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Rodrigo Guimarães

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 143-158)

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM); rodrigoguima899@gmail.com Resumo: Este trabalho propõe uma discussão sobre as diferentes vozes subversivas presentes no

Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles, a partir, sobretudo, da questão da

negritude, do gênero e da memória coletiva (Le Goof, 1996; Guimarães, 2010) de personagens anônimos e subalternos com referências míticas ou históricas, bem como a circunscrição do locus do garimpeiro e de sua comunidade que, nos últimos trezentos anos, acabou por formar uma sociedade culturalmente diferenciada no Alto do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil.

Palavras-chave: Cecília Meireles; Romanceiro da Inconfidência; Comunidade garimpeira; Alto

Jequitinhonha, Minas Gerais

Abstract: This paper proposes a discussion about the different subversive voices present in

Romanceiro da Inconfidência (1953), by Cecilia Meireles, related to the question of lackness,

gender and collective memory (Le Goof: 1996; Guimarães, 2010) of anonymous and subaltern characters with mythical or historical references, as well as the placement of the prospector (garimpeiro) and its community which over the last three hundred years, end up forming culturally differentiated society in the Alto Jequitinhonha, Minas Gerais, Brazil.

Keywords: Cecília Meireles; Romanceiro da Inconfidência; Gold Miner community; Alto

Jequitinhonha, Minas Gerais.

Não há documento cultural que não seja ao mesmo tempo um registro de barbárie

Walter Benjamin

1. I

NTRODUÇÃO

Darcy Ribeiro, na introdução de seu romance “Maíra: um romance dos índios e da Amazônia”, diz que misturou mitos, lendas e contos de muitos povos indígenas com os quais conviveu ao longo de anos, sobretudo com os Urubus-Kaapor (oriundos do Pará

e Maranhão). Desta forma, o autor se aproximou ainda mais de uma concepção mítica de mundo, pois “seus índios”, como gostava de se expressar, não tinham nenhum apreço pelo “ fanatismo da verdade”, sendo que assumiam múltiplas versões de um mesmo evento, sendo que algumas delas discrepavam entre si.

Percebe-se aí a maneira de acionar o mito não apenas em sua dimensão fundadora de sentido (antídoto contra o não-sentido e a angústia que dele decorre), mas em sua vertente escarpada de existência que se multiplica em relatos e se atualiza no tempo presente. Nesse sentido, Cecília Meireles, no Romanceiro da Inconfidência, borrifa a dimensão épica (e seu suposto olhar distanciado) com a força de sua lírica que fusiona as temporalidades tradicionais (passado, presente e futuro) numa espécie de simultaneidade de aconteceres com diferentes linhas de forças que pontilham o fio narrativo com uma evocação dramática, principalmente quando as vozes “fantasmáticas” insistem em presentificar a memória coletiva sem renunciar à singularidade do sujeito e o episódio peculiar. Meireles, consciente que não podia “reconstituir inteiramente as cenas” da época dos séculos XVII e XVIII, procurou preservar a autenticidade que ajusta à “factualidade” histórica o halo das tradições e da lenda52

52 - O Romanceiro da Inconfidência (RI) foi publicado em 1953, resultando da viagem que Cecília Meireles fez a Ouro Preto com o objetivo de fazer uma cobertura jornalística dos eventos da Semana Santa. Segundo Cecília a “irreprimível voz dos fantasmas” da antiga Vila Rica (hoje Ouro Preto, MG) a levou a escrever o Romanceiro, em que se evidencia a indignação da autora diante dos episódios de violência que incidiram sobre a então Capitania de Minas Gerais e os gestos responsivos que representaram os anseios de liberdade de parcela significativa da população. Pode-se identificar ainda, considerando a época em que o Romanceiro foi concebido, as ressonâncias da ditadura de Getúlio Vargas (o Estado Novo: 1937-1945), especialmente se levarmos em conta a posição contrário de Cecília à forma como Getúlio governava o país, sobretudo se considerarmos que o Romanceiro foi se configurando em um longo período de tempo antes de sua publicação, valendo-se de quatro anos de pesquisa, acesso às cartas, processos, sentenças e outros “documentos do tempo” que estavam relacionados especialmente ao período histórico que se inicia com a colonização na busca compulsiva do ouro e diamante (início do século XVII) e culmina na Inconfidência Mineira, em 1789. Esta revolta que ocorreu na Capitania de Minas foi influenciada pelas ideias iluministas e pelas notícias da independência dos Estados Unidos da América. Acrescenta-se aí, de maneira mais direta e circunstanciada, a pesada carga tributária que Portugal impôs sobre o ouro e o diamante em Vila Rica (Ouro Preto) e Arraial do Tejuco (atual Diamantina, Minas Gerais) e a violência da metrópole que se fez presente mediante processos de demarcação de territórios de extração mineral e de sua fiscalização, das formas estipuladas para as cobranças de impostos (e suas consequentes “devassas”, as penalidades infringidas aos infratores), dos mecanismos de torturas, degredos para Angola e execuções sumárias), entre outros. Todo esse processo desencadeou nos proprietários rurais e de minas, clérigos e profissionais liberais (entre os quais alguns poetas árcades), planos e ações com fins de independência para libertar a Capitania de Minas em relação à metrópole portuguesa, sem, contudo, propor o desmantelamento da estrutura escravocrata vigente no Brasil, tampouco a libertação do negro. A “delação premiada”, sistema instaurado e incentivado pela metrópole na colônia, contribuiu para o fracasso da revolta mediante a denúncia do minerador Joaquim Silvério dos Reis (Romanceiro da Inconfidência: 28, 34 e 41: “Dos delatores”) levando muitos dos subversivos ao degredo, sendo que apenas um inconfidente foi punido com a pena capital (enforcamento), justamente o rebelde de posição social e econômica mais baixa, o alferes Joaquim

Darcy Ribeiro, com sua etnoficção produziu um romance mais “verdadeiro que a “realidade” (retomo aqui sua comparação lúdica), pois pluralizou perspectivas de sujeitos históricos e condensou lendas, mitos e relatos coletados em diferentes aldeias indígenas.

Diferentemente de Darcy, Cecília Meireles, mediante o procedimento de “invenção poética”, reatualiza dizeres coletivos e torna-se “senhora” da memória e do esquecimento (Le Goof, 2006) desrecalcando a voz dos desvalidos e “derrotados” e recriando os falares dos negros, das mulheres, dos oprimidos e anônimos que participaram (e ainda participam) dos contradiscursos (neo)coloniais: “Estes branquinhos do Reino / nos querem tomar a terra: / porém, mais tarde ou mais cedo, os deitamos fora dela” (in: Romance XLII ou do sapateiro Capanema).

Alguns críticos situam a proposta de liberdade como o eixo axial do Romanceiro da Inconfidência, enquanto outros assinalam a indignação moral da voz narradora, ou mesmo da própria Cecília Meireles, como o pano de fundo que sustenta a obra. Já Adalgimar Gomes Gonçalves, em sua Dissertação de Mestrado intitulada “As personagens negras do Romanceiro da Inconfidência: uma leitura inclusiva”, aborda as escolhas temáticas que Cecília Meireles efetua ao repensar o imaginário da Inconfidência Mineira concedendo voz narrativa à questão do negro, outorgando-lhe dignidade e força subversiva ao destacar personagens como Chico Rei, Santa Ifigênia e Chica da Silva53.

Os personagens negros e anônimos constituem uma das mais belas composições do Romanceiro, convocando olhares variados e ancorando interpretações para aqueles que conhecem um pouco da história do Arraial do Tejuco (atual Diamantina). Vejamos o Romance XXII ou do Diamante Extraviado:

53 No Romanceiro da Inconfidência, Cecília dedica muitas de suas composições para abordar a saga e a ascensão social de Chico Rei (romance VIII) e de Chica da Silva. Sendo que o primeiro faz parte da tradição oral e agrega componentes heroicizados e não apresenta registros documentais fidedignos. Já Chica da Silva (1732-1796) é uma personagem histórica com larga documentação comprobatória e genealogia conhecida. Nascida escrava e posteriormente alforriada, viveu no Arraial do Tejuco (Diamantina) e constituiu por mais de quinze anos uma união consensual estável (pois o casamento de ex-escrava com senhores era condenada pela sociedade) com o abastado contratador dos diamantes, João Fernandes de Oliveira, com o qual teve treze filhos e alcançou posição de destaque na sociedade local. Esta foi uma época em que o arraial desenvolveu-se fortemente, pois o contratador Joaquim Fernandes fazia vista grossa ao garimpo clandestino e ao contrabando de diamantes. Francisca da Silva era filha de Antonio Caetano, homem branco, e de Maria da Costa, escrava africana da Costa da Mina. Chica da Silva pertencia às irmandades de São Francisco e do Carmo

Um negro desceu do Serro. (e era um negro alto bastante.) Vinha escondido no negro certo diamante.

(Como a noite negra leva um luminoso planeta parado em sua treva)

E segue a narração em que os outros fatos são explicitados: onde se encontra o negro, qual o preço e o peso do diamante, a transação que ele faz para vender a pedra. Porém, indaga a voz narradora, “quem é que tem coragem / de fazer parar o negro / nessa escandalosa viagem?”

Francis Utéza, seguindo o percurso de leitura de Cecília Meireles que, por sua vez, leu Joaquim Felício dos Santos (Memórias do Distrito Diamantino), aposta na hipótese de que o negro narrado no Romanceiro é o mártir Isidoro. Assim Joaquim Felício descreve o seu martírio:

Isidoro era um pardo, que fora escravo de um Frei Rangel, que vivia da mineração. Processado como contrabandista, foi confiscado a seu senhor em benefício da Fazenda Real e condenado a trabalhar nos serviços da Extração como galé. De caráter altivo e não podendo suportar a pena, que o obrigava a trabalhar de calceta, um dia limou os ferros, conseguiu iludir a vigilância dos fulares, fugiu do serviço, e atirou-se à vida de garimpeiro. Sucedeu que outros escravos, também condenados, imitassem seu exemplo. Reuniram-se e Isidoro constitui-se o chefe de uma tropa de garimpeiros escravos. Isidoro era um pardo alto, corpulento, valente, intrépido. Sua tropa compunha-se de uns cinquenta escravos [...] Isidoro entretinha frequentes comunicações com pessoas importantes do Tijuco, que lhe compravam os diamantes que extraía. Certo da proteção de seus cúmplices, aparecia muitas vezes nas povoações para arranjar pessoalmente seus negócios [...] Isidoro foi muito perseguido durante a Intendência de João Inácio. Prometeu-se um prêmio a quem o apresentasse vivo ou morto em ato de resistência; e Isidoro vivia quase publicamente nas povoações, e ninguém o prendia [...] Câmara foi o mais acérrimo perseguidor de Isidoro: ainda mais que João Inácio. Declarou-lhe

uma guerra encarniçada [...] conta-se que um dos companheiros de Isidoro o vendera [...] Foi no mês de junho de 1809, que Isidoro entrou preso no Tijuco [...] vinha amarrado num cavalo, cercado de pedestres, todo ensopado de sangue que lhe corria das feridas [...] Perguntado se tinha extraído diamantes nas lavras imperiais? – Respondeu que os diamantes eram de Deus, e só dele; e por isso não cometera crime em extraí-los [...] só confessava o que tinha feito. O Intendente prometeu-lhe o perdão, a liberdade, se declarasse os nomes de seus cúmplices, mas nada conseguiu. Depois passou a ameaçá-lo com açoites. Isidoro mostrou-se tão indiferentes às ameaças como às promessas.

Isidoro morreu após torturas cada vez mais severas, mas não é esta faceta que capturou o interesse de Cecília Meireles, caso seja ele o personagem que a inspirou no Romanceiro.

Ao invés de avançar a hipótese de Utéza no sentido de confrontá-la com um verossímil paralelo histórico, proponho uma leitura metonímica, metafórica e alegórica das estrofes acima apresentadas, sobretudo nos versos “vinha escondido no negro / certo diamante”. Esta passagem é acrescida por uma inserção em terceto de uma voz narradora que interrompe a narrativa para apresentar uma vigorosa imagem em paralelo com o fato narrado “como a noite negra leva / um luminoso planeta / parado em sua treva”. Em apenas duas estrofes, Meireles vale-se de um rico manuseio imagético e formal. Metonimicamente, o diamante não está escondido nas vestes do negro, mas no próprio negro, desencadeando assim a força metafórica da pedra cuja luz exige olhos atentos e sensíveis para garimpar no negro do “negro do Serro” o planeta luminoso na noite negra. Em apenas cinco versos, verifica-se a reafirmação daquilo que escurece a cena: negro / negro / negro / noite / negra / treva. Forças antagônicas tensionam o terceto: “Como a noite negra leva / um luminoso planeta parado em sua treva”. É recorrente o paralelo do diamante e da estrela/planeta no Romanceiro, mas o que esse negro trafica, mais do que a pedra exuberante, capaz de comprar a liberdade, é a própria liberdade. Daí a ameaça, a força e imponência de seu gesto:

E mais ninguém, lá na Vila por esta pedra extraviada pode ter vida tranquila.

Ora, um negro desce do Serro, ostentando em seu âmago a subversão ao regime escravista, o desafio a esse sistema e deixando transparecer a luz de sua liberdade, mas a noite negra a leva, como a um planeta, “parado em sua treva”, como se no romance VIII a voz narradora já anunciasse que essa liberdade assinalada por um negro, pela noite seria levada, deflagrando, nos Romances à frente, o fracasso da Inconfidência Mineira. São os “maus presságios” tão freqüentes no Romanceiro, ganhando, inclusive, um fragmento (denominado de Romance, por Cecília) com esse título. Mas depois dessa pedra extraviada, dessa “idéia” que segue por vias não ordinárias, como é possível “ter vida tranquila”?

O Romance XXI ou “das idéias”, que antecede o Romance do diamante extraviado (XXII), já anuncia as linhas de força que atravessam os interstícios da frenética Vila Rica. Não há como evadir-se no idílio árcade, os “paraísos artificiais” já foram demolidos no Romance anterior (XX ou do país da Arcádia): “O país da Arcádia / jaz dentro de um leque: / existe ou se acaba / conforme o decrete / a Dona que o entreabra / a Sorte que o feche”, composição que se encerra com o “partido leque”. São as “idéias” e as “luzes” da conspiração que penetram em cada fresta, que ilumina a paisagem e os aconteceres de Vila Rica. Num ritmo rápido, quebrado e cortante, com versos descritivos e extremados com ponto final após a linha rítmica ou mesmo após cada palavra dentro de um mesmo verso, com fechamento de muitas estrofes com a insistente repetição “e as idéias”, o Romance XXI apresenta, de maneira tensa, o desenrolar da vida em Vila Rica, seu ambiente, seus costumes, o transitar dos negros, índios, mulatos, senhores, governantes, padres, poetas: “O clero. A nobreza. O povo. / E as idéias”. Segue-se com a pulsação das “Cavalhadas. Luminárias. / Sinos. Procissões. Promessas. / Anjos e santos nascendo / em mãos de gangrena e lepra”. Toda uma imagética é construída para destacar as correntes submersas ou às margens que movimentam “sombras inquietas”, apresentando fantasmas, evocando presságios de um novo mundo: “Sinistros corvos espreitam / pelas douradas janelas [...] Senzalas. Tronco. Chibata. / Congos. Angolas. Benguelas. / Ó imenso tumulto humano! / E as idéias”. Calúnias, Desavenças, denúncias, emboscadas, salteadores, doenças, ungüentos, feiticeiros, “gente que chega e que passa [...] Os rios todos virados. / Toda revirada, a terra”.

Em menos de quatro páginas, Cecília Meireles no Romance XXI ou das idéias, constrói uma composição imagética inusitada de ritmos descompassados (avesso aos espartilhos métricos), com rimas internas no final do verso ou evadindo-se das rimas,

utilizando imagens-sínteses que conferem ao leitor a impressão de percepção e pertencimento à “totalidade” da vida em Vila Rica do século XVIII. São composições como essa do Romance XXI que autorizam João Adolfo Hansen atestar que Cecília Meireles é moderna sem ser modernista, pois mesmo valendo-se de temas, metros e formas que pertencem à tradição da lírica, há uma maneira inusitada de se apropriar dessa tradição, sem a “dissonância experimental do primeiro modernismo paulista de 1920” (Hansen: 2007, p. 46), e distante do tradicionalismo sonetizante da geração de 1945.

Constata-se, portanto, que as linhas de força do Romance XXI não são propriamente “as idéias” (apresentadas de forma vaga), mas o campo imagético sustentado pela tensão de diferentes ritmos. Percebe-se tanto em Octavio Paz quanto em Cecília Meireles uma consciência aguda e uma reflexão profunda sobre a importância da relação entre imagem, som e ritmicidade na composição poética.

Em O arco e a lira, o poeta e crítico mexicano Octavio Paz elabora um conceito de ritmo em que este é concebido como “visão de mundo” e não à maneira de uma medida ou métrica: “No fundo de toda cultura se acha uma atitude fundamental diante da vida, que antes de se expressar em criações religiosas, estéticas ou filosóficas, manifesta-se como ritmo. Yin e Yang para os chineses; ritmo quaternário para os astecas; dual para os Hebreus [...]. Nossa cultura está impregnada de ritmos ternários” (Cf. Paz, 1984, p. 71- 72).

Na Antiguidade, segundo a análise de Paz, o universo era concebido pelos homens tendo forma e centro, sendo regido por um ritmo cíclico e perfeito, figura que foi o arquétipo das relações entre a natureza, os homens e as leis. Gradativamente, a harmonia da imagem do mundo foi sendo quebrada, o espaço se fez infinito, o tempo deixou de ser cíclico, as essências platônicas (o mundo perfeito das Ideias) e Deus se desvaneceram.

A imaginação poética está diretamente relacionada com a imagem do mundo, portanto a mudança na cosmovisão de uma época ou de um escritor incide sobre o poema. A transformação da imagem do mundo, por sua vez, afeta diretamente a concepção da imagem do tempo, que incidirá, por conseguinte, sobre a relação do homem com a tradição. Assim, Octavio Paz tece a sua argumentação partindo do pressuposto de que cada civilização tem uma relação específica com o tempo - passado, presente e futuro – de modo que para as sociedades primitivas o modelo do presente e do futuro é o passado imemorial (e não recente), que consiste numa repetição rítmica atualizada na natureza e

passado. Se para os primitivos o tempo é o agente que suprime a mudança, para o moderno o tempo é o motor da mudança. A transformação, para o primitivo, é devida a alguma coisa que saiu da ordem e da harmonia, portanto é visto com horror, como falta e queda. Com o cristianismo houve uma inversão do tempo perfeito que não é mais a idade de ouro do passado imemorial, e sim, a eternidade, uma abolição do tempo situado em algum lugar do futuro no qual nada mais acontecerá depois do Juízo Final. Para os budistas, o tempo “essencial” é uma espécie de “vazio-pleno” em imanência, que sustenta o tempo cíclico (reencarnatório). Ao passo que o tempo cíclico estava presente nas culturas chinesa, grega, asteca e em tantas outras, na modernidade ele foi rompido por uma concepção linearista de tempo.

Cecília Meireles em “Como escrevi o Romanceiro da Inconfidência” também demonstra uma reflexão pormenorizada sobre a busca do “essencial expressivo” no trabalho poético e a importância do ritmo que se manifesta tanto no aspecto formal e textual quanto no próprio momento de criação:

Há um problema de palavras. Um problema de ritmos. Um problema de composição. Grande parte de tudo isso se realiza, decerto, sem inteira consciência do artista. É a decorrência natural da sua constituição, da sua personalidade - por isso, tão difícil se torna quase sempre a um criador explicar a própria criação [...] na verdade, uma das coisas que pude observar melhor que nunca, ao realizá-lo (o Romanceiro), foi a maneira por que um tema encontra sozinho ou sozinho impõe seu ritmo, sua sonoridade, seu desenvolvimento, sua medida (Meireles, 1955).

No Romance XXI ou das idéias, mesmo valendo-se de metros regulares, há uma profusão enorme de diferentes ritmos devido à incomum proliferação de pontos finais recheando os versos, atomizando palavras, sincopando o verso. Tudo isso confere autonomia às múltiplas vozes, pois as “idéias”, mesmo que sobre o pano de fundo da conspiração, também são plurais (o levante mineiro não se tratou de uma “ideologia” que unificou ou buscou circunscrever o campo do pensamento).

Cecília Meireles coloca em funcionamento no Romanceiro da Inconfidência uma gama de recursos de apropriação e desconstrução de ritmos, de narrativas históricas e da memória coletiva. Outros processos de desestabilização de visão de mundo já consolidadas, evidenciam-se também na forma como a questão de gênero e do feminino

é comentado pela autora. Os Romances XIII, XIV, XV e XVI recuperam a destacada história da ex-escrava Chica da Silva que conseguiu a sua ascensão social no Arraial do Tejuco ao estabelecer uma união consensual estável com o rico contratador dos diamantes João Fernandes. Esta história também é reconfigurada no Romanceiro a fim de incidir luz mais favorável à personagem Chica da Silva.

Cecília Meireles, além de heroicizar Francisca da Silva, recria e reinventa narrativas históricas para inverter os pesos e medidas na balança dos gêneros. O livro de Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, uma das obras consultadas por Cecília Meireles segundo Francis Utéza, descreve a ascensão e decadência do rico contratador dos diamantes João Fernandes, bem como a traição do Conde de Valadares, que foi ao Arraial do Tejuco sob ordens do Marques de Pombal, que

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