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5 PROJETOS POLÍTICOS MENORISTA E PROTETIVO: A DISPUTA

5.1 A Constituição de 1988 como referencial político e jurídico do Estado

5.1.1 Políticas públicas para a infância

As políticas voltadas para a infância no país devem ter como fundamento a proteção integral, paradigma normativo-institucional que vigora no país, e sobre isso não há dúvidas, mas ao longo deste trabalho foram apontados dispositivos legais no bojo do ECA, o último concebido como um microssistema de direitos humanos de crianças e adolescentes, que carregam ainda conteúdo repressivo.

O processo de construção do art. 227 da Constituição de 1988, apresentado no segundo capítulo, demonstrou que os enfrentamentos e lutas à época da Assembleia

Constituinte de 1987 tiveram o objetivo de desmontagem dos dispositivos com caráter de normalização/disciplinamento/adequação das condutas, típicos do menorismo. A situação irregular se mostrava eficaz aos interesses políticas do período que antecedeu a Constituição de 1988, em que a colocação do menor em uma posição de irregularidade retirava do poder público a responsabilidade para enfrentar as reais causas da pobreza e desigualdades sociais, naturalizando as omissões dos Poderes Executivo e Legislativo na construção de políticas de proteção dos direitos de crianças e adolescentes, levando à “judicialização das questões sociais”.

Por conta do grau de importância e interferência que os atores sociais ocuparam e ainda ocupam nas disputas para a conformação do poder dever em poder verdade para a infância no país, cada qual tentando impor a sua visão de mundo, entendemos que a ressignificação das políticas deve, a partir das abordagens conceituais traçadas no segundo capítulo, incorporar o argumento de Pierre Muller (2018, p. 33). O olhar sociológico do autor, com inspiração em Thomas Kuhn (2009) em relação à ideia de paradigma, conecta os elementos normativo, cognitivo e instrumental/institucional.

Muller (2018, p.23) considera que as políticas públicas constituem um quadro normativo de ação que combina elementos de força pública e elementos de competência [expertise], tendendo a constituir uma ordem local. Dessa forma, entende-se nesta tese que o conceito jurídico de política pública, descrito no segundo capítulo, é insuficiente para analisar as políticas voltadas para a criança e o adolescente. O sociólogo identifica as políticas públicas através de uma análise cognitiva em que, para além da resolução de problemas, estas são entendidas como um quadro de interpretação/relação com o mundo, construção de uma representação da realidade onde se quer intervir, fabricando assim um referencial a qual os atores organizam a sua percepção do problema, confrontam soluções e definem proposições de ação. Para Muller (2018) as políticas públicas não servem para resolver problemas, mas isto não significa que eles sejam insolúveis, pois na realidade, serão resolvidos pelos próprios atores sociais através da implementação de suas estratégias e gestão de conflitos e, sobretudo, através dos processos de aprendizagem que marcam todo processo de ação pública.

Assim, corroboramos com a ideia de que as disputas entre menoristas e estatutistas permanecem ainda hoje, representando a luta histórica pela superação da cultura repressiva e violenta, com a legitimação do direito. Ainda está presente a polarização do poder no campo das políticas para a infância no Brasil, assim como permanecem em conflito os interesses no bojo da sociedade democrática, dependendo de que lado estejam os atores nessa correlação de forças sociais, situação irregular ou proteção integral.

De acordo com essa perspectiva, entendemos que os contextos histórico, político e social devem fazer parte da análise, já que a pesquisa empreendida ao longo desta tese demonstrou que a disputa não está superada acerca de qual projeto político deva prevalecer, menorista ou protetivo. Dessa forma utilizou-se o referencial teórico do neoinstitucionalismo histórico, já apresentado no segundo capítulo. A ideia auxilia na compreensão das conclusões parciais, já que coloca as práticas institucionais no centro das reflexões, especialmente quando se tratam de politicas públicas que passam por mudanças paradigmáticas. A partir desse olhar, as instituições se colocam como resultados de processos complexos, marcadas pelo conflito e pela contingência e que trazem consigo uma permanente tensão, não possuindo assim, caráter funcional para resolver problemas de ação coletiva. Assim, justifica-se a convivência do modelo da proteção integral com politicas públicas e atuações focalizadas, fragmentadas e de curto alcance – típicas do menorismo.

Aspira-se a que outro elemento explique o cenário apontado, desenvolvido por Abad (2003)93 - o “Princípio da Multidão” - que representa o reconhecimento de uma diversidade de grupos sociais, discursos e crenças dando ênfase a diferentes aspectos da situação juvenil, pois na sua visão, a existência de diversas instituições e grupos que elaboram seus próprios discursos causa uma (des)ordem nas políticas públicas, engendrando assim processos de socialização alternados. Para o autor, a desorganização das políticas públicas para esse público, especialmente na América Latina, deveriam levar em consideração traços típicos da realidade local, que origina uma nova condição, e que precisa considerar a crise da família tradicional e a multiplicação de novas formas de família, dentre outras causas. Dessa forma, as políticas públicas devem incluir seus destinatários como atores a partir de legitimação política suficiente para discutirem seus interesses, para que provoquem transformação institucional e de visão de mundo dessas políticas, abandonando no ethos geral a ideia de exploração, desconfiança, rotulação e exclusão, que na visão do autor, caracterizam as políticas juvenis. Aponta-se neste trabalho para a necessária aproximação entre os

policytakers (grupo social a qual se destina uma política púbica) dos policymakers (atores

políticos que formulam e implementam políticas públicas – Poderes Executivo e Legislativo), abrindo-se a discussão para que estruturas de contrapoderes sociais desempenhem esse papel.

93 O autor se dedicou ao estudo das políticas públicas para a juventude na América Latina, que no Brasil é o

grupo social regido pela Lei nº 12.852, de 05 de agosto de 2013, Estatuto da Juventude, no entanto, por expressa disposição legal, serão regidos pelo ECA os jovens considerados adolescentes com idade entre 15 (quinze) e 18 (dezoito) anos.

5.1.2 A proteção integral positivada no art. 227 da Constituição de 1988 como um direito