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Os lugares literários em “Kodack”: a linguagem escrita como criadora de lugares literários

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 168-172)

Danielle Alves Lopes¹, Rita Baleiro² & Sílvia Quinteiro³

3. L ITERATURA DE TURISMO E CRIAÇÃO DE LUGARES LITERÁRIOS

3.2. Os lugares literários em “Kodack”: a linguagem escrita como criadora de lugares literários

Em “Kodack”, como seria de esperar de um texto com este título, apresentam-se e registam-se momentos da vida da cidade que ficam preservados nas palavras do narrador. Na verdade, a crónica assemelha-se a uma sequência de polaroids, fotografias

instantâneas, momentos únicos captados pela lente do narrador/fotógrafo/flâneur enquanto deambula pelas ruas da cidade. Ao enquadrar pedaços da cidade, esta figura isola um conjunto de lugares de Belo Horizonte. Há, pois, um processo de selecção que nos lembra que uma cidade é ao mesmo tempo lugar e espaço. É um lugar em relação ao espaço maior que a rodeia e é espaço quando é definida em função dos lugares menores que se encontram dentro dela. Nesta perspectiva, o “lugar” corresponde a um segmento do espaço que, de alguma forma, se isola e distingue do espaço maior (Tuan, 2006). Ou seja, um lugar é apenas espaço, se não for isolado e nomeado. Ora, isolar e nomear lugares dentro desse espaço maior que é a cidade é, como vimos, exactamente o que Carlos Drummond de Andrade faz em “Kodack”. E ao fazê-lo dentro da sua obra está a criar lugares literários ou seja, lugares ressignificados pela sua associação a um texto literário, lugares na base de cuja formação houve um “arrastar” (Rojek, 1997, p.52-74) do literário para a paisagem física.

No contexto do turismo, podemos considerar dois tipos de lugares literários. O primeiro inclui aqueles lugares que foram representados em textos literários (Fawcett e Cormack, 2001, p.687) – que lhes serviram de cenário ou constituíram fonte de inspiração. O segundo, e o mais popular, associa-se claramente à figura do autor. Se no primeiro tipo, o turista/viajante procura o produto da imaginação, própria do mundo literário, na realidade do mundo físico, motivado pelo desejo de encontrar no real aquilo que leu nas páginas de um livro, no segundo tipo, o turista/viajante procura, acima de tudo, um encontro com o autor. As palavras e as escolhas de Carlos Drummond de Andrade, em “Kodack”, resultam na criação de lugares literários do primeiro tipo. De facto, ao nomear e isolar lugares como a Rua da Bahia, a Rua de Caetés, o Bar do Ponto e a Rua Baritina, Carlos Drummond de Andrade está a transformá-los em lugares literários que, ganhando esse novo sentido, poderão vir a integrar e/ou compor um itinerário literário pela cidade de Belo Horizonte, ou mesmo a ser integrados noutros itinerários já existentes, ainda que assinalados em função da sua associação à literatura. Se, por algum motivo, o leitor visitar esta cidade recusando observá-la através da lente de Claude55 que é aqui o texto de Carlos Drummond de Andrade, não conseguirá ver a cidade

55 Claude Lorrain viveu no século XVII (1600-1682) e foi um famoso pintor de paisagens. Trabalhou fundamentalmente em Roma e ficou famoso pela subtil gradação de tons dos seus quadros e dos seus desenhos. A lente de Claude é uma lente ligeiramente convexa e matizada que, supostamente, ajudaria outros artistas a fazer quadros semelhantes aos de Claude. As lentes de Claude eram também muito utilizadas por turistas, que observavam a paisagem através dela. (Ver

pitoresca, borbulhante de personalidade e de personalidades, retratada em “Kodack”. O perambular do narrador/flâneur pelos lugares de Belo Horizonte, dá-nos uma visão única da cidade, sendo que aqui o acto de caminhar é essencial, pois, como bem nota Rebecca Solnit, em Wanderlust: A history of walking:

Walkers are ‘practitioners of the city’, for the city is made to be walked. A city is a language, a repository of possibilities, and walking is the act of speaking that language, of selecting from those possibilities. Just as language limits what can be said, architecture limits where one can walk, but the walker invents other ways to go. (Solnit, 2000, p. 213)

E se, como diz a passagem supracitada, caminhar é dizer a cidade, então escrever é construí-la, uma vez que a escrita é um sistema que permite não só a construção de lugares, mas também a transmissão da experiência desses mesmos lugares (Bañón, 2004, p.31-32). De facto, a linguagem é muito mais do que uma ferramenta de comunicação. A linguagem permite-nos categorizar, distinguir e criar universo. Nós vemos o mundo que a linguagem descreve, ou seja, vemo-lo através do filtro da subjectividade de quem o diz. Tal como afirmou Ludwig Wittgenstein (1953), a linguagem constrói o mundo.

4. C

ONCLUSÃO

Chegamos aos parágrafos conclusivos deste trabalho com a crença reforçada na capacidade dos grandes autores, como é o caso de Carlos Drummond de Andrade, para construírem e eternizarem realidades que têm a capacidade de ressignificar espaços e lugares. Ao decompor o espaço urbano em lugares, a cidade surge (re)criada nestes retratos construídos por palavras que são a crónica e o poema. Dois textos que promovem uma leitura literária, mas também uma leitura documental, pois oferecem imagens, representações, fragmentos da realidade da urbe de Belo Horizonte, em duas épocas diferentes, o que nos permite aceder a universos deste “sujeito anónimo e universal” que é a cidade (Certeau, 1994, p.173); uma cidade cujos tempos descritos desconhecíamos, mas nos quais mergulhamos suspensos por instantes. Com “Kodack” e “Triste Horizonte”, Carlos Drummond de Andrade não só recria a cidade, a partir da relação que constrói com esse espaço, como cria lugares literários que permitem, por sua vez, definir novos itinerários, e inscrever estas produções textuais no conjunto de textos classificados

como literatura de turismo, motivando assim viagens a Belo Horizonte, nas quais o leitor tem a oportunidade de se transformar num turista, num flâneur-literário que percorre a paisagem das palavras de Drummond.

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II.1.2. Olhares de Autores

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 168-172)