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A VIAGEM ANTROPOFÁGICA

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 67-74)

Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado

4. A VIAGEM ANTROPOFÁGICA

Se o mote é viagem e antropofagia, há que se falar em Oswald de Andrade, para quem a viagem foi uma constante não apenas enquanto fluxo vivencial, como também na própria obra. Isso fica evidente não apenas em poemas da série “Lóide Brasileiro” (do volume Pau Brasil, onde encontramos remixada pela perspectiva antropofágica não apenas a viagem do descobrimento, como também os relatos que dela conhecemos), mas também em Memórias sentimentais de João Miramar (cujo nome já evoca, por si, as distâncias marítimas) e Serafim Ponte Grande, prosas marcadas por intenso afã deambulatório.

Os dados biográficos confirmam que Oswald foi um viajante contumaz, sobretudo entre as décadas de 1910 e 1920. Sua primeira viagem à Europa foi em 1912, ocasião em que, no dizer de Paulo Prado, o escritor paulistano descobriu o Brasil na Place de Clichy. A segunda ocorreu em 1922, e dela há uma foto do embarque hoje tornada verdadeira síntese do modernismo brasileiro, uma espécie de Who´s who do movimento. A terceira ocorreu em 1923, quando se deu a estadia mais longa de Oswald em Portugal, diga-se – e Oswald visitou Lisboa inúmeras vezes.

Se entre a primeira viagem (1912) e a segunda (1922) observamos um hiato considerável de tempo, de dezembro de 1924 a janeiro de 1926 (portanto, em doze meses), Oswald fez quatro viagens a Europa, o que é um número considerável, a levar-se em conta as condições de transporte marítimo transatlântico de seu momento.

Foi nessas viagens realizadas entre 1912 e 1926 que Oswald tomou contato com movimentos estéticos de vanguarda em circulação, como o Futurismo, Dadá e o Surrealismo, imediatamente antropofagizados em sua obra – e não podemos nos esquecer que o programa estético do modernismo propugnava não menos que uma leitura de nossas tradições regionais a partir de uma perspectiva de vanguarda.

Como ocorre com Mário de Andrade, a existência prévia de farto manancial crítico e biográfico a tratar do tema em Oswald permite que o deixemos, pelo menos neste artigo, à sombra de outro importante participante do Movimento Antropofágico: o arquiteto, artista plástico e escritor Flávio de Carvalho, que, junto com Oswald e Raul Bopp, atuou decisivamente na segunda dentição da Revista de Antropofagia. Flávio levou algumas das teses defendidas pelo movimento antropofágico às últimas consequências, quer com seu “Teatro da Experiência” e as pioneiras intervenções urbanas, quer com textos francamente iconoclastas, como A origem animal de deus.

O Movimento Antropofágico foi considerado, não sem ironia, por José Paulo Paes, como ele próprio uma viagem, uma viagem que propõe operar deslocamentos no tempo e no espaço de configuração da história social, vez que uma viagem em busca da “realidade brasileira onde ela nunca estivera – na Amazônia longínqua, na pré-história mítica, nas vozes fantasmais que nos acompanhavam de longe” (Paes, 1961, p. 86).

Além das estadias no Alto Xingu, entre as populações nativas da América do Sul (de que resulta um notório registro fotográfico do escritor e arquiteto despido entre os indígenas), Flávio deixou um livro de viagem, Os ossos do mundo, cujo prefácio da primeira edição foi assinado por Gilberto Freyre. É uma obra desconcertante sob vários pontos de vista, desde a forma caleidoscópica com que os capítulos são arranjados em dispersão centrífuga (numa constante deambulação tanto geográfica como textual – seguindo o livre curso das sensações como lhe sucedem ao longo dessa deambulação por uma superfície textual criada pela sobreposição de camadas da história, portanto com uma ênfase na dinâmica contínua da aproximação e da afirmação da diferença enquanto princípio estruturante da própria obra), até o fato de registrar a Europa às vésperas da ascensão do nazismo, concluindo o texto com uma reflexão sobre as figuras do herói e do terrorista – o que mostra como a visada crítica de Flávio sobre o momento histórico é consciente dos mecanismos ideológicos postos em cena com a divisão geopolítica do globo após a assinatura do tratado de paz à reboque da I Guerra e o surgimento da sombra do nacional-socialismo hitleriano.

Dividida em onze capítulos, em Os ossos do mundo a visada lírica “se concilia com sua objetividade de arquiteto, de engenheiro, de técnico moderno”. Misturam-se, por toda a obra, a visada mitopoética e o olhar científico, “uma grande sensibilidade ao lado do gosto de ser objetivo. Um grande lirismo, ao lado do senso científico. A capacidade de abstração e de análise ao lado de uma poderosa sensualidade de expressão”.

Construído a partir de “notas de viajante”, o livro, contudo, oferece resistência a ser enquadrado exclusivamente como “livro de viagem”, o que, aliás, o próprio autor já alertava desde as primeiras páginas:

este livro não é um simples livro de viagens e sim um livro de meditações livres sobre viagens, um resumo de sensações colecionadas sem preocupação de ordem ou de estética e não visa nem destruir nem construir, seguindo apenas o tumulto dos acontecimentos pessoais do autor. (Carvalho, 2005, p. 13)

Como se vê, Os ossos do mundo é um texto norteado por uma particular deriva entre gêneros, transitando entre a ficção, a autobiografia e o relato de viagem.

Além disso, a “literatura de viagem” que é oferecida em Os ossos do mundo não tem nada da viscosidade ideológica característica do produto beletrista das décadas anteriores (homem de letras mundano visita Paris), que passaria, sob a opinião das seguintes, por colaboracionista, quando não entreguista. Note-se que Paris nem é mencionada em Os ossos do mundo. Esta é uma das razões por que o “internacionalismo” do livro resulta original em nossa literatura: ao tentar compreender os mecanismos de dominação cultural agenciados pela visão eurocêntrica (mecanismos esses baseados no poder de saturação ectoplásmica da narrativa da história – narrativa-fetiche que é, como sabemos, sempre a narrativa do vencedor...), Flávio inverte a perspectiva e apresenta a situação de um jornalista-antropólogo brasileiro debruçado sobre a Europa como pitoresco, e não o inverso (tão banal).

Flávio dispensa, ao mesmo tempo, o cosmopolitismo burguês da belle époque e os possíveis rebentos nacionalistas que poderiam vir à tona com o ímpeto modernista de acessar as tradições regionais. Nesse processo, finca uma posição particular no âmbito da própria Antropofagia, já que na visada flaviana teríamos o gesto antropofágico como ato de descolonização – portanto, é libertário –, sem instrumentalizar os resultados para fins de reprodução de um discurso nacionalista, antes explorando a ideia da viagem como tensão e propondo um debate organizado a partir de pares dialéticos situados em relação não necessariamente oposicionais, como nacional x internacional, local x universal, nomadismo x sedentarismo, tradição x invenção, cristalização x liquidificação.

Durante a estadia registrada em Os ossos do mundo, Flávio percorre museus e coleções de arte europeus e sinaliza como – na qualidade de “ossos do mundo” – essas instituições forneceram lastro ao poder de dominação eurocêntrico. Concebendo as obras

nas sucessivas fases que plasmaram o resíduo” que garante o poder de dominação cultural emanado de museus e coleções, procurando entender e neutralizar o que chamava de força psicológica emanada do resíduo.

A penetração antropológica e psicológica no processo de criação do resíduo anímico proposta por Flávio certamente admitiria o estabelecimento de comparações com o conceito de aura a que se referia Walter Benjamin e, malgrado o radicalismo aristocrático de Flávio, com a própria teoria marxista em seus esforços por compreender como se dá a dissociação entre valor de uso e valor de troca (ainda que transplantada para a economia simbólica do inconsciente) e de sua valorização especulativa pela colonização do imaginário. São formas e esforços de reduzir o campo magnético de forças escravizantes emanadas do poder em seu movimento centrípeto de multiplicação e acumulação de capital simbólico. Por esta razão, ao revelar os processos que compõem a história de um resíduo, desvelam-se também os mecanismos operantes no fetiche (que confere o poder de subjugar atribuído a seu possuidor).

Nesse ponto, o pensamento de Flávio admitiria ser alocado, para fins de cotejo, em um território (pequeno mas bem situado) da teoria crítica que entende que a sociedade de consumo se aproveita da abertura mágico-totêmica – que persiste, mesmo amortecida pelo mecanicismo industrial e pelas políticas de controle social e da subjetividade, quer pelo papel central que conceitos como fetiche, aura, fantasia etc desempenham nesta crítica (e tal nomenclatura remete, direta e paradoxalmente, a vivências que se situam num momento anterior ao da apreensão racional), quer pela detecção do poder de infiltração que o capitalismo possui em relação às camadas não conscientes da psique, como no caso da mídia e da publicidade na sociedade de consumo, ambas marcadas pela instrumentalização simbólica em prol do lucro, com o consumo substituindo o que antes pertencia à esfera do ritual.

É assim que se sucedem digressões e refrações de pensamento sobre coleções insólitas (como a do sujeito que colecionava cascas de feridas ou do aristocrata que acumulava iconografia de São Jorge) e sobre o modo com que cuidam os povos de seus ânus. E aqui vale lembrar que o próprio autor, durante a viagem, recolheu amostras do papel higiênico utilizado em diversos países europeus, num esforço por derrotar a ilusão de centralidade e superioridade da Europa, atacada por essa visão crítica que focaliza exatamente a extremidade e a inferioridade, recusando, finalmente, o olhar etnocêntrico

pautado pelo exótico – vez que seu objetivo não é recalcar o que está fora de ótica (ex- ótico), e sim trazê-lo à boca do palco.

Como dito antes, poderíamos, ainda sob esse diapasão, suscitar um cotejo entre a noção benjaminiana de aura e o que Flávio de Carvalho chama de resíduo. Apesar da possibilidade de se estabelecer tal aproximação, a diferença entre resíduo e aura persistiria, contudo. Como arquiteto, Flávio de Carvalho sabia das ressonâncias contidas no termo resíduo, que remetem diretamente à dinâmica social das antigas cidades europeias. Segundo Didier Gilles, nestas cidades era possível verificar “um encadeamento quase ininterrupto que liga produtos e resíduos, produção e consumo” (Gilles, 1988, p. 45). As fossas e estrumeiras a céu aberto e o reaproveitamento de toda sorte de dejetos se encontram tão imersos no termo resíduo quanto este se encontra imerso nas digressões sobre as coleções de papel higiênico (com o qual se está diretamente no âmbito dos resíduos – os fecais) e de cascas de ferida.

Saindo a campo (na Europa) como antropólogo, os métodos utilizados por Flávio de Carvalho são dotados de rigor (sem, contudo, confundir rigor com rigidez) e plenamente válidos se considerados pela escala de valores dos antropólogos que, à época, faziam o caminho inverso e vinham ao Brasil anotar rituais de candomblé e festas populares. Desse modo, não deixa de ser possível afirmar que é como escritor- antropólogo que Flávio de Carvalho se debruça sobre a Europa e seus objetos culturais: papel higiênico, quadros, livros raros ou castelos, o observador tropical desvela os arcanos do exótico nos objetos deste Outro que quer se manter longínquo e controlar à distância.

Mais uma vez é preciso reafirmar como Os ossos do mundo, enquanto livro de viagem, se diferencia em muito do habitual panegírico de fascínio colonizado produzido em série ao longo da Belle Époque. Os ossos do mundo são a Europa descarnada, à beira da barbárie nazifascista, que teve a carne extirpada para ser compreendida em seu traçado mais essencial pelo observador tropical. Assim, a tarefa do antropólogo-antropófago é desvelar a aura que se sobrepõe – como fantasmagoria – sobre as coleções, os museus, os castelos e os monumentos arquitetônicos do Velho Continente; nesse processo, liberta- se, em parte, também o Homem Tropical, que despe, enfim, ao Outro, depois de séculos a suportar o processo inverso.

reafirma a fórmula ética da relação com o outro que preside este ritual, para fazê-la migrar para o terreno da cultura” (Rolnik, 1998, p. 132), é neste sentido, como gesto de, após despir-se, despir o Outro (aqui materializado pela instância última de repressão e controle econômico e cultural), que retomamos o viés anarco-demolidor de Flávio, no qual se revelam, mais uma vez, a assimilação e o desenvolvimento pessoais que fará do ideário antropofágico e a compatibilidade ideológica com a aventura surrealista, considerados enquanto movimentos provocadores de rupturas com o cárcere do pensamento que enquadra o mirante eurocêntrico como hegemônico em todos os campos do saber.

Esse consumo hegemônico de produtos culturais europeus implicava na interiorização de “cartografias de sentido que, além de terem sido produzidas no contexto de uma experiência de não-mistura, são desencarnadas da experiência sensível, porque forjadas sob a égide do racionalismo” (Rolnik, 1998, p. 135). Ainda segundo Sueli Rolnik, é no quadro mais amplo de contestação da supremacia eurocêntrica no domínio das ideias – abalo que remete, no mínimo, aos românticos, e que se intensifica com as duas guerras e com o trabalho contínuo e demolidor da intelectualidade e da arte dissidentes, que acabaram por buscar no primitivo aquilo que chama de “uma saída de sentido” (Rolnik, 1998, p. 135).

É como se, ao olhar para a Europa, o viajante antropófago de Flávio dos ossos do mundo sugasse até o tutano, pronto para derrubar os castelos no ar, museus e outros edifícios retóricos que lastreiam a perspectiva eurocêntrica. Ao mesmo tempo, seu pensamento nega a comum associação do não europeu ao exótico, invertendo as perspectivas a partir dos mesmos pressupostos metodológicos que compõem a visada científica europeia – só que aplicados às avessas – em disciplinas como a antropologia e a etnografia. A imagem com que representa o não europeu não é a de um indígena idealizado e estereotipado tanto por sequelas tardo romântico-nacionalistas como pela (im)pressão serializante do colonialista (mesmo quando esse se propõe ao “olhar científico” mediante disciplinas que se pretendem mais ou menos descritivas, cujos princípios de base pertencem e sempre remetem, no entanto, ao universo das abstrações conceituais característico da visada eurocêntrica – daí a necessidade de uma antropologia radical, uma verdadeira anarco-antropologia); aqui, o não europeu deixa de ser caricatura e é pensado e apresentado sob o avatar do homem tropical sempre pronto à iconoclastia (pois na iconologia iconoclástica de Flávio de Carvalho, depois de se desmontar o imagotipo, há, ainda, o momento dinâmico subsequente, no qual ocorre o

estilhaçamento da autoimagem) e à devoração do Outro, a reverter e inverter processos e procedimentos (no sentido de permanente desvio da ordem rumo à vida às avessas, ao mundo invertido, revelado, pela segunda vez, por meio do humor negro e do jogo, cujo objetivo é a derrota – ainda que temporária – do princípio de realidade em prol do princípio de prazer), e que – repita-se – dos ossos do mundo chupa até o tutano, na devoração contínua da vida implicada no ato de criação artística.

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Paisagem cultural como elemento de leitura na

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