conduzir as práticas, determinante para a concretização da matriz constitucional protetiva, mesmo em uma estrutura de poder fora do Estado. Por isso a questão que se coloca é se o modelo institucional do Conselho Tutelar tem aptidão para interferir nas estruturas de poder que se entrelaçam no universo da criança e adolescência, voltada em alguns casos, para o menorismo, e se terá o órgão o condão de transformá-las, aproximando-as da lógica da proteção integral.

Os críticos à obra de Foucault47 apontam que estão banidos de seu universo referencial os conceitos de capitalismo, imperialismo e luta de classe, e no seu lugar ganham espaço aqueles de sociedade disciplinar, poder e (indefinidos) pontos de resistência (ALESSADRONI, 2016). Entende-se nesta tese, que a falta de menção direta a uma luta de classes não afasta a relevância relacional entre os membros do Conselho Tutelar como representantes do discurso não hegemônico dos grupos minoritários e da comunidade local, em oposição às práticas dos Poderes Executivo e Judiciário, que encampam um discurso voltado ao menorismo, afetos à classe dominante.

A própria gênese da consolidação do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil, como descrito no primeiro capítulo, aponta a sociedade civil como o lugar de produção de verdade, em um movimento de baixo para cima, em que a comunidade corporifica suas demandas para o mundo formal normativo, só sendo possível por meio de uma construção

coletiva e democrática, concebida através de estruturas de poder como o Conselho Tutelar, que dão voz à população criminalizada pela pobreza. Desde as primeiras discussões que objetivaram introduzir no país um paradigma normativo-institucional protetivo à criança e adolescência, das propostas advindas do FÓRUM DCA e dos Conselhos de Direitos na década de 80, de forma mais expressiva do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), tiveram o claro objetivo de substituição do menorismo. Afinal, tem-se na Teoria da Situação Irregular, uma ideia defendida e idealizada por uma autoridade vertical, em desarmonia com a “verdade” e a “ética” produzidas nas relações sociais públicas e privadas travadas nas comunidades48.

O Conselho Tutelar precisa ser compreendido como o locus capaz de efetivar essa transformação, não totalmente reproduzida na legislação. O mais importante é que essa verdade apareça, pois consideramos nesta tese que a unidade estatal na área da infância é secundária em relação aos poderes regionais e externos. Mas a questão que se põe é a seguinte: se o caráter contencioso e de expectativa de punição representado na atuação do Conselho Tutelar está em consonância com esse poder, e se seu mecanismo de atuação estaria alinhado aos objetivos legislativos de funcionar como zelador de direitos?

As concepções de Foucault sobre poder e contrapoder trazem uma dimensão disciplinar e também uma de luta, que transcende os limites possíveis do direito, impossíveis de se concretizarem sem a participação da sociedade como promotora de uma nova lógica de reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos autônomos. Outra importante contribuição do Conselho Tutelar ser considerado como instância de contrapoderes sociais, é trabalhar na rede protetiva de serviços e atendimento para que atue na transformação das famílias, ultrapassando o paradigma menorista que tinha como fundamento ações assistencialistas e paternalistas, buscando, e nessa tarefa o Conselho Tutelar auxiliará, numa atuação voltada para a efetivação dos direitos subjetivos positivados.

A análise das práticas e das ações do Conselho Tutelar buscará relacionar os significados do poder como verdade ao menorismo e à autoridade vertical, e o consequente afastamento do poder como direito, pois se essa hipótese se confirmar, a proteção integral nunca chegará às relações sociais como juridicamente concebida. Por isso, serão estudados os modelos legais e se os que estão postos estão aptos a legitimar o poder como verdade, considerando que na estrutura institucional dos Conselhos Tutelares repousa tal legitimidade. Essa será a tônica do próximo capítulo.

4 O CONSELHO TUTELAR COMO ÓRGÃO TRANSFORMADOR DAS