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A reação dos deuses após o dilúvio

VIII O SEGREDO DOS DEUSES

3. A reação dos deuses após o dilúvio

Então as aves foram soltas — neste caso, trata-se de uma pomba, uma andorinha e um corvo. Na Bíblia, a pomba é solta duas vezes, e depois disso todos podem sair da arca. Assim como Noé, Utnapishtim também oferece um sacrifício:

Os deuses aspiraram o perfume, Os deuses aspiraram o perfume suave. Os deuses se concentraram como um enxame de borboletas em torno do sacrificador. (linhas 159-161, Heidel, p. 87)

Aqui, mais uma vez, temos este tipo de descrição desrespeitosa dos deuses vorazes que avançam sobre o sacrifício. Como é do nosso conhecimento, este detalhe passou para a Bíblia; uma relíquia arcaica especialmente ilustrativa. Em Gênesis 8,21, lemos:

Javé aspirou o perfume e disse consigo:

"Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem..."

E, como sabemos, em seguida ele faz uma aliança com Noé, e põe um arco-íris no céu como sinal da lembrança,em primeiro lugar para ele mesmo, de que ele nunca mais irá produzir um dilúvio. Em muitos comentários, isto é estranhamente ignorado. Não se trata de um sinal para Noé, mas paraele mesmo! O que mostra que esta personalidade ambivalente de Deus precisa de um lembrete para não destruir novamente a humanidade. Exatamente da mesma forma, Ishtar fala:

Logo que a grande deusa chegou.

Ergueu as grandes pedras preciosas que Anu tinha feito, conforme o seu desejo:

"O vós, deuses aqui presentes, tão certamente como não vou esquecer o lápis-lazúli em meu pescoço, Lembrar-me- ei sempre desses dias e jamais os esquecerei!"

(linhas 162-165, Heidel, p. 87)

Assim, se formos coerentes, Ishtar pode ser reconhecida como um aspecto do Ente Supremo, Javé, que foi fundido a partir de uma pluralidade de deuses. Acho isto muito excitante, porque, pela comparação das duas histórias, podemos constatar os vários aspectos do Deus uno, Javé, representado por deuses separados na epopéia babilônica. Do ponto de vista da história religiosa, a meu ver, isto cor- robora a idéia de que a personalidade divina monoteísta de Javé combina em si mesma todos aqueles aspectos divinos que, no politeísmo, não estão conectados a não ser pelo relacionamento familiar, parcialmente. Mas somente por esta união na única personalidade é que a ambivalência dos deuses se torna um problema. Esta é aconditio sine qua non para o desenvolvimento da consciência. Isto é, deve

haver um núcleo, um estágio, que conecta todos esses aspectos diferentes. Se um ser humano é totalmente inconsciente, todas essas figuras interiores que podem aparecer na psique podem assumir o encargo, uma após a outra, e não existe um ego em casa, por assim dizer, para saber quem assume a responsabilidade. Uma hora alguém está zangado, outra hora está bem disposto, e não existe continuidade. Não existe ninguém para refletir: eu estava bem disposto, estou tomado pelo ódio ou pelo amor. Não existe ninguém para conectar tudo isso, ou para sentir que isto acontececomigo. Assim, é a personalidade singular que julgo ser a necessidade íntima mais profunda na qual posso pensar, para o desenvolvimento religioso levar para o monoteísmo. Isto é, que a personalidade do Deus uno, sendo a imagem do Self da personalidade humana, é necessária para o desenvolvimento. Do contrário, nós simplesmente somos; um dia chove, o outro dia o sol brilha; um nada tem a ver com o outro. Então o indivíduo é o refém dos deuses — a não ser que ele desenvolva um centro que esteja relacionado com todas essas forças interiores. É isto o que representa a religião.

Como sabemos, segundo Jung, etimológica e psicologicamente, o significado fundamental da religião é levar cuidadosamente em consideração as forças interiores. O ego pode saber que é confrontado com forças interiores mais poderosas do que ele próprio. Ele tem que desenvolver um relacionamento com todos esses aspectos divinos profundos, bons ou maus. Do contrário, ele fica simplesmente à deriva. É através deste relacionamento que essas forças podem se unir e também se modificar. Do ponto de vista do desenvolvimento da consciência, podemos ver todo este desenvolvimento religioso da personalidade divina à luz do crescimento da consciência. E, por assim dizer, Ishtar é o aspecto em Javé que, por um lado, representa a imprevisibilidade divina — que podemos ver também em outras passagens da Bíblia — mas, por outro lado, que começa a mudar, isto é, a perceber e a limitar a sua imprevisibilidade. Mas o que na Bíblia se tornou nova criação através do que se chamou a primeira aliança com Noé, e o começo de todo um plano de salvação, aqui, como veremos, não é de tão grande conseqüência nesse tempo. No que vem a seguir, nós testemunhamos a representação de verdadeira disputa doméstica entre os deuses. Isto é, Ishtar quer excluir Enlil da oferta de sacrifícios, da qual os deuses durante muito tempo estavam sentindo falta. Ela diz:

"Que os deuses se aproximem das ofertas; Mas Enlil não deve se aproximar das ofertas, Porque, sem reflexão, ele provocou o dilúvio E entregou o meu povo à destruição!" (linhas 166-168, Heidel, p. 87)

O que aconteceu aqui? Ao que parece, Ishtar não pode suportar por muito tempo o autoconhecimento que acaba de adquirir. Isto pode acontecer também com os seres humanos. O discernimento pode ser perdido novamente, e isto às vezes tem um efeito muito desalentador. Mas faz toda a diferença se a pessoa o teve alguma vez. Uma vez o sol irrompeu por entre as nuvens. Mesmo se vier a chover em seguida por longo tempo, a pessoa sabe que existe o sol, e que ele pode surgir novamente. Penso que isto é um consolo durante períodos em que a pessoa se encontra num baixo- astral, como acontece durante uma análise. Mas se a pessoa nunca viu o sol, trata-se de uma situação

totalmente diferente. Aqui, Ishtar sente-se simplesmente muito feliz em poder atribuir a principal res- ponsabilidade a Enlil, que, sem dúvida, oferece um grande escudo para se proteger. Quando fica sabendo que Utnapishtim escapou do dilúvio, ele se torna terrivelmente furioso com os Igigi, os deuses do céu: "Algum dos mortais conseguiu escapar? Nenhum homem deveria ficar vivo pela destruição!" Ea, sobre quem cai a suspeita de ter revelado o segredo, defende-se:

"Além disso, não fui eu quem revelou o segredo dos grandes deuses;

Mas a Atrahasis [outro nome para Utnapishtim] eu mostrei o sonho, e assim ele ficou sabendo o segredo dos deuses.

E agora, fazei um conselho em relação a ele". (linhas 186-188, Heidel, p. 88)

Ele diz: "Por favor, eu só enviei um sonho. Este é o meu ofício, enviar sonhos às pessoas, eu não entreguei o segredo. Mas agora aconteceu, por isso, decidi vós o que quereis fazer a respeito disso". E assim Enlil tem que enfrentar este fato que aconteceu. Utnapishtim prossegue, dizendo:

Então Enlil subiu no navio.

Pegou a minha mão e fez com que eu embarcasse. Fez com que minha mulher embarcasse e se ajoelhasse ao meu lado.

Pondo-se entre nós dois, ele tocou a nossa fronte e nos abençoou:

"Até agora Utnapishtim foi apenas um homem; Mas agora Utnapishtim e sua mulher serão como nós,

os deuses.

Lá, ao longe, na foz dos rios, Utnapishtim irá residir!" Assim eles me levaram e me puseram a residir

a distância, na foz dos rios. (linhas 189-196, Heidel, p. 88)

Não darei ao leitor todas as teorias a respeito de onde está a "foz dos rios", porque existe vasta literatura a respeito disso, mas não acho ser isso muito importante do ponto de vista mitológico. Trata- se simplesmente do lugarlongínquo.