• Nenhum resultado encontrado

E XPERIÊNCIAS DA VIAGEM AO A LENTEJO : DA ESPIRITUALIDADE À DECOMPOSIÇÃO DA PAISAGEM

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 196-200)

Glória Alhinho

4. E XPERIÊNCIAS DA VIAGEM AO A LENTEJO : DA ESPIRITUALIDADE À DECOMPOSIÇÃO DA PAISAGEM

Desde a sua representação como vazia e silenciosa, até à ideia da sua cristalização num tempo mítico de terra de pão, a paisagem alentejana foi sendo investida pelo desejo de se encontrar um sentido para o que, aparentemente, parecia um deserto monótono. A sua aridez e vastidão aproximam-na dos sentidos que surgem associados ao deserto num contexto bíblico, onde a rudeza põe o corpo à prova mas também o conduz à revelação espiritual. Os laços entre a paisagem caracterizada por uma rudeza exacerbada e o sentimento religioso, não cessarão de fazer evoluir a leitura da paisagem natural (Pépy, 2015, p.169-170). A experiência da urbanidade fará com que os viajantes que se aventuram para além dela - qualquer que seja a sua confissão - encontrem neste tipo de paisagem uma experiência pessoal do sagrado (Pépy, 2015, p.161). Neste sentido, no primeiro guia de Portugal, publicado em 192766, reconhece-se que a uniformidade e a

monotonia percepcionadas são, à partida, fruto de um olhar superficial. O leitor é convidado a aprofundar o seu olhar através de uma longa e intima relação com este espaço para poder apreender todo o seu esplendor pois nele existe uma energia rude: os largos horizontes compostos de linhas geométricas severas, de cores sem vivacidade mas de uma grandeza impressionante, um céu caracterizado por uma estranha limpidez, alto, profundo e coberto de estrelas cujo brilho especial é atribuído à extrema secura do clima (Proença, 2011 [1927], p.17). Assim, apesar do incómodo provocado pela monotonia, trata-se de um paisagem que apela à interiorização e à espiritualidade. O convite a reconhecer uma dimensão espiritual na paisagem alentejana será claramente feito por Miguel Torga, no capítulo que dedica ao Alentejo em Portugal: «Mas a terra alentejana pode contemplar- se ainda no estado original, virgem, exposta e aberta. E é nela que encho a alma e afundo os pés, num encontro da raiz com o húmus da origem. [...]. O corpo, ali, pode ainda tocar o barro de que Deus o criou.» (Torga, 2010[1950], p. 87).

Este apelo à interiorização da paisagem alentejana voltará a ser feito por José Saramago no capítulo «A grande e ardente terra do Alentejo» em Viagem a Portugal. Contudo, trata-se de interiorizar o mistério que emana da própria paisagem mais do que

criação de Deus, como para Miguel Torga. Esse mistério provoca uma profunda emoção pois o narrador sente vontade de chorar perante a impossibilidade de encontrar palavras para a descrever, concluindo, então, que o mundo poderia iniciar-se ali, no tempo criado por aquela paisagem:

Cobre o campo uma cinza dourada, depois empalidece o ouro, a noite vem devagarinho do outro lado, acendendo estrelas. Chegará mais tarde a Lua, e os mochos chamarão uns pelos outros. O viajante, diante do que vê, sente vontade de chorar. Talvez tenha pena de si mesmo, desgosto de não ser capaz de dizer em palavras o que esta paisagem é. E diz apenas assim: esta é a noite em que o mundo pode começar. (Saramago, 1998, p.352)

O mistério desta paisagem encontra-se provavelmente no paradoxo das cinzas douradas que cobrem a planície como se estas cinzas, imagem da morte, se associassem à vida, simbolizada pela luz dourada. Tal como Saramago a enuncia, esta paisagem indiscritível revela as questões sensíveis do ponto de vista do sujeito na criação da paisagem. No princípio da viagem, procura-se a fusão entre aquele que vê e aquilo que é visto, a história desse viajante no interior da paisagem e os consequentes conflitos entre subjetividade e objetividade. Com efeito, face ao entardecer da planície alentejana, encontra o desafio de elucidar um jogo entre o visível e o invisível que o leva a interrogar- se sobre a sua própria capacidade de produzir palavras que contenham toda essa fusão de sentidos. A escrita de paisagem alentejana, revelará outras resistências a José Saramago, nomeadamente em Levantado do Chão porque o encontro com o Alentejo significará também uma viagem através da sua existência.

Levantado do Chão foi apontado pela crítica e pelo próprio escritor como sendo o último romance neo-realista fora do tempo do neo-realismo. Contudo, Vitor Viçoso diz tratar-se, sobretudo, de uma releitura e de uma res-escrita do livro neo-realista, a memória ficcional do povo alentejano à procura da sua emancipação: «enquanto algo de exemplar, uma alegorese projectada para a história do futuro.» (Viçoso, 1999, p.239-240). Com efeito, este romance ainda deixa em aberto um futuro67 que, a nosso ver, se encontra na

forma como Saramago descreve a paisagem alentejana em Viagem a Portugal. Mas os textos literários que o procedem, vem revelar que esse mundo rural alentejano tem um

fim anunciado. Levantado do Chão pode, assim, não ser apenas o último romance neo- realista mas o último romance sobre um certo imaginário sobre o Alentejo. Com efeito, os romances que representam, igualmente, viagens ao Alentejo, Auto dos Danados de António Lobo Antunes, e Adeus Princesa, de Clara Pinto Correia, anunciam a chegada a uma mundo em decomposição e onde a paisagem já não oferece qualquer tipo de redenção. Ambos surgem cinco anos depois de Levantado do Chão e oferecem uma visão da paisagem alentejana e do seu destino que a afastam inexoravelmente da ficção saramaguiana sobre o Alentejo.

No romance de Clara Pinto Correia, uma jovem, Mitó, comete um crime em circunstâncias misteriosas sobre o qual um jornalista, vindo de Lisboa, procura fazer uma reportagem. A sua viagem ao Alentejo vai conduzi-lo através de um labirinto de confissões, de argumentos contraditórios mas de entre os quais sobressai a ideia de que Mitó faz parte de uma geração que se tronou a metáfora do abandono da região. Bárbara Emília conta a história da vida de Mitó ao jornalista Joaquim Peixoto e este conclui: «Em Lisboa ninguém quer saber de nada do que existe no Alentejo.» (Correia, 1989 [1985], p. 255). A reportagem do jornalista acaba por relatar os esforços infrutuosos do pai de Mitó para levar os deputados de Lisboa a se deslocarem ao Alentejo. Uma viagem que se torna uma narrativa sobre o abandono do Alentejo: «a viagem dos deputados ao abandono do Alentejo» (Correia, 1989 [1985], p.254). A associação entre o crime de Mitó e o crime coletivo ao qual todos acabam por fazer referência - o abandono do Alentejo - leva o jornalista Joaquim Peixoto a declarar que, finalmente, gostaria de contar a história do crime num cenário sobre o desencanto dos jovens do Alentejo. O tédio, ao qual todos os jovens tentam escapar sem sucesso, marca o ritmo dos dias e o discurso das diferentes personagens que o jornalista vai conhecendo.

Desta vez, alguma coisa extrema se produzia na escrita sobre o Alentejo: a palavra e o sofrimento dos seus habitantes não encontram qualquer eco porque representam um mundo esquecido e ao abandono. Uma terra que deixava, por essas razões, de apelar à espiritualidade e cujo corpo se encontrava já em decomposição, como no Auto dos Danados de Lobo Antunes. Neste romance, uma família de grandes proprietários alentejanos, que vive em Lisboa, regressa ao Alentejo para assistir à morte do patriarca. Na viagem, o carro avança para um mundo de trevas, à medida que se aproxima do Alentejo. A primeira terra, Vendas Novas, assemelha-se a uma paisagem lunar; Montemor-o-Novo a um cadáver e, logo que se chega a Évora, entra-se numa terra

defunta onde o cheiro a gado morto, as vísceras das árvores apodrecidas ou as dos homens tornam a atmosfera opressiva e irrespirável. O ponto de vista dos vários narradores põe em evidência um mundo de cheiros, de morte, de animais em decomposição, do qual o velho homem fazia parte, que reenviam para a violência de um espaço natural e dos rituais àquele associados, que já não encontram qualquer eco na modernidade68. Existe uma

distância intransponível entre dois mundos: as novas gerações oriundas da elite alentejana, se bem que não se revejam na violência do primeiro, mimam uma outra longe das fronteiras sociais alentejanas mas às quais ainda permanecem prisioneiros. Como esclarece o romance de Urbano Tavares Rodrigues dez anos depois: «ele até há os novos ‘viscondes da emigração’. E os filhos e os netos, que andam nas Universidades, eles e elas, e são bonitos e espertos, fizeram o secundário lá fora, mas trazem bocados da terra de origem agarrados à sola dos pés» (Rodrigues, 1995, p.84).

Em Auto dos Danados, a promiscuidade familiar descontrolada que conduz ao caos moral substitue o mundo organizado da planície alentejana, cujo símbolo era a vida do monte, tal como fora relatada e enaltecida por José da Silva Picão (1903) ou, num contexto literário, em Planície Heróica de Manuel Ribeiro (1927). A paisagem alentejana perdia as suas referências identitárias de ordem e de civilização que o lavrador e a seu domínio, o monte, trouxeram ao imaginário alentejano. A modernidade apelava ao abandono da planície e, nos anos noventa do século vinte, o narrador da Hora da Incerteza via as árvores como seres que esperavam, impotentes, a partida dos homens: «esta terra sofrida, onde a esperança se vendeu em almoeda, onde os agrários recuperaram as cooperativas da experiência nova e ficavam, implorantes, quietas, as azinheiras em forma de taça, assistindo ao debandar dos jovens, dos homens válidos.» (Rodrigues, 1995, p.25).

5. C

ONCLUSÃO

As ambiguidades que envolvem o imaginário sobre o Alentejo transparecem na maneira como se percecionou a sua paisagem. As emoções e os sentidos que esta provocou exerceram uma atração mas também a condenaram a uma forma de abandono.

68 A violência da irrupção da modernidade no espaço alentejano já é visível no sofrimento que se expande sobre a paisagem humana em O Hóspede de Job de José Cardoso Pires, publicado em 1963. A este propósito, ver Marcelo

Neste sentido, é importante continuar a questionar este imaginário pois ele foi responsável pelas decisões políticas, económicas, administrativas ou até jurídicas aplicadas à região69.

A nostalgia que domina a produção escrita (virgindade, paraíso perdido, terra-mãe) instaurou um desequilíbrio sobre a região e os seus problemas. Para tal, basta recorrer à imagem do Alentejo como celeiro de Portugal. Esta encontra-se disseminada nos guias da época, nos discursos políticos, nos textos literários ou nos estudos sobre a sua história e geografia70. A investigação recente revela outras análises da sociedade alentejana que

mostram a diversidade do seu tecido social (Carmo, 2005), da sua economia (Fonseca, 1996), e da sua indústria (Guimarães, 2005).

O trabalho de Maria Antónia Pires de Almeida elucida-nos, contudo, sobre uma questão: o imaginário sobre o Alentejo apresenta sentidos comuns que persistem através de textos de natureza diferente. A autora diz ter encontrado as mesmas histórias do Alentejo ficcionado por Manuel da Fonseca, José Saramago Alves Redol ou Fernando Namora: «as histórias de vida que ouvi no meu presente etnográfico, em 1998, são exactamente iguais às que José Saramago ouviu no Lavre em 1976 para escrever o seu livro Levantado do Chão e que Alves Redol, Manuel da Fonseca ou Fernando Namora tinham relatado quarenta anos antes. Todas repetem as características da sociedade alentejana descritas por Cutileiro em 1971 e por Vale de Almeida em 1991.» (Almeida, 2006, p.17-18). As condições sociais, económicas e políticas alimentaram a ficção literária tal como esta parece ter ajudado a interpretar uma região que exercia um mistério e uma atração através da essência da sua paisagem.

A paisagem alentejana parece ter-se sobreposto a todos os raciocínios e ter mostrado que as fronteiras que o homem lhe impôs – através do seu olhar ou da sua escrita – vieram apenas revelar que a sua natureza está para além de qualquer fronteira definida. Como afirmou Wim Wenders a propósito das paisagens do Oeste americano: nada as impressiona e nunca foram verdadeiramente conquistadas (Bergala, 1987, p.97). Talvez aí resida a resistência desta paisagem, tanto para ser atravessada como para ser definida, porque revela ao homem o momento em que o mundo pode começar, como diz José Saramago, mas também aquele em que um mundo pode acabar.

69 A este propósito ver o trabalho de Teresa Fonseca (2011, p. 38). 70

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 196-200)