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O povo escorpião junto ao portal da montanha

VII A "JORNADA ATRAVÉS DO MAR DAS TREVAS"

1. O povo escorpião junto ao portal da montanha

Agora, nesta real situação difícil, nesta dor humana primitiva de ser destinado à morte, uma reminiscência ancestral útil chega até Gilgamesh: ele quer encontrar o seu antepassado Utnapishtim, que encontrou a vida eterna. O seu nome tem em si o nome do antigo deus-sol sumério, Utu; e Napishtu é a alma. O termo hebraiconephesh, nefesh, é a mesma palavra. Nefesh em hebraico é também o termo paraanima vegetativa, a alma vegetativa, que é o princípio da vida. Um ser humano, um dos seus

ancestrais encontrou o que estava procurando, e agora ele se sente atraído por aquilo. E, logo após, começa aquilo que podemos chamar a "jornada pelo mar das trevas" do herói que se tornou humano.

Na noite em que chega até a montanha, ele passa por onde os leões o ameaçam. Lá ele suplica, não a Shamash, mas a Sin, o deus da lua, a luz noturna na qual ele se encontra: "Também agora, ó Sin, salva-me!" Por fim, ele cai no sono, e tem um sonho. Vê seres que gozam da vida em pleno luar.

Ele pegou na mão a machadinha. Sacou a espada do conto. Como uma seta, caiu sobre eles. Golpeou-os... e partiu-os em pedaços. (Tab. IX, col. i, linhas 12, 15-18, Heidel, p. 65)

Infelizmente, a designação desses seres no texto aparece danificada e, assim, não podem ser identificados. Schott presume que sejam leões. Como Gilgamesh fora ameaçado anteriormente por leões e assustara-se com eles, isto não é improvável, especialmente porque, posteriormente, ele descreve, não menos do que quatro vezes, ao relatar a sua viagem sofrida, que matou leões nas montanhas. Os fatores íntimos também falam em favor desta suposição: o leão, animal do deserto, é também o animal da mansão dos mortos, no conceito babilônico, onde existe certa identidade entre o deserto e a mansão dos mortos. Lembremos que Nergal é um deus-leão, e que Ereshkigal, a deusa da mansão dos mortos, tem cabeça de leão. O sol da mansão dos mortos vem à mente. Da mesma forma, também, o fato do leão ser consagrado a Ishtar. Ao lutar contra o leão com um machado, com uma espada e com uma lança, isto é, os três símbolos da consciência discernente, ele, por assim dizer, supera a mansão dos mortos para a qual estava na iminência de ser levado pela morte de Enkidu.

Gilgamesh prossegue em sua caminhada e chega até uma montanha. O nome da montanha é Mashu.

Quando chega à montanha de Mashu, Que todos os dias vigia o nascer e o pôr-do-sol.

Cujo pico chega até as "escarpas do céu", E cujas bases chegam até a mansão dos mortos,

O povo escorpião vigia o seu portal.

Aqueles cujo brilho é aterrorizador e cujo olhar é a morte. Cujo esplendor espantoso domina as montanhas, Que, desde o nascer até o pôr-do-sol, vigia o sol.

Grauura 9: O povo escorpião

Aqui, a caminhada do sofrimento de Gilgamesh começa também a se tornar uma cruz para o intérprete. Existem muitos símbolos que não podem ser plenamente explicados, ou até mesmo de forma alguma. Em primeiro lugar, a montanha de Mashu. Os estudiosos mais antigos consideravam que fosse um nome geográfico. Jensen e Zimmern pensavam no Líbano e no anti-Líbano. Gressmann considerava que fosse idêntica à montanha Masis, na versão síria da saga de Alexandre Magno. Lá, Alexandre chega até a montanha de Masis, após ter passado pela janela celeste do sol e ter entrado na região das trevas. Até hoje, Masis é o nome da montanha mais alta do distrito de Ararat, na Armênia Central. Mas Bõhl salienta que Mashu é uma palavra emprestada da linguagem suméria, e significa "gêmeos", e na mitologia babilônica o deus lunar tem gêmeos, cujos nomes são Mashum e Mashtum, um homem e uma mulher. Agora, o "povo escorpião" é um casal, marido e mulher, que exercem a mes- ma função da montanha — vigiar sobre o nascer e o pôr-do-sol — de forma que parecem ser idênticos, ou, pelos menos, têm o caráter da montanha, com suas cabeças atingindo o céu e suas profundezas chegando até a mansão dos mortos, e assim conectando os dois extremos. E eles vigiam o percurso do sol. Além disso, a imagem das duas montanhas entre as quais o sol se põe e se levanta é um motivo que aparece com freqüência em cilindros de selos; e existem muitos hinos encontrados em cilindros de selos, que descrevem o deus-sol abrindo as portas do céu e chegando a uma montanha onde o céu e a terra se unem. Se associarmos o povo escorpião ao sentido psicológico do signo do zodíaco do escorpião, isto faz sentido, pois, do ponto de vista astrológico, este é o signo da morte e do renascimento,stirb und werde, e este é o significado simbólico e o tema central da jornada do Gilgamesh através da montanha, até chegar ao outro lado. Os homens escorpiões aparecem também no Enuma elish, o mito babilônico da criação, entre outros monstros que Tiamat, a deusa-mãe srcinal, criou dela mesma para lutar contra Marduk:

Gravura 10: O deus sol Shamash ascendendo entre as duas montanhas Ela construiu a Víbora, o Dragão e a Esfinge,

O Grande Leão, o Cão Furioso e o Homem-Escorpião, entre outros, e:

Com veneno em lugar de sangue ela encheu o seu corpo, Dragões rugidores ela revestiu de terror.

Coroou-os com auréolas, fazendo-os iguais a deuses, Para que aquele que os contempla

pereça de forma abjeta.

(Tab. II, linhas 27-28 e 22-25, Speiser, ANET, p. 63)

O povo escorpião em nosso texto, "cujo brilho é aterrorizador e cujo olhar é a morte", nos lembra as Górgonas, da Medusa. O nosso texto prossegue:

Quando Gilgamesh os avistou,

Seu semblante se tornou sombrio de terror e ele desmaiou. Mas retomou a coragem e se aproximou deles.

O homem escorpião apela para a sua esposa: "Aquele que veio até nós, o seu corpo é a carne dos deuses!"

A esposa do homem escorpião lhe responde: "Dois terços dele são deus, um terço dele é homem". (Tab. IX, col. ii, linhas 10-16, Heidel, pp. 65s)

Ela parece saber um pouco mais do que o seu marido, mas eles reconhecem o lado divino em Gilgamesh. Este é o fator que o possibilita a enfrentar a visão que tem dos animais, e isto provavelmente é o que revelou a eles a sua qualidade divina. Pois, como no mito grego, o simples fato de ver a Medusa matava o observador. Perseu conseguiu decapitar a Medusa simplesmente olhando para o reflexo no seu escudo. Aqui mais uma vez temos um ser arquetípico numinoso horrível. Naturalmente, poderíamos continuar pensando que isto tem a ver com a terrível mãe devoradora com a qual o herói tem que se defrontar, e nós certamente não estaríamos longe do percurso. Muitos dos mitos gregos vieram dos ou foram influenciados pelos mitos da Ásia Menor. Por outro lado, não precisamos insistir que tudo deve remontar historicamente, embora, onde há influências históricas, as

mesmas devem ser reconhecidas e são úteis para o nosso entendimento. Mas os arquétipos naturalmente podem surgir de forma semelhante em épocas e lugares muito distanciados entre si. Mas não acho que seja muito provável que este motivo, que teve o seu domínio sobre a Ásia Menor, tenha influenciado o mito grego. Embora devamos dizer que onde existem influências precisa-se também de tempo para que o tema seja constelado. Podemos ver isto de forma muito linda no Antigo Testamento. Existem muitas imagens mitológicas da Babilônia e de Canaã nos profetas ou nos salmos e na literatura posterior, porém num outro nível. Quando consteladas, quando as antigas imagens simbolizam um novo conteúdo, então, geralmente, são assumidas. Mas, por enquanto, não podemos entrar neste problema.

Impressiona-me como sendo muito significativo o fato do caráter divino de Gilgamesh ser afirmado neste exato momento, justamente quando ele se encontra em sua situação mais humana, quando se encontra em seu mais baixo astral como ser humano, afetado pela sua experiência da morte. Através da sua união com Enkidu, e através da morte de Enkidu, Gilgamesh se tornou humano. Ele desceu de sua existência divina e entrou na sua existência humana. Mas agora ele tem que se dar conta do seu caráter divino a partir da sua experiência humana como ponto de partida. O mesmo acontece em nossos processos humanos com o Self. Temos que ser muito humanos para nos darmos conta do Self, do contrário somos o Self, e, na pior das hipóteses, adquirimos grande inflação, até mesmo uma inflação psicótica. Existe uma necessidade para esta oposição interior, do ego estar consciente do divino nele, como o Self. Ele principia como o Self. Por exemplo, crianças que ainda não desenvolveram um ego estão muito próximas do Self, e podem dizer fantasticamente coisas profundas e inteligentes. Mas este estado tem que ser perdido e em seguida reconquistado, por assim dizer. Existe uma lenda talmúdica segundo a qual um anjo está presente por ocasião do nascimento de toda criança, e a criança tem uma vela acesa em sua cabeça, um símbolo de que ela sabe tudo. No instante em que nasce, o anjo apaga a vela e a criança esquece tudo — e tem que readquirir tudo de novo. Numa outra versão, o anjo lhe dá uma pancadinha na boca, e a criança entra num esquecimento de todo o conhecimento divino. Platão, da mesma forma, dizia que todo conhecimento é recordação, o que pode também ter sido influenciado por pensamentos mais antigos. Mas, na própria situação humana, o divino como o Self se tornam visíveis: a luz brilhou nas trevas. Por trás da ênfase do caráter divino de Gilgamesh pelo homem escorpião, está escondida a verdade psicológica segundo a qual não é o homem natural que está a caminho do sol, mas o divino nele. Este é o secundus homo. Não é mais o homem instintivo que está nesta caminhada. Por isso, todas as experiências da vida espiritual, de uma ou de outra forma, estão relacionadas a um sacrifício do homem instintivo. Assim, por exemplo, Jung explicou o fato de Jacó ficar coxo após ser tocado na cavidade da coxa pelo homem que lutou com ele durante a noite toda na passagem do vau de Jaboc, ao qual Jacó disse: "Não o soltarei, enquanto você não me abençoar" (Gn 32,27). A seguir o seu nome foi mudado para Israel, que significa "o que luta com Deus". A mudança de nome simboliza mudança na pessoa. Após isso ele mancava, porque aquele espírito o havia tocado

na coxa. A coxa muitas vezes é símbolo das forças generativas do homem. Esta mudança simboliza a experiência que ele teve em Jaboc, para a qual o preço é um sacrifício do homem natural. Isto não quer dizer que o homem natural cessa de existir, mas que cessa a identificação com o homem natural. Assim como acontece com Enkidu, quando termina a sua experiência com a hieródula. Então ele não é uma pessoa espiritual, mas não é idêntico à sua natureza animal. Em seguida, o homem escorpião pergunta a Gilgamesh:

Pronunciando estas palavras ao descendente dos deuses: "Por que empreendeste uma jornada tão longa? Por que percorreste todo este caminho até mim, Atravessando oceanos cuja travessia é difícil? A finalidade da tua vinda eu gostaria de saber".

(Tab. IX, col. ii, linhas 18-22, Heidel, p. 66)

Quando Gilgamesh lhe diz que empreendeu toda aquela jornada para encontrar Utnapishtim, seu ancestral, e para lhe indagar a respeito da morte e da vida, o homem escorpião lhe responde:

"Ainda não houve ninguém, ó Gilgamesh, que tenha sido capaz de fazer isso.

Ninguém ainda percorreu os caminhos das montanhas. A doze horas duplas, o coração...

Densa é a escuridão e falta luz. Até o nascer do sol... Até o pôr-do-sol..."

(Tab. IX, col. iii, linhas 8-13, Heidel, p. 66)

Existem lacunas nesta passagem, mas tem-se a impressão de que essas montanhas, a passagem por elas, têm a ver com o nascer e com o pôr-do-sol. Mas Gilgamesh não desiste. Numa determinação desesperada — e este poderia ser o lema de toda a epopéia — ele insiste:

"Embora na tristeza e na dor, No frio ou no calor,

No suspirar ou no soluçar, prosseguirei! Abre agora o portal das montanhas".

(Tab. IX, col. iv, linhas 33-36, Heidel, p. 66)

Esta é realmente uma aceitação de todo o sofrimento relacionado com o caminho para atingir a meta. E então o homem escorpião lhe permite atravessar as montanhas e até lhe deseja um retorno são e salvo.