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M EMÓRIAS LITERÁRIAS , MEMÓRIAS DA CIDADE

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 160-166)

Danielle Alves Lopes¹, Rita Baleiro² & Sílvia Quinteiro³

2. M EMÓRIAS LITERÁRIAS , MEMÓRIAS DA CIDADE

Em A aventura semiológica, Barthes afirma que “a cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala aos seus habitantes, nós falamos a nossa cidade” (Barthes, 1987, p.184). Assim entendida, a cidade é, pois, um objecto de análise e tema de reflexão, ela é construída como um desafio e um objecto de questionamento, ao mesmo tempo que ela própria suscita um questionamento (Pesavento, 1999, p.17). Neste sentido, a literatura, com a sua capacidade de promover a deslocação de elementos para a construção de novos significados, condiciona o modo como a leitura confere “um sentido e uma função” (Machado apud Pesavento, 1999, p.81) aos cenários da cidade, ordenando o real e atribuindo-lhe valor.

No caso das literaturas modernas e modernistas, as imagens da essência da cidade moderna e do homem urbano são as que se destacam pela artificialidade e inautenticidade do lugar, pela diversidade e pela heterogeneidade das transformações aceleradas e das instituições culturais e artísticas (Andrade, 2004, p.78), o que se confirma no caso de Belo Horizonte. Efectivamente, a capital mineira, inaugurada oficialmente em 1897, a partir do antigo Arraial do Curral Del Rey – povoação localizada nos arredores da Fazenda do Cercado – viu a sua modernidade afirmada através dos traços de Aarão Reis, o engenheiro responsável pela planta e construção da cidade. Uma construção inspirada em cidades como Paris e Washington.

Esta transição entre o tradicional e o moderno provocou intensas mudanças citadinas, reforçando o facto de a modificação do espaço de uma cidade, dando-lhe forma e feição, conter em si um projecto político de gestão do urbano na sua totalidade (Pesavento, 1999, p.16). Esta alteração é, por um lado, uma tarefa de profissionais especificamente habilitados para tal – urbanistas, arquitectos, engenheiros – , mas por outro, comporta também o que se poderia chamar de uma intervenção do quotidiano (Pesavento, 1999, p.16), ou seja, há uma parte deste processo que é inevitavelmente determinada por aqueles que habitam a cidade. No caso de Belo Horizonte, os espaços foram ocupados por uma população letrada, vinda da antiga capital (Ouro Preto), e a cidade foi marcada pelo subsequente lançamento de duas importantes revistas modernistas: A Revista, do grupo de Carlos Drummond de Andrade, em 1925, e Leite Criôlo, de João Dornas, em 1929. Neste período, intensificaram-se, ainda, os pontos de

encontro, os pontos de footing, os grémios literários, as praças e os parques. Era o modernismo a ganhar forma.

Foi esta a época em que Carlos Drummond de Andrade e outras personalidades marcantes da literatura mineira como Cyro dos Anjos, Luís Vaz, Alberto Campos, Pedro Nava, Emílio Moura, Milton Campos, João Alphonsus, Abgar Renault e Belmiro Braga, frequentemente, reunidos no Bar do Ponto, no Trianon ou na Confeitaria Estrela, também compunham os seus primeiros escritos sobre o fenómeno urbano na capital. Drummond, mineiro da cidade de Itabira, ingressou cedo no meio intelectual da cidade, vindo a ocupar o cargo de redactor-chefe no Jornal Minas Gerais, onde publicou a sua produção cronística sob o título de “Notas Sociais”. Assinando Antônio Crispim, Drummond era o enunciador da vida urbana:

Antônio Crispim é o cronista da tenra cidade, que amanhece ainda. Antes de assinar seus textos no Minas Gerais, deixou sua marca no Diário de Minas e no suplemento modernista A Revista. A leitura das narrativas por ele assinadas aponta para a dimensão histórica e literária da capital mineira. Como um arquiteto ou pintor, ele ficará responsável pela cidade de Belo Horizonte, desenhando-a com palavras, dando expressão à sua cara e à daqueles que nela habitam. A cidade escrita, descrita, delineada por ele ajuda a documentar e construir a história de Belo Horizonte, como aponta Gomes (1998), mas, ao mesmo tempo insere, nessa história, elementos que provocam sua releitura. Tem-se, pois, um enunciador da vida urbana. (Lima, 201, p. 39)

Publicada em 1930, a crónica “Kodack” apresenta-se, pois, como um passeio pela cidade. O narrador, fixador e revelador de imagens de diversos espaços de Belo Horizonte, surge como um flâneur, quando tece considerações sobre cada ponto enunciado no texto: ruas, praças, estabelecimentos comerciais e bairros. São, no total, sete blocos de texto com imagens dos lugares da cidade. Lemos, de seguida, um desses blocos de texto, no qual se apresenta uma das principais ruas da cidade:

Eu conheci a rua da Bahia quando ela era feliz. Era feliz e tinha um ar de importância que irritava as outras ruas da cidade. Um dia, parece que a rua da Bahia teve desgosto qualquer e começou a decair. Hoje, a gente olha para ela com um respeito meio irônico e meio triste. Como quem olha para Ouro Preto. (Andrade, [1930-34] 1987, p.54)

Observa-se, pela dimensão memorialista do primeiro texto da crónica, uma relação estreita entre o cronista e o espaço urbano, e a crónica constitui-se então jogo entre o tempo passado e presente do narrador, e o tempo da escrita. A Rua da Bahia, outrora rua da Felicidade, que, de tão importante, irritava as demais, é aqui comparada a Ouro Preto, cidade que, após o apogeu político-económico, entrou em declínio. O cronista busca enfatizar o auge de antigamente desta rua da capital, que era um marco para os intelectuais da cidade – pois era lá que se encontrava a intelectualidade mineira – contrastando esse apogeu com um presente no qual a rua deixou de ser sinónimo de fervilhar intelectual ou de alegria dos seus transeuntes.

Num outro bloco de “Kodack”, Drummond descreve a Rua Caetés e percebe-se um tom mais afável: “Gosto da rua Caetés, a rua mais interessante da cidade”. (Andrade, [1930-34] 1987, p.54):

[...] Rua de bigodes e gritos joviais, de pequeninos arranha-céus e de laranjas amadurecendo em caixotes. Rua de sedas e vitrolas. Elegante. Popular. Nossa. E depois, é também a rua mais camarada de todas: sempre disposta a fazer uma diferença, para você ficar freguês [...]. (Andrade [1930-34] 1987,

p.54)

Na época, a Rua Caetés era um espaço ocupado por comerciantes de origem libanesa, síria e árabe, que vendiam seus tecidos e enxovais, sendo que a inserção do discurso indirecto livre traz as vozes desses comerciantes em diálogo com os possíveis fregueses e com os leitores (Lima, 2011, p.49): a rua “sempre disposta a fazer uma diferença, para você ficar freguês [...]" (Andrade, [1930-34] 1987, p.54).

A figura do flâneur surge, neste texto, claramente identificada com a postura do cronista, e “a rua se torna moradia para o flâneur que, entre fachadas dos prédios, sente- se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes” (Benjamin, 1989, p. 35):

Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão burguês; muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são as suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente. (Benjamin, 1989, p.35)

Com a mesma acuidade, no momento seguinte o cronista traça comentários sobre outro retrato quotidiano da cidade, referindo que “o melhor alfaiate de Minas está instalado na rua Baritina, a três quilômetros da Praça 7, lado esquerdo de quem sobe, casinha de porta e janela e uma tabuleta no alto: "O belo Brumil” (Andrade, [1930-34] 1987, p.54). Esta é uma menção ao inglês George Bryan Brummel (1778-1840), mais conhecido como Le Beau Brummel, que, na época, foi uma espécie de juiz dos homens da moda na Inglaterra.

Se considerarmos que este narrador é um flâneur, assumindo, como faz Maria Isabel Porto, que a “figura do cronista aparece no ambiente urbano como a possibilidade de existência do flâneur” (Porto, 2008, p. 18), podemos atestar aqui a ambiguidade que caracteriza esta figura “capaz de extrair uma multiplicidade de olhares sobre o cotidiano da cidade, […] trazendo à tona fatos aparentemente banais, mas capazes de causar reflexão, ou apenas divertir” (Porto, 2008, p. 18). De facto, por um lado, este narrador/flâneur surge como uma figura que vive no meio da multidão, mas numa espécie de alheamento social, à deriva:

O flanêur aparece como a figura de um burguês que tem o tempo à sua disposição e que pode dar-se ao luxo de desperdiçá-lo, para horror da sociedade capitalista de sua época. O flâneur é um burguês que leva uma vida sem objetivos definidos a não ser buscar no complexo urbano rusgas, vãos, becos por onde entrar em busca de algum espetáculo para os seus olhos sobre pernas. (Massagli, 2008, p.57)

Contudo, por outro lado, esta figura apresenta também uma dimensão bem mais profunda, mais centrada na compreensão do fenómeno urbano, dos lugares e das gentes, como refere o mesmo autor:

O flâneur, portanto, é o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, através de cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato, através de suas andanças, ele transforma a cidade em um espaço para ser lido, um objeto de investigação, uma floresta de signos a serem decodificados – em suma, um texto. (Massagli, 2008, p.57)

Num noutro fragmento da crónica “Kodack”, surge uma representação da Avenida João Pinheiro: “Por que será que quando a gente sobe a Avenida João Pinheiro corrige

insensivelmente a dobra do paletó e passa a mão no pescoço, para ver se não esqueceu a gravata em casa?” (Andrade, [1930-34] 1987, p.54). A resposta à pergunta do narrador parece ter como referência o respeito suscitado pela figura de João Pinheiro – político ligado ao partido Republicano com notabilidade no país, e que foi homenageado através do antropónimo desta avenida. Na verdade, como refere Almandrade, “Bairros, praças, ruas, edificações, monumentos e até mesmo seus respectivos nomes, documentam a ficção vivida de uma cidade. A memória de uma cidade é também a memória de seus habitantes.” (Almandrade, 2008, s/p). Neste caso, a memória de João Pinheiro fica duplamente perpetuada, através do nome da Avenida e da sua referência na obra de Drummond de Andrade.

O cronista presta ainda atenção às acentuadas diferenças sociais que existem na cidade belo-horizontina. Com efeito, refere mesmo que “A vitória de «miss» Carlos Prates é de algum modo a vitória de Carlos Prates, do bairro desmerecido que até há bem pouco a Serra e os Funcionários não ligavam.” (Andrade, [1930-34] 1987, p.54). Fora da Avenida do Contorno, Carlos Prates, um bairro simples e sem brio, ganha no texto forma e estatuto, vindos de um observador que o reconhece como parte também importante da cidade, com seus movimentos e paisagens.

Noutro fragmento da crónica, a estrada “que levava ao Barreiro” é colocada em evidência. Tal como na passagem, a metonímia apresentada reforça a racionalização imposta pela modernidade à construção de Belo Horizonte. A crítica volta-se novamente para o engrandecimento dos bairros dentro dos moldes de planeamento – Avenida do Contorno – e para a ausência de brilho dos que se encontravam nas margens (Lima, 2011, p.52):

Na estrada que leva ao Barreiro, os amigos do pitoresco encontrarão a Cabana do Pai Tomás. Mais perto e mais poética é a Cabana da Alegria, esta sim, com a sua cobertura autêntica, de Sapé, no fim da linha de Carlos Prates. Bom lugar para se beber um chope e se contar a história da namorada que nos enganou com o menino bigodinho que joga no Atlético. (Andrade, [1930-

34] 1987, p. 54)

Em toda a perspectiva da crónica “Kodack”, o signo do retrato somado ao percurso do cronista permite captar, no espaço do texto, uma espécie de “ação narrativa” (de

Certeau, 1999, p.169). É como imaginar o cronista a percorrer a cidade com uma câmara, iluminando e fixando com os flashes o que reconhece como sendo de valor.

Alguns anos após a publicação das crónicas da década de 1930, Drummond retorna o seu olhar para Belo Horizonte, quando esta cidade já se apresenta com muitas transformações, diferente daquela criticada no passado como provinciana. O espírito ambíguo próprio do eu-lírico moderno é manifestado no poema memorialista “Triste Horizonte” (1976). No poema, a voz poética discorre sobre o progresso da cidade com a melancolia e a nostalgia dos anos anteriores. Eis que o espaço citadino planeado geometricamente, com características próprias de uma proposta moderna, já se tinha tornado numa grande metrópole, com todas as mudanças intrínsecas de uma rápida expansão. O caos urbano, a violência e a Serra despedaçada permitiram ao eu-lírico posicionar-se: “Não quero mais, não quero ver-te/ Meu Triste Horizonte e destroçado amor” (Drummond, 1976, p. 11-14):

[...] Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano.

De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte... Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens

de esperança nos homens pacificados – os doces mineiros que teimam em existir no caos e no tráfico.

Em vão tento a escalada.

Cassetetes e revólveres me barram

a subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar. Proibido sentir

o ar de liberdade destes cimos,

proibido viver a selvagem intimidade destas pedras... [...] Não quero mais, não quero ver-te,

Meu Triste Horizonte e destroçado amor.

(Andrade, 1976, p.11-14).

Reviver a cidade modernista de 1930 tornou-se possível, pois, através da memória, das lembranças e das recordações seleccionadas e cristalizadas pelo poeta. A diversidade

e paradoxos perenes, percebidos em todos os contextos da cidade: nas imagens, nos signos e no comportamento dos belo-horizontinos. E, daí, o tom melancólico do homem moderno (do escritor moderno) colocado perante os contrastes entre o aceitar ou o recusar a realidade, o sentir-se parte do real ou estranho a este. A voz poética é aqui a do flâneur que caminha pelos escombros da modernidade em permanente busca de novos espaços – ou mesmo em busca de si – , seja no passado, seja no presente.

Em síntese, os textos de Drummond de Andrade apresentam-nos Belo Horizonte como um palimpsesto, um texto sobre o qual se foram escrevendo outros textos, mediados por novos tempos e novos olhares sobre a cidade, lembrando-nos que:

A cidade é heterogênea, produto de várias sociedades e de contraditórios momentos históricos; a cidade é uma enciclopédia de memórias […]. A cidade geralmente, no decorrer de sua história é um conjunto de fragmentos de cidades que vão se edificando umas sobre as outras, que se substituem e se acumulam. Dos templos gregos à capela de Ronchamp, das pirâmides egípcias aos arranha-céus transparentes, dos estádios romanos à casa da cascata; cada sociedade produz os elementos particulares de configuração espacial de sua existência. Parte de nossa memória se encontra fora de nós, em nossos objetos, nos lugares construídos e vividos. (Almandrade, 2008, s/p)

A cidade, sendo uma construção humana, é um lugar da memória por excelência. Avançamos, de seguida, para o terceiro momento deste artigo, no qual elaboramos a relação que se estabelece entre os dois textos de Drummond, aqui em análise, e a actividade turística.

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 160-166)