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VI O IMPACTO DA MORTE

3. O luto de Gilgamesh

Após o sonho ominoso que teve, Enkidu vai piorando constantemente. Antes que a morte chegue, ele se queixa a Gilgamesh de que não pode nem morrer como um guerreiro no campo de batalha. Esta era considerada a morte mais honrosa, e, como veremos na 12- tabuleta da epopéia, o guerreiro que morria na batalha tinha um destino mais tranqüilo, uma vez que os pais podiam lhe amparar a cabeça, ao morrer. No começo da 8- tabuleta, encontramos Gilgamesh ao amanhecer, junto ao leito de morte de Enkidu:

Logo aos primeiros albores da madrugada, Gilgamesh disse para o seu amigo:

"O Enkidu, meu amigo, de quem a gazela foi mãe E o asno selvagem foi pai,

E... a pastagem.

As montanhas nós escalamos e descemos até a floresta dos cedros.

(Tab. VIII, col. i, linhas 1-7, Heidel, p. 62)

Após grande lacuna, na qual, ao que parece, ele invocou os animais das estepes para chorar a morte de Enkidu, nós o encontramos expressando o seu profundo pesar pela sua perda perante os anciãos de Uruk. Num retrospecto que faz, ele experimenta mais uma vez toda a vida que passaram juntos, e se dá conta daquilo que representava para ele Enkidu:

Escutai-me, ó anciãos, e dai-me ouvido! É por Enkidu, meu amigo, que eu soluço.

Chorando amargamente como para uma mulher que grita de dor

Ele era o machado ao meu lado, a arma de confiança do meu braço,

A adaga em minha cintura, o escudo que estava diante de mim,

Minha vestimenta de festa, minha única alegria! Surgiu um inimigo e o arrebatou de mim. Meu amigo, meu irmão mais jovem, que caçava

o asno selvagem nas pradarias e a pantera nas estepes; Enkidu, meu amigo, meu irmão mais jovem, que caçava

o asno selvagem nas pradarias e a pantera nas estepes. (Tab. VIU, col. ii, linhas 1-9, Heidel, pp. 62s)

Vemos aqui mais uma vez o estilo repetitivo que o torna especialmente expressivo. Ele repetirá essas mesmas palavras mais adiante para Siduri, para Utnapishtim, para Urshanabi, o barqueiro de Utnapishtim, e assim por diante. Este estilo arcaico de repetição é indício de que a epopéia srcinalmente foi transmitida oralmente, e não por escrito.

Nós que superamos todas as dificuldades, que escalamos as montanhas;

Que agarramos e matamos o touro celeste;

Que derrotamos Humbaba, que habitava na floresta dos cedros! —

O que significa agora este sono que tomou conta de ti? Ficaste obscuro e não podes mais me ouvir." E certamente ele não ergueu os olhos.

Então ele cobriu com um véu o seu amigo, como a uma noiva...

Ergueu a voz, como um leão, Como uma leoa que perdeu os filhotes. Sem cessar ele se voltava para o seu amigo. Arrancando o próprio cabelo e jogando-o fora...

Despojando-se das próprias vestes e atirando-as fora... (linhas 10-22, Heidel, p. 63)

Todas essas são expressões orientais de dor. Infelizmente, o restante da 8- tabuleta tem ainda mais lacunas, assim só podemos conjeturar o que aconteceu. Gilgamesh realiza um ritual de luto que Shamash já descreveu para Enkidu, quando este amaldiçoou a hieródula etc, no seu ressentimento por ter sido atraído para a cultura. Shamash o serenou então com o seu recital das honras que Gilgamesh lhe confere, e previu o que o próprio Gilgamesh diz agora, repetindo Shamash literalmente:

"Num divã de honra deixei-te reclinar. Sentei-te num sofá cômodo, à minha esquerda, A fim de que os príncipes da terra te beijassem os pés.

Sobre ti farei com que o povo de Uruk chore e se lamente. As pessoas prósperas encarregarei para que te sirvam. E eu mesmo, após o teu enterro,

farei com que o meu corpo se cubra de longos pêlos. Cobrir-me-ei com a pele de um leão e andarei pelo deserto". (Tab. VIII, col. iii, linhas 1-7, Heidel, pp. 63s)

Schott, o tradutor alemão da Epopéia de Gilgamesh, supõe que Gilgamesh estava esperando trazer Enkidu de volta para a vida com a sua lamentação, e que, por isso, ele adiou o enterro. Isto é confirmado pela 10- tabuleta, onde Gilgamesh fala a Utnapishtim a respeito de Enkidu:

"A sepultura eu não quis entregá-lo, até que os vermes lhe cobrissem o rosto".

Assim, ele não quis sepultá-lo, esperando mantê-lo com vida. Mas então ele se põe a realizar os rituais do enterro:

Logo aos primeiros raios da madrugada, Gilgamesh pôs-se a moldar.. Trouxe uma tábua larga de madeira elamaqu. Despejou mel dentro de um vaso de cornalina. Encheu de manteiga um vaso de lápis-lazúli. ...ele enfeitou e expôs ao sol.

(Tab. VIII, col. V, linhas 45-49, Heidel, p. 64)

Como sabemos, na antiga Babilônia os cadáveres eram embalsamados com manteiga, mel, óleo e sal, envoltos em linho, cobertos com essências aromáticas e colocados num ataúde de pedra. Homens e mulheres clamando e soluçando acompanhavam o cortejo fúnebre, tocando flautas, e os parentes dos falecidos vestiam túnicas com pêlos. O próprio luto era muito expressivo. Nos anais do Rei Sargão,

lemos a respeito de um luto babilônico: "Ele sentou-se no chão, rasgou as vestes, pegou uma faca para se ferir e prorrompeu em lágrimas". O luto se prolongou por sete dias. Algumas dessas práticas em forma reduzida, como sentar-se no chão ou num banco baixo ou numa caixa durante sete dias de luto e rasgar as vestes, permaneceram nos rituais de luto judaico até nossos dias. Os mortos eram sempre enterrados, e não cremados. Ser cremado após a morte era considerado uma desgraça. Podemos encontrar isso também no Antigo Testamento, em Amós 2,1, onde Moab foi censurado por ter queimado os restos mortais de um rei edomita.

Na tabuleta 9, lemos novamente que Gilgamesh está em prantos: Gilgamesh por Enkidu, seu amigo,

Chora amargamente e anda pelo deserto. "Quando eu morrer, não serei igual a Enkidu? A dor invadiu o meu coração.

Tenho medo da morte e ando pelo deserto." (Tab. IX, col. i, linhas 1-5, Heidel, p. 64)

O que podemos ver nesta tríplice menção do luto? Na primeira, ele chora a perda do amigo, e lembra todas as coisas que fizeram juntos. Na segunda, ele realiza todos esses rituais. Isto é, após o luto pessoal pela perda do amigo, vem a realização dos rituais coletivos. Poderíamos dizer: "Pronto, agora basta". O que significa, psicologicamente, esta terceira manifestação? Quando ele diz: "Quando morrer, não serei eu igual a Enkidu? A dor invadiu o meu coração. Tenho medo da morte e ando pelo deserto". Qual é a diferença aqui?

OBSERVAÇÃO: É mais pessoal.

Justamente, mas em que sentido, pois a sua dor pela perda do amigo era também pessoal. Mas, num sentido especial, ela é pessoal no sentido de que repercute nele. Parece que ele tem que experimentar a morte do seu amigo num nível mais profundo. A morte de Enkidu está se tornando para ele a experiência da morte como tal. Parece que pela primeira vez ele foi tocado pela consciência de que o homem tem que morrer e que isto se aplica a ele também. Como ser coletivo, ele naturalmente sabia disso. Ele já havia presenciado a morte de pessoas, mas até agora não havia percebido plenamente isso. Entendo que isso é algo muito comum. Todos nós tivemos essas experiências de coisas que já sabíamos há tempo, mas que, de repente, nos atingem de modo diferente. Torna-se uma experiência diferente: uma nova constatação que antes não havia sido relacionada com aquele fato. O que sabemos e até já havíamos experimentado antes pode revelar o seu significado mais profundo somente em mo- mentos muito especiais. Tenho ouvido, mais de uma vez, a respeito de mulheres que, somente com um filho, o filho especial, de repente se deram conta do que representava ser mãe. Elas já haviam tido outros filhos antes, mas isso não as havia mudado interiormente. E assim também todos nós já tivemos experiências relacionadas com a morte, mas, poderíamos dizer, em determinada ocasião, ela se torna a experiência arquetípica. Toda experiência humana arquetípica atinge o seu peso completo somente

quando encontra em nós a maturidade de recebê-la e de entendê-la. Lembro um caso que Jung mencionou, certa ocasião, de uma mulher em estado de depressão, que se queixava de que a vida para ela era muito monótona e que nunca havia experimentado nada. Então aconteceu que ela teve cinco filhos. Mesmo assim, nunca experimentou nada. Isso pode ser verdadeiro. Depende de que matriz se tem que receber a experiência. A questão é saber se o conteúdo está constelado para se tornar consciente. Somente assim é que nós nos tornaremos plenamente conscientes. Isto nos mostra também que estamos num processo de desenvolvimento. Não que coisas diferentes estejam nos acontecendo exteriormente, mas que elas acontecem para nós de forma diferente em nosso íntimo. Temos nova camada de existência interior onde elas nos atingem. Então elas podem aparecer, enquanto, numa outra ocasião, elas não aparecem.

Assim, podemos constatar isso também aqui. Agora Gilgamesh é atingido. Não somente pela perda do amigo, mas pela constatação de que isto pode acontecer também com ele mesmo. Através da morte de Enkidu, Gilgamesh torna-se consciente da morte como realidade humana. A morte de Enkidu é refletida, por assim dizer, na existência humana de Gilgamesh. Isto está expresso literalmente na reflexão do próprio Gilgamesh: "Quando eu morrer, não serei igual a Enkidu?" Podemos ver aí que isso nunca tinha acontecido com ele antes. Ao se dar conta da morte, Gilgamesh se torna humano. A sua substância divina de dois terços atingiu nele agora o humano. Ao analisar esta ocorrência, o Dr. Jung fez a seguinte observação: "Gilgamesh, com esta experiência, saiu do status nascendi (estado de nascer) na mãe". Anteriormente já falamos a respeito deste problemade pueri aeterni (eternas crianças), que, se não assumem o desafio e não olham o relógio, vivem numa promessa crônica do seu futuro. Somente com a constatação da morte e do limite do tempo é que a vida se torna real. Num dos seus seminários, Jung afirmou: "A aceitação da morte é a condição para alcançar nova vida. Se a pessoa não aceita a morte, a pessoa encontra a morte". Porquanto, então, a vida não é mais real. Entendo que é justamente disso que trata esta epopéia. Mas veremos que ela não termina com uma solução, mas é o começo de busca muito profunda. Afinal de contas, esta foi uma era muito antiga, e o problema foi transmitido para evoluções religiosas posteriores através dos tempos.