• Nenhum resultado encontrado

G EOSOFIA CARTOGRÁFICA DO VIAJANTE I || V IAGEM EM DIREÇÃO A UM SI MESMO COM A T ERRA

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 37-40)

Carlos Eduardo Pontes Galvão Filho 1 & Eduardo Marandola Jr

4. G EOSOFIA CARTOGRÁFICA DO VIAJANTE I || V IAGEM EM DIREÇÃO A UM SI MESMO COM A T ERRA

A epígrafe deste texto é parte do diálogo entre o imperador mongol Kublai Kahn e o viajante veneziano Marco Polo, relatados por Italo Calvino em Cidades invisíveis. O primeiro permanecia em seu palácio à espera de notícias das terras distantes que governava e muitos relatos o advertiam sobre conflitos ou assinalavam locais com riquezas e bons negócios. No entanto, Marco Polo trazia em sua narrativa outras qualidades das cidades que visitava e que pouco tinham a ver com o que contavam os

outros emissários. Falava ele de uma geografia essencial das paisagens e dos lugares em que estivera; escavava a cidade até chegar ao seu sentido. Mas o imperador parecia resistir um pouco e o acusava de que essas cidades eram fruto da própria mente do viajante e que isso colocava em questão o porquê de viajar.

Marco Polo, por sua vez, argumentava que não eram apenas produtos da sua própria imaginação as cidades que trazia, mas seus relatos eram orientados pela forma

como se dirigia aos encontros com essas novas paisagens, o que buscava nelas

compreender. Dizia que sim, que de certo modo em uma viagem nos deparamos com nossa própria história, com conflitos e questões subjetivas, o que nos faz pensar sobre nossa própria existência. O que Polo estava se referindo, no contexto de nossa discussão, é que estar em uma outra paisagem – paisagem na qual o corpo ainda não havia ido, pode nos dizer sobre o Outro, aquilo que não somos nós, uma experiência da alteridade: o

conhecido e o desconhecido, o antigo e o novo, o familiar e o estrangeiro, o perto e o longe. E esta experiência do não-eu nos faz pensar, diretamente, em quem somos. Dito de outra forma, nos reconhecemos neste outro.

Durante um tempo o viajante encontra-se em uma paisagem, está nela, habitando- a. Não é uma consciência pura, mas sempre voltada a algo, dirigida ao mundo. Intencionalidade e intersubjetividade que fazem brotar geosofia, ato que ocorre em direção a si mesmo, mas a partir do onde se está e do como se está. Os relatos de Marco

Polo, carregados de libido geográfica e da atração magnética que possuímos para com a

Terra, expressam seu misturar-se às paisagens, no sentido utilizado por Serres (2001), indicando a superação das cisões modernas (mente-corpo, natureza-cultura, exterior- interior). Para o autor, somos sempre em mistura, e isso inclui a paisagem.

O viajante enunciado em Marco Polo melhor compreende a si mesmo, e o lugar de onde vem, a partir das viagens que realiza, porque para relatar as cidades que conhecera as vê não ignorando suas próprias memórias e imaginações passadas e futuras, pelo contrário, insere sua subjetividade na narrativa que cria para o imperador. Narra os encontros não como um observador fora da paisagem, mas misturado a ela, por um momento sendo a própria paisagem. Escreveu Dardel (2011, p. 95): “A geografia exige de uns todas as suas jornadas e todas as suas penas, e é lá que eles realizam seu ser e se compreendem”. O quanto somos estimulados e nos permitimos misturar nesses caminhos que nos são correspondentes, essas paisagens que nos atraem profundamente?

A Figura 1 mostra o mapa “Não sou mais apenas eu, misturei-me ao meu agora”, que busca expressar estes sentidos de viagem expressos pelo diálogo Khan-Polo. A mistura, a inteireza disforme da natureza espaço-temporal da experiência, permitindo pensar a viagem para além de uma trajetória de começo, meio e fim. Antes, a dúvida sobre o momento em que começa a viagem (Onfray, 2009) permanece, assim como é impossível discernir o que se sabia antes da viagem, e o que se passa a saber depois. A mistura promovida pela viagem intensifica a experiência, não no sentido cronológico ou geométrico. Antes, a mistura presentifica memória e lembranças, adensando a nossa própria experiência de mundo e nosso sentido de identidade.

Figura 1 – Mapa: não sou mais apenas eu, misturei-me ao meu agora. Fonte: composto a partir de um diálogo entre Marco Polo e Kublai Khan (Calvino, 1990, p. 27-29)

A oportunidade de desvelar esse conhecimento essencial – geosófico – permanece aberta, embora mais obstáculos existam para se chegar até ele: “Um dos dramas do mundo contemporâneo é que a Terra foi ‘desnaturada’, e o homem só pode vê-la através de suas medidas e de seus cálculos, em lugar de deixar-se decifrar sua escrita sóbria e vívida” (Dardel, 2011, p. 96). Ao reconhecer no outro as possibilidades de ter sido outros caso tivesse feito escolhas diferentes na vida, podemos dizer que Marco Polo dirige-se ao mundo-da-vida e é nesse mundo que tem origem sua narrativa, é essa escrita sóbria

fonte em que se revigora sem cessar nosso conhecimento do mundo exterior. A vida se encarrega [...] de restituir aos espaços terrestres seu frescor e sua glória [...]” (Dardel, 2011, p. 97).

A cartografia da viagem de Marco Polo não é uma fuga absoluta do ponto em que partiu e sim um constante ir e retornar a ele, evadir-se porém sem esquecer-se, criar leituras de mundo carregando consigo os sedimentos de sua própria história, tal qual o caminhante descrito por Hermann Hesse que, partindo para uma viagem a pé, olha para seu lar e medita:

Una vez más siento un amor intensificado por todo lo patrio, porque se trata de una despedida. Mañana amaré otros tejados, otras cabañas. No dejaré

aquí mi corazón, como se dice en las cartas de amor. Oh, no, el corazón lo llevaré conmigo, también lo necesito en las montañas, y a todas horas [...]

El camino de la redención no me lleva ni a derecha ni a izquierda, me lleva

al proprio corazón [...] (Hesse, 1980, p. 10-11 – grifo nosso)

Esta cartografia se refere ao ato de viajar como possibilidade de descoberta do que existe em nós e que ainda não nos foi revelado. A viagem como florescimento daquilo que somos, que brota em nós mesmos em outras paisagens e lugares, experiências que mexem com todos os nossos sentidos, desde que estejamos abertos a esse acontecer. Como se, ao viajar, escavássemos e trouxéssemos à tona geograficidades interiores.

É possível imaginar que cada pessoa nasça com uma bússola indicando um norte particular? Destinos subjetivos que norteiam e revelam nosso ser?

5. G

EOSOFIA CARTOGRÁFICA DO VIAJANTE

II||D

OS CAMINHOS

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 37-40)