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IV NA FLORESTA DOS CEDROS

3. Um sonho horrível

Os dois heróis continuam a sua caminhada e, quando param para passar a noite, cavam um poço na frente de Shamash. Em seguida, Gilgamesh, após oferecer um sacrifício de comida agradável, pede à montanha que ele escalou que traga um sonho para Enkidu. A montanha responde, e a numinosidade daquele evento pode ser sentida muito claramente naquilo que vem a seguir:

Uma chuva fria passou por perto... Fez com que ele se encolhesse... ... e como os grãos das montanhas... Gilgamesh apoiou o queixo nos joelhos.

(Tab. V, col. iv, linhas 3-6, Heidel, p. 47)

Assim, ele é atingido por chuva fria. Ele se encolhe, agacha-se, adormece, mas acorda no meio da noite, levanta-se e fala para Enkidu:

"Meu amigo, não me chamaste? Por que acordei? Não me tocaste? Por que estou assustado? Nenhum deus passou por aqui? Por que os meus membros estão paralisados de medo?

(linhas 10-12, Heidel, p. 47)

Temos aqui uma descrição muito impressiva de uma experiência numinosa. Ele pensa que um deus passou por perto. Podemos ver como para ele isso foi tão real, pois julga que Enkidu o tocou. Alguma coisa o tocou. Ele acorda assustado e tem a sensação de que um deus passou por perto. Trata- se de uma imagem imediata de experiência numinosa. Temos um paralelo muito conhecido desta imediação na Bíblia — porém sem medo, provavelmente por causa da sua inocência infantil —, quando o menino Samuel é chamado pelo nome por três vezes seguidas (1Sm 3), quando se deita para dormir no templo, e a cada vez ele vai até Eli e diz: "Aqui estou". E a cada vez Eli lhe diz: "Não, eu não chamei você. Vá se deitar". Até que, por fim, Eli começa a entender que é Deus quem o está chamando, e orienta Samuel a responder da próxima vez, se voltar a ser chamado, com as palavras: "Fala, Javé, que o teu servo escuta". A descrição da Bíblia desta imediação é tão nitidamente auto-evidente: "E Samuel foi se deitar no seu lugar. O Senhor chamou Samuel; e ele disse: 'Aqui estou'. E correu para junto de Eli e disse: 'Aqui estou; porque tu me chamaste'". Algo semelhante a isso acontece com Gilgamesh. E desta vez ele narra o seu sonho a Enkidu:

"Meu amigo, eu tive um terceiro sonho E o sonho que tive foi completamente assustador.

Os céus trovejavam, a terra ecoava; A luz do dia desapareceu, veio a escuridão;

Os relâmpagos reluziam, o fogo flamejava; As nuvens se adensavam, despejavam a morte. A claridade desapareceu, o fogo se extinguiu; E o que veio do alto se transformou em cinzas".

(linhas, 13-20, Heidel, pp. 47s)

Enkidu interpreta o sonho de Gilgamesh, mas, infelizmente, as suas palavras não foram preservadas. Pois bem, analisemos agora este sonho. Que tipo de sonho é este?

OBSERVAÇÃO: Um sonho sinistro.

Um sinistro! Este é um sonho sinistro. Ele apresenta novamente uma catástrofe, mas, desta vez, qual é a diferença? Existe uma diferença bem nítida.

OBSERVAÇÃO: Termina em cinzas, em vez de recuperação.

Sim, ele é a solução negativa, mas, em todo o caráter do sonho, existe outro aspecto que gostaria de destacar. Ele se situa numa escala cósmica mais ampla. Como se pode notar, nenhum ser humano aparece durante todo o sonho. Nos outros sonhos, apareciam Enkidu e Gilgamesh, e uma figura luminosa, mas neste não aparece nenhum ente vivo, nem humano nem divino. Qual é o simbolismo, qual é o quadro desta catástrofe: "Os céus trovejavam, a terra ecoava, a luz do dia desapareceu, veio a escuridão, os relâmpagos reluziam, o fogo flamejava, as nuvens se adensavam e despejavam a morte, a claridade desapareceu, o fogo se extinguiu, e o que veio do alto se transformou em cinzas"?

OBSERVAÇÃO: Os elementos da natureza. Sim, e nós temos algumas alusões.

OBSERVAÇÃO: É apocalíptico, mas, como num quadro, poderia ser um tremendo terremoto ou uma erupção vulcânica.

A imagem poderia ser a de uma erupção vulcânica com fogo e chuva de cinzas. Mas o leitor está absolutamente certo. Trata-se de um acontecimento apocalíptico, poderíamos chamá-lo de Gotterdãmmerung, um crepúsculo dos deuses. Se mantivermos esta associação de um crepúsculo dos deuses, o que significa isto psicologicamente?

OBSERVAÇÃO: Poderia significar um cataclismo ou uma destruição dos tempos de outrora. Sim, justamente, eu também diria isso. Podemos esperar um significado mais profundo que é revelado aqui a Gilgamesh: o domínio dos antigos deuses acabou. Vai surgir, ou não, algo de novo; isto nós não sabemos. Muitas vezes acontece isso quando surge uma nova era e termina uma era anterior.

No segundo sonho — o primeiro sonho está perdido para nós — Enkidu viu a queda de Humbaba na montanha que estava desmoronando: "Nós prenderemos Humbaba; nós o mataremos". Agora, pensemos novamente em Humbaba. Ele tem alguma relação com aquilo que é representado aqui. Se pensarmos no sopro de fogo de Humbaba, que provoca a morte, que Enkidu descreveu no começo, e que ele é um espírito terrestre, essas características poderiam nos induzir a pensar em Humbaba como sendo personificação daquela era mais antiga que desaparece, ou que está fadada a desaparecer, pelo feito heróico. Como lembramos, ele é o guardião do palácio sagrado de Ishtar, por isso poderia muito bem ser aquele antigo espírito masculino ctônico que pertencia à grande Mãe, que submerge neste crepúsculo dos deuses. Se estamos no rumo certo, não é difícil imaginar em quem seria o novo deus que está surgindo. Podemos conjeturar a partir daquilo que ouvimos anteriormente e que

será plenamente confirmado no que vem a seguir, que deve ser Shamash. Foi Shamash quem pôs Gilgamesh a caminho para matar Humbaba. Ele "tocou" Gilgamesh, como disse sua mãe Ninsun, e assim ele partiu para "enfrentar uma batalha que não conhecia, e para percorrer um caminho que não conhecia". Aqui, a própria essência do herói aparece em seu significado pleno: o símbolo do homem que desperta para nova consciência, que é colocado no seu rumo e impelido pelo deus-sol, que é o deus da consciência. Shamash é o impulso espiritual que tira o homem da letargia da órbita circular perene da natureza, que é simbolizada pela deusa-mãe.

Para mim, foi muito interessante ver quão próximo chegou um comentarista deste entendimento, embora não tenha escrito do ponto de vista psicológico. O erudito holandês Bõhl, em seu livro importante sobre a Epopéia de Gilgamesh, presume que toda epopéia é uma expressão de um conflito teológico entre Uruk, onde reina a deusa Ishtar, e Larsa, o centro do culto do deus-sol. Do ponto de vista teológico e político, a epopéia expressa a luta entre Shamash como um deus moral ético, o deus da justiça, e a enigmática deusa terrestre Ishtar, com seus ritos de vegetação. Ele levanta a questão de se indagar por que devia ser justamente Gilgamesh, o rei de Uruk, que é o capitólio de Ishtar, quem luta contra a Grande Mãe. Bõhl se coloca realmente numa situação difícil, neste caso, e a sua solução é que o resultado se torna mais efetivo se for o próprio rei do centro do culto de Ishtar quem luta contra Ishtar. Eu me interessei pela leitura disso, pois o que Bõhl sustenta é realmente isto. Ele vê o caso de forma correta, no sentido de que se trata realmente de competição entre dois deuses, mas não atinge o ponto psicologicamente importante segundo o qual é Gilgamesh o herói que deve dominar Ishtar; não exatamente o cidadão mais importante de Uruk, mas aquele que traz nova consciência, a nova consciência de Shamash, que deve dominá-la.

OBSERVAÇÃO: O fato da sociedade matriarcal estar passando não apontaria também para este seu comentário?

Sim, absolutamente, mas, a meu ver, é um pouco questionável usar os termos "matriarcal" e "patriarcal".

Não gosto de usar esses termos, pois ainda é bastante polêmico estabelecer o que eles realmente significam. Prefiro dizer a era da deusa-mãe, que não é meramente ou apenas matriarcal. Não é tão simples assim.

OBSERVAÇÃO: Muito bem, em vez de dizer matriarcal, podemos dizer de outra forma: é somente quando o pai assume que entra o espiritual.

Sim, justamente isso. Nisto eu concordaria plenamente, e, a meu ver, é realmente isto que representa a Epopéia de Gilgamesh. Trata-se de um mito que traz uma visão valiosa numa transição de um desenvolvimento religioso; diria que se trata de transição do politeísmo para — ou em direção ao — monoteísmo. Veremos isto quando estabelecermos alguns paralelismos com o Antigo Testamento. Veremos que o Deus da Bíblia tem alguns paralelismos com Shamash, aquele que traz a luz, o deus masculino. Na comparação das histórias do dilúvio da Epopéia e da Bíblia, tornar-se-á visível que no

Deus da Bíblia existem ainda elementos dos outros deuses anteriores, porém — e isto é o ponto de destaque — unidos numa única personalidade divina. Isto mostra uma consciência mais elevada do que quando a totalidade das características divinas é encontrada em partículas, como no politeísmo. Temos a mesma coisa numa personalidade inconsciente, quando é possível ser isto hoje, e no outro dia, outra coisa. O que procuramos fazer no processo interior do desenvolvimento é unir tudo numa só consci- ência. Portanto, numa imaginação ativa, por exemplo, nessa técnica da participação consciente nas expressões da fantasia do inconsciente, certos aspectos de nós mesmos aparecem com figuras, e se conseguirmos percebê-los como pertencentes a nós mesmos, nós pagamos pelo sofrimento do conflito. Devemos sustentar que somos isto, mas também aquilo, porém isto é o que cria uma consciência superior. Se pensarmos em indivíduos muito conscientes, eles podem ser muito felizes, exatamente como os animais, porque algum dia o sol brilhará, e no dia seguinte choverá, e não existe necessariamente uma continuação de um ego que traga todos esses estados. Hoje eu sou isto, e sou um todo, e amanhã sou outra coisa, e continuo sendo um todo. Naturalmente, isto nos livra de um conflito, mas não nos leva a uma consciência mais elevada — e geralmente a vida não nos permite fazer este jogo por tempo muito longo.

Neste sonho do herói, nós já vemos a grande revolução em ação do mundo materno para o mundo paterno. O mundo materno submerge. Mil anos depois, é o herói-sol Marduk quem mata a mãe primitiva Tiamat, e forma o céu e a terra das duas metades do seu corpo como nova criação. Pois bem, não desejo afirmar exatamente mil anos após, mas o nome de Marduk não aparece na Epopéia de Gilgamesh, que é um dos sinais de que a Epopéia é mais antiga do que a lenda de Marduk. Marduk é o jovem deus-sol dos tempos assírios, e nós não sabemos de que época é o mito de Tiamat. Ele também tem srcens sumérias, mas, na forma de Marduk como seu herói, ele é mais recente do que a Epopéia de Gilgamesh. A partir de Marduk, existe uma linha nítida que conduz até Javé, o Deus Pai da Bíblia, uma linha que pode ser delineada na própria Bíblia. Em Jó 26,12, lemos que Javé domou o dragão marinho Raab (que é sinônimo de Tiamat) pelo seubinah, pelo seu entendimento, e esta imagem toda é um paralelismo do assassinato de Tiamat executado por Marduk com a sua flecha, com uma arma cortante e discriminadora. Esta imagem em Jó, e Jó é um livro do final do Antigo Testamento, é um espelho do herói-sol que domina o caos materno. Há uma tendência para não se reconhecer sufici- entemente a imagem mitológica na Bíblia. Um estudioso alemão do Novo Testamento chegou a escrever sobre a desmitologização da Bíblia. É pena encarar o tema desta forma, pois existe mito também na Bíblia, só que de outro tipo. Não é questão de não se reconhecer o caráter mitológico, mas de perceber o significado do novo mito. Uma tendência racionalista é visível neste caso, que é compartilhada também por outros teólogos.