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4 O CONSELHO TUTELAR COMO ÓRGÃO TRANSFORMADOR DAS

4.2 Desenho normativo-institucional do Conselho Tutelar

4.2.1 Processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar

O Conselho Tutelar é formado por representantes da sociedade civil dos municípios e do Distrito Federal, com membros eleitos direta e facultativamente por voto distrital, sendo os 05 (cinco) representantes daquela comunidade mais votados escolhidos para mandato de 04

(quatro) anos52. Soares (2010) defende que o órgão é definido e personificado como mandatário da sociedade para zelar pelos direitos de crianças e adolescentes, considerando a forma de associação política democrática adotada no país.

O processo de escolha do Conselho Tutelar seguirá as diretrizes definidas nas Resoluções do CONANDA nº 139, de 17 de março de 2010, atualizada pela Resolução nº 170, de 10 de dezembro de 2014. A normativa dispõe sobre os parâmetros preferenciais de criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares no Brasil, composto das fases de inscrição dos candidatos; análise da documentação comprobatória de experiência profissional na área da criança e do adolescente, de caráter eliminatório; exame de conhecimentos específicos, sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de caráter eliminatório, caso a legislação local traga a previsão; eleição dos candidatos através do voto direto, secreto, facultativo e majoritário e curso de formação inicial acerca das normas do ECA e dos aspectos práticos do exercício da função de Conselheiro Tutelar.

Assim, a eleição é apenas uma das etapas da seleção dos integrantes do Conselho Tutelar, sendo uma exigência do CONANDA que o candidato possua diploma de nível médio para acesso à função no órgão, além da realização de prova de aferição de conhecimentos específicos para após passar pelo processo eleitoral. Foucault acreditava que os exames qualificam e classificam os sujeitos, estando no centro dos processos que constituem o indivíduo “como efeito e objeto de poder e do saber” (FERREIRINHA; RAITZ, 2010, p. 382). Nesse sentido, refletimos se tais exigências formais e intelectuais para atuação em posições de agentes de contrapoderes sociais não constituem também uma forma de limitação e controle do exercício dessas funções. Pois no caso do Conselho Tutelar, suas relações se caracterizam pela oralidade e conhecimento empírico acumulado previamente, por isso persistem questionamentos e críticas quanto à necessidade da prova de aferição de conhecimentos específicos como um dos requisitos para ingresso nos quadros do órgão.

Na análise realizada por Bragaglia (2002, p. 87-88), é apontado o perfil de candidatos ao cargo no Conselho Tutelar de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul no ano de 1988, com a obtenção de importantes resultados. Em sua pesquisa empírica para compreender que agente social atua no Conselho Tutelar, a pesquisadora identificou que a elegibilidade local de seus membros os transforma na referência para a condução e mediação das questões que envolvam as crianças e adolescentes inseridos naquela comunidade, e que dentre as principais motivações para a candidatura, está a busca pelo poder e autoridade que

vêm associados ao cargo de Conselheiro Tutelar. Nas entrevistas ao grupo focal, as respostas dos membros que compõem o órgão acerca de suas experiências anteriores e sua bagagem cultural, apontam que o foco central não era a temática da criança e do adolescente, mas a participação nos espaços da comunidade, com destaque para associações de moradores, igrejas e conselhos comunitários. A pesquisa indicou também que os candidatos a um cargo no Conselho Tutelar possuem vinculações com movimentos sociais, apresentando poucos debates referentes à criança e ao adolescente, e que trazem apenas uma noção “mecanicamente” absorvida do ECA, pois a busca pelo cargo se deve, em maior parte das vezes, a incentivos exteriores e, em número reduzido, a motivações individuais.

Resultados muito semelhantes foram identificados na análise coordenada por Paula (2014, p. 116), onde o autor buscou analisar o funcionamento da instituição por meio das práticas discursivas de seus agentes, retratando por meio de entrevistas realizadas nos anos de 2010 e 2011 as percepções e a realidade dos 05 (cinco) membros do Conselho Tutelar de município do interior paulista de pequeno porte (85.000 mil habitantes). Os relatos acerca da trajetória profissional e motivação para a candidatura revelam que todos tinham histórico de militância político-partidária e de participação religiosa na comunidade. E apenas um deles afirmou atuação anterior na defesa dos direitos de criança e adolescentes associada à crença religiosa e trabalho na Pastoral do Menor. Os demais não elencaram proximidade com a defesa de direitos de crianças e adolescentes, mas todos tinham vínculo pretérito com a população local por conta do desenvolvimento de projetos ou atuando como voluntário.

Também foram feitos questionamentos quanto ao conhecimento ou formação acadêmica compatível com os desafios do dia a dia, e a conclusão foi que a maioria dos Conselheiros Tutelares não os possuía, tanto em termos acadêmicos quanto profissionais. O que traz consequências para a formação do grupo, que por ser muito heterogêneo em seu arranjo e estrutura, dá origem a um colegiado que dificilmente tem identidade ocupacional e afinidades profissionais, incidindo negativamente e de forma direta no exercício das atribuições do órgão, que deveria trabalhar de forma colegiada, coesa, democrática e participativa (PAULA, 2014, p.118).

A eleição direta de um membro da comunidade local para ocupar função de autoridade, ao mesmo tempo em que amplia e consolida a democracia participativa, também pode ser prejudicial, pois traz heterogeneidade para o órgão aliada à falta de contato anterior com a temática da criança e do adolescente por parte de seus membros, mas a crítica à composição eletiva do órgão e a falta de qualificação demonstra apenas um lado da questão,

que poderá ser suprida com estratégias formativas, pois se levada ao extremo, elimina a democracia.

Para Foucault (2009), os saberes são, em muitos momentos, independentes das ciências, já que suas regras de formação se localizam nos mais variados campos discursivos. Pois para ele, os discursos são analisados com o objetivo de estabelecer o tipo de positividade que os caracteriza, e essa positividade é a de um saber e não de uma ciência. Giacomoni e Vargas (2010), ao explicar a ideia foucaultiana, apontam que não há uma “arquitetura conceitual” homogênea acerca do discurso, já que outros conceitos surgem, muitas vezes contraditórios, muito menos um mesmo tema forma um discurso, já que estes temas podem surgir simultaneamente em dois ou mais discursos. Destacam também que nem toda formação discursiva poderá se constituir em um discurso científico, mas que nem por isso esta mesma formação será diminuída de sua positividade, ou seja, da capacidade da prática discursiva de formar objetos, enunciações, jogos conceituais e escolhas temáticas e teóricas visando à construção de proposições (com ou sem coerência), descrições, verificações e teorias. Portanto, a esta positividade, que não se confunde com a ciência (mas que pode englobá-la), Foucault denomina de saber.

Observamos então, que se justifica a riqueza do conhecimento já acumulado pelo candidato a uma cadeira no Conselho Tutelar, porque a verdade pode ser produzida não apenas pelo saber teórico, sendo esse o maior ganho da elegibilidade dos membros do Conselho Tutelar, o saber dinâmico da comunidade, tão cara ao sucesso das políticas públicas. Saule Júnior (2001) aponta a importância da integração e articulação nas políticas públicas setoriais de direitos humanos para sua concretização, e para que possibilitem a cooperação de grupos sociais, especialmente os vulneráveis, nesse mesmo mister. Conclui o autor afirmando que para o fortalecimento da esfera pública democrática é imperioso o desenvolvimento de processos de capacitação das comunidades locais no que diz respeito à cidadania, direitos humanos e políticas públicas. E no caso dos membros do Conselho Tutelar, isso é ainda mais evidente.

A opção legislativa pela elegibilidade do Conselheiro Tutelar sofre críticas, especialmente porque a democracia direta e participativa estará eventualmente ligada às ideologias e partidos políticos, conteúdo inafastável do jogo democrático. Paula (2014, p.135) a considera prejudicial, conclusão retirada de pesquisa empírica já referenciada. Na sua avaliação, os interesses partidários e eleitoreiros contaminam uma atuação que deve ser imparcial, justificando seu argumento com o fato de que no município investigado ex- Conselheiros Tutelares são hoje parlamentares e estão ligados a grupos políticos que

viabilizaram suas eleições na comunidade local, com envolvimento de lideranças políticas locais.

A capacidade de ser eleito pela comunidade local é a característica fundamental e que distingue o órgão de outra estrutura de governo qualquer; perder a elegibilidade, mesmo com as questões negativas que a envolvem, significaria retirar dessa instituição a essência pela qual foi criada, de ser a voz dos excluídos. A eleição é a forma mais legítima que a legislação encontrou para que a própria sociedade articulasse a rede de proteção de atendimento e serviços de crianças e adolescentes, para que a defesa e garantia de direitos seja exercida pela própria comunidade.