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3 A TEORIA DO PODER EM MICHEL FOUCAULT E SUA

3.3 A rede da microfísica do poder e os contrapoderes sociais

A última fase do pensamento de Foucault (1978-1984) caminha para os debates do tempo presente, especialmente sobre as discussões que envolvam o papel do indivíduo e das coletividades nas lutas e transformações das estruturas de poder vigentes, sob a perspectiva dos movimentos de contestação do poder. Nesse momento da obra de Foucault, aparece o papel das resistências em todas as suas dimensões, assim como das relações de poder na atualidade, seus antecedentes históricos e suas perspectivas de êxito. Seus interesses passam a ser os combates e as lutas inerentes às relações de poder. A partir desse momento o filósofo enfatiza a capacidade de insurgência como uma das maiores consequências das relações de poder, os sistemas hegemônicos de poder (BRANCO, 2001, p. 242).

O autor nos socorre com sua atualidade, defendendo que as transformações das estruturas de poder vigentes só poderão ser alcançadas através da contestação, sendo o quadro referencial do último Foucault bastante representativo, pois as relações de poder presumem um enfrentamento perpétuo entre dominante e dominado, posto que seus efeitos não devem ser imputáveis a uma apropriação, mas a estratégias, manobras táticas e técnicas (FOUCAULT, 2008, p. 29).

A dimensão política na obra de Foucault concede aos variados movimentos de contestação um papel importante para a engrenagem sociopolítica, fora do quadro dos partidos políticos e das ações estabelecidas. O autor desenvolve uma correlação entre grupo

social e poder; dentre outras justificativas, a principal é sua descrença no potencial transformador e revolucionário dos partidos e grupos políticos.

A ideia central de sua teoria é que os poderes não estão em um lugar específico da sociedade, existindo integrados ou não ao Estado numa trama complexa e heterogênea, mas formando uma rede autônoma e com instrumentos próprios, o que significa dizer que o poder não está localizado em nenhum estrato social. Na sua visão, o poder propriamente dito não existe, não é um objeto, mas envolve relações de poder, por isso o que se pode dizer sobre ele é que será exercido. Foucault afirma que as relações que envolvem o poder são mais ou menos piramidalizadas e coordenadas, envolvendo forças que se chocam e contrapõem. Sob seu ponto de vista, é exatamente essa natureza relacional, inerente ao funcionamento do poder que evita o confronto possivelmente paralisante em um enfrentamento constante e perpétuo (MAIA, 1995, p. 89).

O autor se opõe à ideia de um modelo centralizador em que o poder é emanado apenas do Estado, argumentando que existem micropoderes sociais que se relacionam com o poder mais geral criado pelos instrumentos estatais. E dessa natureza relacional nascem os embates para seu exercício dentro das próprias redes, pois toda luta pressupõe oposições, que acontecem dentro da rede de poder em uma pluralidade de relações de força, que se apoiam umas nas outras.

Foucault ao estudar as técnicas e a tecnologia do poder, conclui que a resistência também faz parte dessa relação (BRANCO, 2001, p. 240). Dessa forma, os locais de resistência são variados e estão espalhados por toda a sociedade, em um movimento de constante disputa entre forças dispostas a ganhar, esse é o lugar dos contrapoderes sociais.

O autor defende também o aspecto positivo do poder, além apenas de seus efeitos negativos de dominação, exclusão, rejeição, ocultação e obstrução; argumentando que seria possível a construção de uma analítica do poder, especialmente em “A vontade do saber” (FOUCAULT, 1999), encarando o seu exercício menos em termos jurídicos e de proibição e mais como estratégias com efeitos produtivos, pois as relações de poder seriam uma estrutura de ações abertas a muitas possibilidades (BRANCO, 2001, p. 86). O poder deve servir à vida e não apenas ao medo, a essência desse ponto de vista é de que o homem é um ser social e que precisa dessas conexões.

A cronologia do autor aponta que em sua fase final seus argumentos estão menos voltados para o embate pelo direito, tido como um campo de luta morno e convencional, e que o verdadeiro enfrentamento, a seu ver, é o que se volta para o exercício das liberdades autônomas, de uma forma mais radical. Branco (2001, p. 245) exemplifica essa ideia com as

modalidades de luta da atualidade. Sendo os afrontamentos e resistências ao poder (e a seus excessos): “as lutas contra a dominação (étnicas, sociais, religiosas), as lutas contra as formas de exploração (que separam o indivíduo do que ele produz), e, finalmente, as lutas que levantam a questão do estatuto do indivíduo (lutas contra o assujeitamento, contra as diversas formas de subjetividade e submissão).

Foucault ressalta a força da população e não só a do soberano, mas como grupo com desejos e consciente do que quer, por isso afirma que governar e criar políticas públicas tem relação direta com as necessidades e aspirações da sociedade, identificadas não só pelo aspecto quantitativo de demanda, mas, principalmente, pelo aspecto qualitativo para garantir a sua sustentabilidade (FOUCAULT, 2008, p. 289). Por isso estudar as formas pelas quais se estruturam as relações sociais, em especial as relações desiguais de obediência e dominação que justificam a autoridade e a natureza das obrigações políticas, é uma das maiores contribuições da obra de Foucault.

Para romper com o modelo de dominação, a sugestão do filósofo é a criação de novos modos de subjetividade, vínculos e laços comunitários para além das formas individualistas de poder. Sob a ótica de “Estado Ampliado” é possível pensar na criação de espaços de resistência e arranjos institucionais, numa dimensão jurídica que legitime a participação da população e o controle social nas esferas de decisão governamental (SEMERARO, 1999, p. 74). Para Foucault a questão do poder fica empobrecida quando é colocada unicamente em termos de legislação, de Constituição, ou somente em termos de Estado ou sua operacionalização. O poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado (FOUCAULT, 2014, p. 334-335).

Nesse sentido é relevante trazer para o debate a cogitação de Boaventura de Sousa Santos acerca do direito estatal e do direito informal. O autor de “O direito dos oprimidos” (SOUSA SANTOS, 2014) faz uma análise sociológica do direito informal e da resolução de conflitos numa favela carioca a qual designou de Pasárgada, parafraseando Manuel Bandeira, para que as identidades dos moradores ouvidos em sua pesquisa fossem preservadas. Na obra o autor compara o direito de Pasárgada e o direito estatal, destacando que as relações no espaço geográfico favelado são marcadas pela informalidade. As entrevistas realizadas com os próprios moradores demonstraram que a burocratização institucional definida pelo sistema jurídico estatal não é tão eficaz para aquela organização social.

Sobre o direito estatal, Sousa Santos (2014, p.36-37) aponta duas importantes características: o nível de institucionalização da função jurídica e o poder dos instrumentos de coerção a serviço da produção jurídica, destacando que as várias profissões jurídicas possuem

tarefas rigidamente definidas e hierarquizadas. Tais particularidades fazem parte da lógica do modelo constitucional do Estado liberal, servindo à finalidade do direito em exercer o controle e o disciplinamento da sociedade, “o direito do Estado capitalista procede à consolidação (contraditória) das relações de classe na sociedade, gerindo os conflitos sociais de modo a mantê-los dentro de níveis” (SOUSA SANTOS, 2014, p. 40). O autor afirma que o discurso institucional-sistêmico é um discurso eminentemente escrito e coercitivo, e que o discurso informal é retórico e oralizado. Mas que esse discurso, abandonado e marginalizado, desempenha importante função de integração social e de legitimação do poder político (SOUSA SANTOS, 2014, p.83-86).