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II OS SONHOS ENIGMÁTICOS DE GILGAMESH

1. Termos antigos e sonhos antigos

Gostaria de voltar brevemente à questão da tradução do termo hieródula no contexto deste significado religioso na Babilônia. Na tradução poética mais antiga de Thompson, ele usa o termo Hetaira, o termo grego que se coaduna com um aspecto da hieródula muito melhor do que o termo "meretriz" ou "estalajadeira", que soam um pouco por demais contemporâneos. Hetaira se ajusta muito bem ao aspecto religioso, pois ela era muito culta e, assim, era realmente espécie deanima espiritual para o homem. Como sabemos, no começo disso, havia também o caso das gueixas no Japão, que eram muito cultas. Por causa do relacionamento sexual livre, se quisermos, poderíamos considerá-las prostitutas, mas havia um aspecto espiritual ligado às mesmas, o que as aproximava do papel de femme inspiratrice (mulher inspiradora) em relação ao homem, e isto está realmente relacionado ao termo "hetaira". A única coisa que falta é a conotação religiosa, que a hieródula da Babilônia tinha. Eu prefiro esta tradução, pois, pelo menos, ela transmite este aspecto espiritual e cultural. Perguntaram-me como eram escolhidas as hieródulas. Só posso repetir que essas sacerdotisas constituíam uma classe hierárquica da população, e a chefe ou sacerdotisa-mor das hieródulas geralmente era pessoa da alta linhagem. Num caso que encontrei, ela foi escolhida para ser assim pelo rei babilônico. Deveríamos ter em mente que os templos, não menos que o palácio, tinham grande influência na vida da Babilônia. Mas, até agora, não pude encontrar nenhum indício daquilo que fazia com que alguém se tornasse sacerdote ou sacerdotisa; não posso afirmar se era justamente a profissão que a pessoa escolhia, ou, como nos tempos modernos, se aquilo era visto como vocação, ou, ainda, se a pessoa estava propensa a entrar nesta classe por causa dostatus da família.

Antes de abordar os sonhos de Gilgamesh, gostaria de mencionar um livro importante intitulado "A interpretação dos sonhos no Antigo Oriente Próximo", de A. Leo Oppenheim, do Instituto Oriental da Universidade de Chicago. Ele apareceu nas Transações da Associação Filosófica Americana "para a promoção de um conhecimento útil", onde é mostrado o fundamento literário com- parativo do relato dos sonhos. Para mim foi muito interessante ver, de forma corroborativa, quão necessário é introduzir neste terreno o entendimento junguiano dos sonhos. Em sua introdução, ele diz:

Pela própria natureza do seu tema, espera-se uma investigação como a presente, de forma correta ou errônea, para tomar conhecimento das realizações da escola ou escolas psicanalíticas, ou para contribuir de certa forma para o trabalho da pesquisa em torno dos sonhos, baseada na abordagem e nos métodos iniciados por Sigmund Freud. O material que está para ser apresentado neste livro, no entanto, não se presta facilmente para esse tratamento, (por) uma variedade de razões... Uma abordagem puramente psicanalítica produziria aqui somente resultados distorcidos... A personalidade do indivíduo que sonha permanece totalmente além do alcance da investigação, e isto nos priva da informação essencial que a experiência do indivíduo ou, mais ainda, os seus pronunciamentos em outros contextos comunicam ao psicanalista.

(Oppenheim, p. 185)

Naturalmente, como conclui o autor corretamente, se conhecemos apenas uma abordagem personalista, esses sonhos estão excluídos. Mas aqui é o lugar próprio onde o conhecimento dos arquétipos e do método de amplificação tem que entrar; uma consciência do inconscientecoletivo. A amplificação por motivos paralelos, bem como o entendimento dos sonhos como compensações. O que vem em nossa ajuda no entendimento dos sonhos dos quais estamos tratando é o fator de compensação. Que tipo de consciência compensam esses sonhos? Isto será bastante útil. É como mencionei no caso de Jensen, que tinha o pressentimento, sentia o caráter coletivo, geral, típico da Epopéia de Gilgamesh, tinha a intuição dos arquétipos, mas ainda não tinha o conceito dos mesmos; dessa forma, ele projetou nele como sendoa fonte histórica de todos os outros mitos. Se ele tivesse tido o conceito dos arquétipos, poderia ter entendido queeste é um padrão do herói mitológico básico que ocorre também em outros mitos. De certa forma, sinto aqui a mesma coisa: que se chega ao mesmo obstáculo que não se pode superar, se não se tem os conceitos necessários que, eu penso, Jung proporcionou, para entender o assunto. Neste caso, é uma pena, pois Oppenheim se aproxima muito do conceito junguiano quando escreveu, no começo de sua introdução (p. 184): "Nos sonhos mesclam- se, de muitas formas curiosas, as influências do condicionamento conceptual do mundo que desperta... e aquele inventário fundamental de conteúdos dos sonhos que muito provavelmente é compartilhado em graus variados por todos os humanos de todas as eras".

E o que é bastante interessante: entre os diversos tipos de sonhos que ele encontra com sua abordagem literária crítica, existe um no qual aparece a divindade, para reis ou sacerdotes, a respeito do qual ele escreve (p. 185): "Esses sonhos de revelações contêm sempre uma mensagem, e, via de regra, ocorrem somente em circunstâncias críticas e, conseqüentemente, como um privilégio ao líder do grupo social". Isto se coaduna perfeitamente com os chamados "grandes sonhos". Temos esses sonhos arquetípicos sempre em momentos críticos, e esses são os sonhos mais propensos e serem lembrados, até mesmo para o resto da vida. Sabemos desde os primórdios que o líder do grupo social tem esse tipo de sonhos, e foi a partir deles que Jung adotou o termo "grandes sonhos". Era geralmente o feiticeiro ou o xamã quem tinha os sonhos sugestivos considerados importantes em benefício da tribo. Gostaria

de lembrar a história que Jung conta a respeito de um feiticeiro africano que lhe disse com tristeza que fazia muito tempo que não mais tinha esses sonhos. Desde quando os ingleses tomaram conta do país, pois agora eles governam o destino da tribo. Assim, ele agora não sonha mais. Não está mais encarregado do destino da tribo, e os deuses não o guiam através desses sonhos porque ele já não tem o poder de dirigir o destino da tribo. Por isso, o que Oppenheim diz neste caso é realmente uma característica geral dos sonhos arquetípicos. E isso é exatamente o que temos a fazer com os sonhos em nosso caso: trata-se de sonhos sumamente arquetípicos. Mesmo supondo que houve certas tradições de sonhos de relatos, e que apenas certa categoria de sonhos muito importantes é que era relatada, isto não responde pelo próprio simbolismo dos sonhos. Em sua introdução, Oppenheim parece pensar que existe muita invenção com um objetivo. Mas isto não pode ser comprovado e, com base em nossa experiência em relação aos sonhos, não precisamos admitir isso. Com relação aos nossos sonhos neste caso, da mesma forma como dissemos a respeito do próprio mito: onde não existem associações existe outra referência estrutural, acessível, que nos dá o direito de interpretar esses sonhos arquetípicos. Não obstante isso, trata-se de um livro muito valioso, também para orientação a partir de ponto de vista histórico a respeito do significado dos sonhos.