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III O ENCONTRO FATÍDICO

3. Uma súplica maternal

Ninsun entrou em seus aposentos. Pôs uma veste adaptada ao seu corpo; Pôs um enfeite adaptado ao seu seio; Pôs um... e foi coberta pela sua tiara. ...chão

... ela subiu ao terraço.

Subiu ao.... Shamash e ofereceu incenso.

Trouxe a oferta e ergueu as mãos diante de Shamash: "Por que deste a meu filho Gilgamesh

um coração tão inquieto e o dotaste com o mesmo? E agora o tocaste, e ele parte

Para uma longa jornada, até o lugar de Humbaba, Para enfrentar uma batalha que não conhece, Para percorrer um caminho que não conhece. Até o dia em que ele vai e retorna, Até alcançar a floresta de cedros, Até matar o feroz Humbaba

E erradicar da terra todo o mal que detestas. O dia em que tu...

...que Aya, a tua esposa, te lembre disso. Confia-o aos guardiães da noite".

(Tab. III, col. ii, linhas 1-21, Heidel, pp. 41s)

Nesta súplica existem algumas coisas muito importantes. OBSERVAÇÃO: Ela está consciente da necessidade...

Sim, ela está consciente do significado superior desta jornada. Mas o que está expresso já na primeira sentença — Por que deste...?

OBSERVAÇÃO: Ninsun é ambivalente.

Sim, podemos afirmar isso. Ela é ambivalente, mas trata-se realmente de um ressentimento? A meu ver, trata-se de uma expressão de sofrimento. Ela sabe que ele tem que partir, mas é um sentimento muito maternal du parte dela dizer: "Por que logoeu tenho que ter um filho que tem que fazer todas essas coisas, por que logo o meu filho?" E uma história intempestiva. "Agora o tocaste" é uma expressão muito bonita. Quando um deus toca um mortal, este tem de percorrer um caminho que não conhece. A imediação de ser tocado pelo destino, pela sina, é muito impressiva. Mostra a realidade de ser atingido por algo interior e maior, que forma a nossa vida. Psicologicamente, poderíamos dizer que ele é tocado pelo ego. E sua mãe sabe disso. Ela não fala como os anciãos. Naturalmente, pelo fato de ser sacerdotisa de Shamash, psicologicamente significaria que ela mesma está dedicada a este princípio de consciência superior. Isto a ajuda a deixar o filho partir, embora com dor, mas sem resistir, sem demonstrar atitude mesquinha, sem querer que "meu filho" seja simplesmente um homem "normal", que leva uma vida prosaica. É uma súplica extraordinária para uma mãe, e, quiçá, para ser mãe assim seja necessário ter certa divindade — ou também uma conexão com o ego, que tem a ver com certa divindade. Ela sabe que seu filho é tocado por algo maior, e não há nada a ser feito. Mas isso é descrito de forma muito humana: Por que um coração tão inquieto? Assim, ele tem um coração inquieto, não é alguém que pode sentar-se calmamente e contentar-se com aquilo que possui — um reino, uma cidade, templos, pois tem um coração inquieto. "Tu o tocaste", e ele deve partir para esta longa jornada — para enfrentar a batalha que não conhece, percorrer um caminho que não conhece — que é expressão clássica para percorrer um caminho interior que não se conhece. Sabe-se apenas que alguém tem que percorrê-lo. A palavra chinesa Tao significa "o caminho", bem como "intento" ou "meta". É um equilíbrio dos opostos. Nós não conhecemos o intento a não ser percorrendo o caminho, passo a passo. Não conhecemos a meta final com antecedência. Nós só sabemos que queremos chegar mais próximos ao ego, tornar-nos mais nós mesmos. Mas não podemos saber o que é isto a não ser que percorramos cada etapa, sem saber para onde nos leva. Naturalmente, sem esta atitude, que precisa de coragem e também de humildade, não se sabe. E Ninsun não sabe. E Gilgamesh também não sabe.

O que os dois sabem é apenas que ele tem que partir — não existe outra alternativa. Naturalmente, às vezes pensamos que existem outras alternativas. Depende para onde elas levam. E ela também suplica que Shamash proteja o filho, e diz, numa breve exposição muito bonita, que a sua

esposa deve lembrá-lo de proteger Gilgamesh. Para o que é que ela apela? Para o seu lado feminino, para os seus sentimentos. Existem outros exemplos semelhantes. Por exemplo, no Antigo Testamento, no episódio de Noé — algo que é facilmente esquecido — Javé põe um sinal no céu, um arco-íris, para que ele se lembredele mesmo, de que ele não deve destruir novamente a humanidade. Isto muitas vezes é deixado em segundo plano. Ele não o coloca lá no alto para lembrar a Noé — de qualquer forma, ele o esquecerá — mas Ele é que não deve esquecê-lo, e não fazer de novo algo semelhante. Assim, Ninsun se dirige a Shamash e diz: "Que a tua esposa te lembre de proteger meu filho e o confies aos guardiães da noite", isto é, a Sin, o seu pai, o deus da lua, que é realmente o senhor da noite. O que está expresso aqui simbolicamente? Como é que ela encara a jornada do seu filho? Uma jornada noturna. Uma jornada marítima dentro da noite, para usar o termo de Frobenius. E a forma interior de andar no escuro, e veremos como isto é verdadeiro, especialmente na segunda parte da epopéia. A súplica de Ninsun, a meu ver, é modelo clássico para a atitude positiva da mãe pessoal em relação ao destino do filho. É quase sobre-humana, o que significa, psicologicamente, que esta atitude só pode crescer numa pessoa que está relacionada com o ego. É natural que ela sofra através deste destino — "Por que deste ao meu filho um coração inquieto?" Mas ela aceita esta sina do seu filho.

Como nós denominamos esta atitude, psicologicamente? Ninsun não é possessiva, mas, pelo contrário, é prestativa, quer ajudar o filho. A súplica de Ninsun, portanto, é também significativa, porque mostra, no próprio mito, a discriminação entre a mãe pessoal e a mãe arquetípica. Na realidade, ela suplica a Shamash para que ele ajude o seu filho a superar a mãe! O que às vezes se torna tão difícil para as mães, sobretudo no caso do chamado complexo materno do filho, é que o que ele realmente tem que sofrer é o arquétipo que está por trás dela; por isso, em relação à atitude do filho, seja ela positiva ou negativa, o que ela mais precisa é discriminar entre o arquétipo da mãe e ela própria. Se ela encarna o arquétipo, ela adquirirá toda a devoção servil e/ou todo o ódio, nos casos mais extremos. Ela deve saber até que ponto ela participa do arquétipo e até que ponto não participa do mesmo — até que ponto ela é um ser humano. Aqui nós temos a mãe pessoal de Gilgamesh; e quem é a mãe arquetípica? Ishtar. Ela é a grande mãe arquetípica. E aqui as duas são diferenciadas, o que ficará ainda mais claro à medida que avançarmos na epopéia. Para resumir: esta súplica, este terceiro rito de entrada, como dis- semos, é para ajudar Gilgamesh a superar a mãe, que é o seu significado psicológico real, e uma atitude clássica para uma mãe. Porque se, neste sentido, um filho não supera a mãe, ele permanecerána mãe. Talvez tudo isso de acordo com os desejos da mãe, mas então ele não atingirá a sua masculinidade.