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II OS SONHOS ENIGMÁTICOS DE GILGAMESH

5. Homossexualidade antiga e atual

O que significa o fato de Gilgamesh ter-se curvado sobre este objeto parecido com uma estrela como se fosse uma mulher? Nós temos observado que a estrela também significa sina, que Enkidu, por

assim dizer, cai sobre Gilgamesh como se fosse a sua sina. Ele deve abraçar esta sina. É expressão de amor fati (amor ao destino) do herói, que se apresenta na imagem de união de amor. Da mesma forma, no segundo sonho, ele "se alegra, amando-o e inclinando-se sobre ele como se fosse uma mulher". Isto, a meu ver, parece fazer parte daquela antiga homossexualidade que criou a cultura e a consciência na- quelas eras. Se olharmos para a sexualidade do ponto de vista da libido, do investimento na libido, deveríamos lembrar aquilo que assinalou Jung em seu Símbolos de transformação. A libido como tal é neutra, é energia psíquica, e pode fluir para dentro de campos diferentes. Pode ser dirigida para a sexualidade, mas pode também ser dirigida para o campo espiritual, por exemplo. Assim como a energia pode ser transformada de uma para outra forma — a energia hidráulica para a energia elétrica —, assim também a energia psíquica, através do símbolo, pode ser transformada de uma para outra manifestação. Partindo deste ponto de vista, podemos perguntar: o que poderia significar, na criação da cultura, o fato de toda uma era histórica poder ter esta inclinação para a homossexualidade? Seria interessante perguntar: o que poderia significar,atualmente, um aumento visível na homossexualidade? Isto nos levaria um pouco mais adiante, mas talvez podemos encontrar certas condições que poderiam lançar alguma luz também sobre o problema moderno, embora agora ela tenha cenário muito diferente. Na cultura matriarcal antiga, parece como que a libido dos homens tivesse que se concentrar sobre si mesma, por assim dizer, a fim de se desfazer da mãe. Trata-se realmente de problema materno. A libido no homem tende a alcançar a sua própria virilidade, e a virilidade é projetada sobre o homem. Vemos isso também em nossa própria época, onde com muita freqüência existe grande problema materno por trás da homossexualidade. Geralmente, trata-se de um problema de emancipação da virilidade, da pessoa da mãe. Exemplo interessante é o do jovem homossexual com o qual trabalhei, que sonhava estar numa tribo indígena, colocado de pé no centro de grande círculo composto por todos os homens da tribo. Eles estavam dançando ao redor dele num ritmo ritualístico, e se aproximavam cada vez mais dele. Isto tem toda a característica de sentimento de um rito de iniciação. Na ocasião, ele tinha seus vinte anos de idade, mas, no sonho, ele estava passando por um rito de puberdade retardada que deveria ter acontecido na idade de treze ou quatorze anos. O mesmo jovem certa vez sonhou que queria acordar, mas alguém lhe pressionava tão fortemente os olhos que os mesmos lhe doíam. Quando, por fim, conseguiu abrir os olhos, descobriu que era a própria mãe quem estava lhe pressionando os olhos, isto é, não querendo que ele ficasse consciente. A homossexualidade, culturalmente, tinha algo a ver com o matriarcado — o que é novamente um problema moderno. Trata-se de similaridade. Mas, naqueles eras antigas, parece ter sido uma necessidade cultural emancipar-se numa escala ainda mais ampla do domínio materno, afastar a libido da pessoa materna. Veremos que o problema materno é um dos temas principais da primeira parte desta epopéia, e o problema da imortalidade, na segunda parte da mesma. Entendo que isto lança luz sobre o nosso sonho quando consideramos esta amplificação homossexual no sentido acima como o próprio significado do sonho, e não simplesmente como a homossexualidade em si. Isto se torna ainda mais claro no sonho

do machado. Um caso humorístico de destaque em relação a isso é a história relatada por Jung: encontrando-se na América, ele foi levado a visitar uma tribo indígena, quando encontrou somente mulheres, crianças e homens idosos na aldeia. Onde estão todos os homens?, perguntou ele. A resposta que obteve foi: Vai em frente, e os encontrarás. Finalmente, eles chegaram até um lugar onde ouviram um canto, e viram todos os homens sentados debaixo de uma lona de pano sustentada por postes, cantando: "Nós somos nós! Nós somos nós!" Assim, ficaram fazendo um ritual que durou três dias, deixando a aldeia para certificarem-se a respeito de quem eles próprios eram — de que eles eram homens! Na puberdade, os adolescentes têm esta tendência — nós somos nós — e "você nãome dirá isso!" —, o que é absolutamente necessário. Certa vez, num debate em torno da sexualidade, Jung afirmou que, na puberdade, esta fase é uma necessidade, porque a influência materna é tão avassaladora, que somente pondo-se à parte e lutando e afirmando a própria virilidade, talvez até de forma tola ou imbecil, mas de qualquer forma, é que se torna realmente necessário para o adolescente. Parar de ser o bom menino só para agradar a mãe. Mas, quando isso se prolonga e, então, se torna natural, pode-se tornar fenômeno neurótico. Entretanto, como temos visto no sonho que narrei, o in- consciente é compensado pela disposição de iniciar este jovem dizendo: Olha aqui, chegou a hora; todos se reúnem ao teu redor, todos esses índios valentes, que têm a sua virilidade. Naturalmente, trata- se de questão de destino, quer mude ou não este padrão.

6. O machado

Se aquilo que afirmei parece questionável, julgo que o sonho em torno do machado é mais confirmador. Por que no segundo sonho o objeto é um machado? O machado racha alguma coisa. Como as palavras, ou as facas, o machado geralmente é um símbolo da consciência discriminatória. A língua hebraica torna isso muito claro, porque a palavra para entendimento ébinah, que vem da palavra bain, que significa "entre", "no meio de", e a palavra lehauin, entender, da palavra bain, significa estruturalmente "colocar algo no meio de". Nossa língua está repleta de imagens que se explicam por si mesmas. Basta procurá-las. Temos um exemplo muito bom a partir do Enuma elish, o mito acadiano da criação. Nele, o deus Marduk mata o monstro materno dos primórdios, Tiamat, com uma flecha, objeto penetrante. Nós também dizemos que penetramos alguma coisa com o nosso pensamento:

Quando Tiamat abriu a boca para devorá-lo, Ele forçou a entrada do Vento Mau, para que ela não fechasse os lábios. Quando os ventos impetuosos invadiram o seu ventre, O seu corpo se distendeu e sua boca ficou escancarada. Ele disparou a flecha, e ela rasgou o seu ventre, Cortou os seus intestinos, partindo-lhe o coração. Tendo-a assim subjugado, extinguiu sua vida.

(Tab. IV, linhas 97-103, Speiser, ANET, p. 7)

Esta imagem ocorre também no Antigo Testamento, em Jó 26,12, onde se diz de Deus: "E com sua destreza (binah), ele domou Raab". (Raab é sinônimo de Tiamat.) Assim, no texto bíblico, o significado simbólico dele substitui a imagem do mito mais antigo, que naturalmente oferece confirmação muito viva do nosso entendimento do símbolo. Dessa forma, em nosso caso, aparece o

machado, que faz parte do simbolismo da espada, da flecha e da lâmina — todos eles símbolos da consciência discriminatória. Naturalmente, eles podem ser também destruidores, e a nossa consciência pode ser igualmente destruidora se, por exemplo, nos tornarmos demasiadamente intelectuais e analisarmos alguma coisa em demasia. O machado também faz parte dos instrumentos humanos primitivos, e em culturas primitivas diferentes ele tinha um significado sagrado. Como salientou o pró- prio Jung, com um machado nós derrubamos as florestas, o que dá todo o simbolismo em poucas palavras. As selvas são o inconsciente, e com o machado abre-se clareira no inconsciente para que a luz possa penetrar na escuridão. É isto o que faz o machado. Assim, ele é um símbolo que desenvolve a consciência. É o instrumento necessário nas realizações que criam a consciência. Permite que a luz penetre no inconsciente.

Agora, para antecipar: Enkidu se torna o machado ao lado de Gilgamesh, o que lhe permite realizar a façanha heróica da matança simbólica da mãe; pois, com o machado, Gilgamesh derrubará o cedro na floresta (o simbolismo materno do qual se tornará ainda mais evidente), quando, logo após os acontecimentos dramáticos que encontraremos em primeiro lugar, eles vão matar o deus ctônico gigante Humbaba. Isso revela o significado do machado no sonho, e a chegada de Enkidu. Assim, podemos dizer que o machado realmente destaca a qualidade masculina de Enkidu, que ele deve amar como amaria uma mulher. Que Enkidu representa esta qualidade para Gilgamesh, nós vemos numa tabuleta posterior, onde, em sua lamentação pela morte de Enkidu, ele próprio denomina Enkidu de machado:

O machado ao meu lado, o arco em, minha mão, A adaga em meu cinto... (Tab. VIU, col. ii, linhas 4-5, Heidel, p. 62 [1946 ed.])

Aqui temos três símbolos que representam a consciência. Assim, entendo que devemos chegar à conclusão de que Enkidu não representa a qualidade feminina, mas Gilgamesh tem que dar a um homem o amor que daria a uma mulher. Isto significaria que, independentemente de necessidade cultural de uma era arcaica, esta libido deve ser dirigida para a virilidade. Nesses sonhos, o problema principal da Epopéia de Gilgamesh vem à luz, isto é, a superação da figura materna. Isto pode ser entendido, em nível psicológico, como extorquir mais consciência da matriz do inconsciente, no processo de um desenvolvimento da consciência em expansão.

Poderíamos denominar esta era arcaica a puberdade da humanidade, da mesma forma como os mitos foram denominados os sonhos da humanidade primitiva. Se aquilo que era necessidade da época prevalece ou volta, pode ter uma qualidade regressiva, ou a qualidade de um novo desenvolvimento. Deve-se ver se isto assume um desenvolvimento desintegrador. Encontraremos essas situações, tanto nesta como em outra direção, diversas vezes nesta epopéia. Vimos isto pela primeira vez na ruptura da totalidade psíquica que, entendíamos, representava o mito, quando Gilgamesh oprimia o povo. Se essa ruptura tivesse aumentado, teria sido uma desintegração, do ponto de vista psicológico. Mas, como vimos, isto causou boa inversão. O povo se tornou colaborador, concentrando-se, no sonho, em torno

deste novo ser que deveria completar Gilgamesh. Enkidu é um complemento necessário para Gilgamesh, uma conexão necessária dele. Podemos ver também em Enkidu a concentração dos instintos — ou o povo se tornando um só. Estar relacionado com Enkidu, estar unido a ele, dá a Gilgamesh a energiae a força animal, como veremos, para cumprir os seus feitos heróicos. Os heróis sempre têm a ajuda dos deuses de certa forma. Eles nunca fazem isso somente por sua própria consciência. Pensemos em Ulisses, que recebeu a erva milagrosa de Hermes, quando estava indo até Circe, aanima perigosa, e lhe foi dito que tivesse a espada à mão, mesmo quando estivesse dormindo. Aqui temos novamente a espada. Ele tinha que ter a presença de espírito, uma consciência viva, enquanto estava junto com esta figura deanima perigosa. Agora vamos deixar de lado os sonhos. Gostaria apenas de mostrar o que eles tinham em mira. Eles antecipam intuitivamente a obra que vem à frente para Gilgamesh, o que ele irá enfrentar. Ele tinha que ter toda a sua virilidade masculina antes de prosseguir no seu intento heróico.