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A passagem de Enkidu para a civilização

II OS SONHOS ENIGMÁTICOS DE GILGAMESH

7. A passagem de Enkidu para a civilização

Voltemos à realidade de Enkidu na epopéia. Como vimos, a hieródula consegue induzi-lo a ir com ela até Uruk:

Ele ouviu suas palavras e aceitou o seu conselho; O conselho da mulher Ele levou a sério. (Tab. II, col. ii, linhas 24-26, Heidel, p. 28)

Vimos que ele se abriu para ela após ter passado pelo choque de ser rejeitado pelos seus companheiros, os animais, com os quais ele tinha vivido numa participação mística. Ele voltou para a hieródula, e agora "levou a sério o conselho daquela mulher". Não resta dúvida de que, para Enkidu, a hieródula desempenha papel deanima, anima superior. Ela o introduz na cultura. A caminho para Uruk, ela lhe ensina a se alimentar e a beber de forma humana, pois, até então, ele só bebia e se alimentava com o leite dos animais. O papel cultural daanima não podia ser exibido de forma mais clara e bonita. Não se pode realmente entender certos comentários desconcertantes como "costumes vergonhosos" etc, a não ser presumindo que o autor está sendo tomado por preconceitos. Mesmo insistindo que ela é prostituta e nada mais do que isso, deveria ser óbvio que esta não seria a função comum de uma prostituta, a não ser que ela tivesse uma função espiritual superior. Assim, Thompson, em sua tradução como hetaira, chega mais próximo deste papel. O texto diz:

Enkidu comeu pão Até ficar saciado;

Da bebida forte ele sorveu Sete taças.

Sua alma sentiu-se livre e feliz, Seu coração rejubilou-se, E o seu semblante brilhou.

Percebemos nitidamente a qualidade poética, mesmo na tradução. Ele se unge e se veste e torna-se, como diz o texto expressamente, "um ser humano".

Ele se ungiu com óleo, E se tornou um ser humano.

Pôs uma veste,

E agora ele é como um homem. (linhas 24-27, Heidel, p. 29)

O que temos realmente aqui é a evolução de um homem-animal, pela hieródula, por esta prostituta sagrada ou sacerdotisa, para um campo da cultura civilizada. Presumiu-se, quiçá de forma correta, que a história de Enkidu srcinalmente deve ter sido um mito separado representando o processo da evolução do homem selvagem primitivo para o homem civilizado, separado da Epopéia de Gilgamesh. Mas, como afirmamos anteriormente, isto não nos impede de reconhecer, nem mesmo nos permite ignorar, o papel do inconsciente criativo na unificação e na fusão desses mitos num só. Pois, mesmo que tivesse sido uma narrativa independente, com Enkidu como a figura central, unindo-a à história de Gilgamesh, faz pleno sentido que eles, a partir de então, andem juntos. Da mesma forma como a história do dilúvio, numa tabuleta posterior, que apresenta outro herói, Utnapishtim, também está ligada a Gilgamesh, e se encaixa perfeitamente. Certos padrões arquetípicos no curso do desenvolvimento cultural podem evoluir juntos e construir uma unidade. A meu ver, não pode haver dúvida a respeito da importância cultural da hieródula nesta epopéia. Isto vem plenamente à luz naquilo que descreve o mito. Assim, a hieródula, que não tem nome, o que também é indício de sua qualidade impessoal, tira Enkidu da sua existência animal e o leva para uma existência humana e para a cultura da sociedade.

A passagem de Enkidu da inconsciência paradisíaca da vida animal para o mundo humano sugere uma comparação com outra história onde um homem é tirado da inconsciência feliz: a história do paraíso do jardim do Éden, a chamada queda do homem. A dor ligada à transição é justamente tão evidente, tanto numa como na outra história, mas quão diferente é a atmosfera nessas duas histórias!

OBSERVAÇÃO: Enkidu é apenas parte de um homem. A outra parte é Gilgamesh, enquanto Adão é homem completo.

Sim, Adão é oanthropos, o símbolo do homem total, e Enkidu é o homem-animal. Além disso, Adão tinha Eva. Esses são outros aspectos. Existe lá nitidamente uma evolução posterior. Mas nós podemos destacar diversos traços para comparar as duas histórias. Qual é a principal diferença no ambiente? Pensemos na forma como a mesma é descrita. "Enkidu alimentou-se de pão até ficar saciado, da bebida forte ele tomou sete taças, sua alma sentiu-se livre e feliz, seu coração se rejubilou e o seu semblante brilhou." O que se sente nesta atmosfera? Ela apresenta algo alegre, natural, otimista. Trata-se de uma ascensão. E na Bíblia? Trata-se de uma queda, a queda do homem. Isso nos leva a considerações profundas. E a algo mais: se pensarmos em toda a vinda ao ser de Enkidu, os deuses o

criaram para o fim específico de ser trazido ao mundo. Eles aprovaram plenamente este desenvolvi- mento. Qual é a diferença gritante entre esta historia e a história da Bíblia? Como aconteceu a queda do homem na história do paraíso? Indo contra Deus, cometendo o pecado. Trata-se de um problema moral. Ao passo que nesta epopéia não se insinua nenhum problema moral. Tudo está incrustado na natureza — e este é o mundo maternal. Enkidu é levado para a civilização, mas ela ainda continua sendo o mundo maternal. Pois a civilização como cultura material (material derivado de mater, mãe) pertence ainda ao mundo maternal. O conceito bíblico dequeda do homem surge de um conflito entre a vida na natureza sem conflitos, intacta, natural, na mãe, no paraíso e as exigências morais do espírito.

OBSERVAÇÃO: Como relacionaríamos isto com aquilo que dissemos em nossa interpretação do sonho a respeito da luta contra a mãe?

Enkidu precisa primeiro ser conduzido para a cultura, eem seguida começa a luta contra a mãe. Veremos que Enkidu oferece as maiores resistências contra a sua ida para lutar com Humbaba. Ele é aquele que tem o elo instintivo, para quem é um feito sacrílego ir derrubar o cedro. Mas esta é apenas a questão mais profunda: se isso não for uma necessidade. Diria que toda luta com a mãe, neste sentido cultural, pressupõe certa consciência.

O homem-animal não pode fazer isso. Na história bíblica é diferente, porque este mito espelha consciência de sofrer do conflito do conhecimento do bem e do mal — de sofrimento do conflito moral. A consciência do conflito moral é característica humana. Os animais não a possuem, as crianças também não, e nós às vezes os invejamos completamente por causa disso. Pelo menos eu já fiz isso! Lembro-me de que, quando criança, nós tínhamos uma empregada que era um pouco débil mental. Era a criatura mais feliz que eu conhecia, e sei como eu a invejava e acho que gostaria de ser igual a Mary. Ela não tinha conflitos. Apresentava até certos tons como que de felicidade animal. Lembro-me de quando eu tinha que estudar e decorar poesias, e assim por diante. Oh, como era bom se eu pudesse ser igual a Mary! Agora não mais penso dessa forma. Veremos isso em Enkidu. O homem-animal em nós, vez por outra, sente-se deprimido e com saudade do paraíso perdido. Por isso, temos esta idéia de projetar o paraíso perdido no futuro, o que fazemos realmente. Mas então ele assume outra característica: reconquistar a maturidade por ter passado pelos conflitos nos quais nos lança a consciência. Existe um dito muito bonito de um místico medieval, Hugo de S. Vítor, que disse existir uma fase em que pela primeira vez nos pomos a caminho, quando as montanhas são montanhas, vales são vales, e tudo está no seu devido lugar. Em seguida, vem um estado em que tudo não é mais assim: as montanhas não são mais montanhas, e tudo é posto em questionamento. Mas,então, vem um estado em que as montanhas voltam a ser montanhas. Tudo volta novamente ao seu lugar, porém de outra forma, num outro nível, num nível realmente consciente.

A meta da individuação não é tornar-se sofisticado, mas, numa forma mais profunda, tornar-se natural e em uniformidade consigo mesmo; encontrar a união entre a consciência e o inconsciente, como é refletida, por exemplo, nohieros gamos do rei e da rainha na alquimia, e em outros simbolismos

do ego. Voltando à nossa comparação: o conceito bíblico da queda do homem provém da ruptura com a natureza, necessária, na aquisição de uma consciência do bem e do mal, ao comer a fruta da árvore cio conhecimento. É realmente o termo de todo o desenvolvimento da consciência. Nós o encontramos mais adiante também com Gilgamesh e com Enkidu. Na Epopéia de Gilgamesh, a evolução de Enkidu representa a desistência do simples lado animal, porém ainda não se trata de ruptura com a natureza. Somente no mundo paterno, pode-se dizer, começa a reflexão moral, o verdadeiro desenvolvimento espiritual. Isto se torna muito óbvio numa outra conexão. Na Epopéia de Gilgamesh, Utnapishtim, no final, representa, por assim dizer, o estágio último do desenvolvimento. Ele encontra uma vida além deste mundo, lá ao longe, além do alcance de outros homens. Somente o herói Gilgamesh é que encontra o caminho para ir até ele. Entretanto, Utnapishtim é o protótipo de Noé na Bíblia; às vezes ele é chamado o Noé babilônico. É o Noé com quem Deus faz a sua primeira aliança e com quem apenas começa o plano divino de salvação, a história espiritual da humanidade, na Bíblia. Teremos ainda outras oportunidades para considerar esses dois mundos a partir do ponto de vista de fases diferentes de desenvolvimento.

O monoteísmo é um aspecto, um desenvolvimento, que afasta das religiões maternas politeístas. E Javé é um Deus que não tem nem mãe nem esposa. O aspecto masculino é muito destacado, e tem um preço muito alto — levando o aspecto feminino para um segundo plano, como se pode ver com toda clareza ao estudar a Bíblia. Diria que isto foi uma necessidade trágica, para que a consciência pudesse crescer. Porque, nesses cultos matriarcais

— Ísis e Osíris, Ishtar e Tamuz —, com toda a sua beleza, sempre havia somente um retorno perene, o ciclo do ano. Tamuz, que ama o filho, é morta pelo calor do verão e revive na primavera, saudada por todas as mulheres. Os rituais femininos são apenas uma espécie de ciclo, ao passo que a religião monoteísta tem, por assim dizer, uma linha vertical. Numa palestra, Jung certa vez traçou ima- gem muito esclarecedora, descrevendo as religiões matriarcais como um uróboro, a serpente que morde a própria cauda. Ela sempre permanecia em círculo. Então chegou um momento, um momento misterioso, quando ela soltou a cauda e ergueu a cabeça, e isto criou a vertical, que representa realmente o começo da história, numa forma progressiva. Em seguida, vem o desenvolvimento. Pensemos em Cristo, que, de certa forma, faz parte da série de mortes e ressurreições dos deuses jovens. Mas, para ele, tornou-se acontecimento único e definitivo, que entrou na história. Não desejo entrar na questão da historicidade de Cristo. Só posso dizer que a historicidade de Cristo é importante para o mito, e isto o tira do círculo, do círculo eternamente imutável. Quando a serpente ergue a cabeça, é um momento misterioso, pois não se pode realmente explicar por que a consciência entrou na existência. Não se pode explicar isso, e do ponto de vista darwinista nunca se conseguirá captar o mistério da consciência.