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V GILGAMESH E ISHTAR

9. O problema da morte

De volta à sua terra, Gilgamesh celebra com uma festa alegre, após o que os heróis vão dormir. Mas já na mesma noite, vem a queda. Um sonho anuncia a Enkidu que os deuses haviam decretado a sua morte. Aqui começa algo novo: o problema da morte e da imortalidade se abre. O herói Gilgamesh, o protótipo da consciência, livre de sua mãe, se defronta com nova tarefa espiritual específica. Poderíamos dizer que começa nova peregrinação para a alma da humanidade representada nestean- thropos Gilgamesh, em seu processo de desenvolvimento.

Gostaria de destacar que, a essa altura, nós estamos no final da sexta tabuleta da epopéia, isto é, a meio caminho da mesma. Poderíamos dizer que, psicologicamente, é também a ruptura natural entre aquilo que poderíamos chamar as duas grandes partes da epopéia. Quando o grande arquétipo da mãe é tratado decisivamente, surge algo de novo. Com a morte iminente de Enkidu, Gilgamesh de repente

percebe que se tem que morrer, que a vida não continua indefinidamente. Citando novamente Jung: no debate que se seguiu à minha palestra sobre a Epopéia de Gilgamesh, ele disse que o jovem que não está livre da mãe vive num eternostatus nascendi, um eterno estado do vir-a-ser. O tempo não tem valor: ele segue em frente. Esse éo puer aeternus. Ele se sente eternamente menino. O tempo não conta, a vida não é limitada. Pode-se viver como uma promessa eterna daquilo que, alguma vez, algum dia, a pessoa será. Nunca entra na realidade. No trabalho com jovens, tenho visto que às vezes, nesta fase da vida, o problema do tempo é levantado claramente pelos sonhos. Lembro de modo especial um caso em que aquele que teve um sonho estava de volta no pátio da escola, onde um grande relógio, que na realidade não se encontrava lá, dava a hora. Agora o tempo começou a valer. Não se podia dizer amanhã, farei isso amanhã. O que importava é que se vive a própria vida e se completa a própria vida. Não se podia, inconsciente e irresponsavelmente, ir simplesmente em frente, sendo cuidado pela vida maternal, sem ter que assumir a própria responsabilidade. Portanto, encontro um significado profundo no fato de que o problema da morte, e o problema da imortalidade relacionado à mesma, só começa num determinado ponto, isto é, quando esta existência ambivalente feliz do ventre da grande mãe na vida presente é interrompida.

Agora Gilgamesh está aberto para a segunda tarefa, para a busca de sua vida significativa. E a isto que se resume quando entra em jogo a morte: o que significa a nossa vida se nós temos que morrer? E acaso existe alguma seqüência? Mas isto é apenas uma antecipação da segunda parte da epopéia, para a qual passamos a partir de agora. E gostaria que o leitor soubesse que não se trata de um hiato feito na própria epopéia, mas que, simplesmente, me parece que se presta naturalmente aqui a partir de ponto de vista psicológico. Neste caso, entendo que a comparação com os sonhos ajuda a entender o mito, assim como o mito é inestimável para podermos entender os sonhos. Depois da festa, que é o clímax do seu feito heróico, Gilgamesh tem que empreender uma descida que o conduz até as profundezas da morte. Mas esta descida se transformara numa dimensão especificamente espiritual diferente, numa ascensão de Gilgamesh, a quem nós reconhecemos ser o protótipo do inconsciente libertado da mãe. É o mesmo que acontece em Fausto, onde Mefistófeles lhe diz: "Desce agora até as mães. Eu poderia também dizer: ascende". É uma nova jornada pelo mar das trevas que começa, com outra meta. Após a sua festa alegre, os heróis vão dormir e Enkidu tem um sonho que relata a Gilgamesh:

"Meu amigo, por que os grandes deuses tiveram um conselho juntos?

Meu amigo, ouve o sonho que tive nesta noite. Anu, Enlil, Eaeo celeste Shamash tiveram um conselho juntos. (Como lembramos, Anu é o deus celeste, Enlil é o deus terrestre, das tempestades e do vento, Ea é o deus da água, e Shamash sabemos que é o deus-sol.)

E Anu disse para Enlil:

'Porque mataram o touro celeste e mataram Huwawa, Um dos dois deve morrer', disse Anu,

Aquele que desmoronou as montanhas dos cedros!' Mas Enlil disse: 'Enkidu é que deve morrer;

Gilgamesh não deve morrer!'

Então o celeste Shamash replicou a Enlil, o herói: 'Não mataram eles o touro celeste e Huwawa sob minha ordem

(aqui fica bem claro que Shamash, o símbolo da nova consciência, era o instigador desses eventos)

E agora o inocente Enkidu é que deve morrer?' Mas Enlil se enfureceu Com o celeste Shamash e disse: 'Porque todos os dias desces até eles como se fosses um igual a eles!'" (Tab. VI, linha 194; Tab. VII, col. i, linhas 3-16, Heidel, pp. 55s)

Esta censura dos deuses contra outro deus é muito interessante. "Tu te imiscuis em demasia com esses seres humanos. Nós não gostamos disso". O conselho dos deuses nos dá imagem viva de um conflito existente na esfera celeste. A morte sacrílega de Humbaba e do touro celeste será vingada. Anu pede que Gilgamesh seja punido por isso, sobretudo porque ele derrubou os cedros da montanha. Assim, na visão divina, este primeiro ato de Gilgamesh parece ser o crime mais grave. Nisto nós vemos que este cedro não é apenas um cedro. É um insulto a algo que é divino. Um insulto a Ishtar. À medida que ele representa matança simbólica da mãe, trata-se realmente do ato mais importante, que inclui outro ato como conseqüência. Enlil pede a morte de Enkidu: "Enkidu deve morrer, mas Gilgamesh não deve morrer". Apenas Shamash defende os dois: "Não mataram eles o touro celeste e Huwawa sob as minhas ordens? E agora Enkidu deve morrer?" Devemos observar que o texto traz "tuas ordens", e não "minhas ordens". Mas eu gostaria de seguir a opinião de Schott e de Heidel, que entendem que com toda certeza se trata de equívoco, ou de alteração intencional do escriba hitita, pois ele sabe, a partir do que fora dito antes, que foi Shamash quem enviou Gilgamesh em sua jornada. Como também, na observação de Schott, não é provável que Enlil, que era o guardião de Humbaba, tivesse causado a sua morte. Trata-se com certeza de um erro. Numa época posterior, pode ter havido resistência a uma culpa em Shamash, o deus-sol, o último juiz dos deuses. Encontraremos essas "correções" provocadas por resistências de natureza teológica também no Antigo Testamento. Assim, entendo que podemos acompanhar a maioria dos tradutores, dando como certo que Shamash realmente disse "sob as minhas ordens", porque assim parece ter sido, com base em toda a associação existente no texto. Esta passagem, que, a propósito, é uma inserção a partir de uma recensão hitita (portanto, também o nome Huwawa em lugar de Humbaba), é muito importante em nossa associação, uma vez que o próprio Shamash declara ser o instigador dos feitos heróicos de Gilgamesh e de Enkidu. Ele agora é realmente a figura do Si-mesmo dos dois.

A resposta de Enlil a Enkidu é especialmente significativa numa outra associação. Tomado pela fúria, ele diz: "Porque todos os dias desces até eles como se fosses um deles!", isto é, "o seu igual".

Assim, um deus censura o outro deus por manter contato tão íntimo com os mortais. Na complexidade da essência divina, que aqui vemos ainda representada como pluralidade politeísta de Deus, se nós os tomarmos como um só, existem aspectos diferentes da divindade. Como disse certa vez Jung numa discussão a respeito deste tema, Shamash é o mistério da consciência, o arquétipo da consciência no inconsciente, na esfera dos deuses. E isto é o que os outros deuses, que querem permanecer no seu inconsciente divino, não desejam. Esta mesma disputa entre os deuses nós a encontramos também no Antigo Testamento, porém numa outra forma, isto é, na ambivalência de Javé, a personalidade divina de Deus, que incentiva, e ao mesmo tempo rejeita, a idéia de que os seres humanos devem se tornar conscientes; em Gênesis 6, une "os filhos de Deus" com as filhas do homem, e ao mesmo tempo pune a ambos por causa disso. A idéia é a seguinte: que naquilo que ainda se considera como aspectos separados, como em nossa epopéia, temos um conflito entre deuses diferentes no panteão, na "família", que a Dra. Marie-Louise von Franz muito apropriadamente denominou "os arquétipos em família". Com os arquétipos em família temos uma luta doméstica. Poderíamos dizer, com base na fenomenologia do Antigo Testamento, que esta disputa é vista numa outra perspectiva, ou que é situada de forma diferente, isto é, numa só alma divina ambivalente, que tem aspectos diferentes. Por exemplo, na história do Gênesis, Deus diz: "Não comam desta árvore!" A serpente chega e diz: "Vão e comam, e depois se tornarão iguais a Deus". Este é um impulso divino, considerado psicologicamente, para se contrapor ao desejo de que o homem não deveria se tornar consciente. Porque, posteriormente, todo o plano da salvação é desenvolvido sobre o fato de que o homem tem realmente esta consciência de discernir entre o bem e o mal. Podemos ver no próprio texto primitivo de Gênesis 6, onde os filhos de Deus se unem aos humanos, que esses filhos de Deus, osBenai HaElohim, pertencem à corte divina. Eles são substância divina. São aspectos do divino, de Javé. Isto chega até o âmago da questão, que o leitor pode encontrar em meu livroSatan in the Old Testament, pois Satanás é também um dos Benai HaElohim. Neste livro que citei apresento com mais detalhes como até mesmo a tradução correta de Benai HaElohim significa partes ou aspectos de Deus; indivíduos da substância divina. E eles se unem com as filhas do homem, e são punidos por isso, assim existe também uma contradição, dois impulsos diferentes. Nisto reside um conflito entre os dois lados de Javé. Em nossa epopéia, o conflito existe entre Shamash e Enlil. Este não é o único caso. Existem até mesmo palavras, como veremos mais adiante, que Ishtar pronuncia, e que Javé também profere. Essas comparações nos dão um discernimento singular na dinâmica do simbolismo religioso.