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I NQUIETUDE E MELANCOLIA NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 192-196)

Glória Alhinho

3. I NQUIETUDE E MELANCOLIA NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM

As condições geográficas do território alentejano - clima e relevo - assim como a falta de infra-estruturas - estradas e pontes - levaram a que muitos viajantes o comparassem a um deserto. Albert Silbert afirma que Alexandre Herculano eleva a aridez silenciosa à natureza intrínseca do Alentejo. Na opinião do historiador, o excesso de silêncio provocaria mesmo uma opressiva e misteriosa sensação de solidão59 (Silbert,

1966, p. 100). Com efeito, os viajantes que atravessaram o Alentejo evocaram uma inquietante sensação de desolação comparável àquela que se experiencia num espaço desértico. Heinrich F. Link diz sentir que conduz o seu leitor por um dos mais áridos e tristes territórios de Portugal: «Deserto maior do que aqui, talvez não se veja em Portugal » (Link, 2005 [1881], p.274). A imobilidade silenciosa da paisagem alentejana serve, igualmente, como guia para viajar na região: «Fora disto, o silêncio é absoluto. A natureza parece absorta e concentrada numa contemplação estática e solene.» (Proença, 2011[1927], p.29). Nos anos sessenta, a leitura da paisagem alentejana tem uma profundidade social e política. O Alentejo continua a ser um deserto mas porque condenado à solidão e ao abandono:

Caminhar no Alentejo cria a sensação de se estar descobrindo um deserto, onde há figuras soltas, isoladas, que parecem marcos ou reminiscências amargas da passada presença humana. Abandonar a faixa de alcatrão, que se desdobra em vagas sinuosas a cortar como sintoma de ténue progresso a campina sempre igual e sempre renovada, é escolher a aventura em léguas e léguas de caminhos inundados, em terras cobertas pelas estevas que submergem árvores, em montes abandonados onde o homem se tornou lembrança melancólica. (Ventura, 1976[1969], p.97)

O silêncio atravessará o imaginário sobre o Alentejo e será acompanhado de uma relação paradoxal entre o excesso e o vazio dos seus elementos paisagísticos e humanos: um excesso de terra, de paisagem, de luminosidade, mas também de solidão e abandono.

59 Em Ceifeiros de Fialho de Almeida, o silêncio provoca exatamente as mesmas sensações de inquietude e opressão evocadas por Alexandre Herculano: « Ao mesmo tempo começa a fazer-se um inquietante silencio na charneca, um

Este paradoxo entre o excesso e o vazio da paisagem associado às características da propriedade fundiária e ao isolamento dos aglomerados populacionais - as famosas imagens do monte alentejano ou da aldeia perdidos na imensidão da planície - provocaram uma imbricação de sentidos na relação entre a paisagem e o homem. A árvore isolada, por exemplo, é uma imagem recorrente do imaginário sobre o Alentejo60. As figuras soltas

e isoladas que Mário Ventura vê na paisagem alentejana imprimem uma melancolia na maior parte dos textos de Alentejo desencantado. Na árvore que se ergue, solitária, na planície, se desenha também o perfil de um ser humano enraizado: «Há estes homens à beira da estrada; inacabados ou gastos, é difícil dizê-lo, arbustos ou troncos de eucaliptos cortados cerce, qualquer coisa muito velha que os olhos não fixam nem a memória.» (Ventura, 1976[1969], p. 49). Essa relação, quase sempre exacerbada, realiza-se, por vezes, num espaço e num tempo de contornos míticos. Mário Ventura descreve-a como sendo impossível de fixar pela memória ou pelo olhar pois os homens e as árvores surgem contraditoriamente inacabados ou gastos e, por esta razão, para além de qualquer fronteira temporal ou física. Por sua vez, João Falcato vê no isolamento da árvore do Alentejo a imagem, por excelência, de uma filosofia de vida: «Esta filosofia de que só com o tempo o tempo anda ensinou-a o sobreiro ao homem do Alentejo.» (Falcato, 1953, p.129). Estas duas perspectivas mostram a imbricação de sentidos a que o homem e a paisagem se encontram associados. A partir dessa associação se leu a solidão, o abandono e a vulnerabilidade e, em simultâneo, a solenidade, a nobreza e a verticalidade.

A relação harmoniosa com a natureza traduz-se na interiorização da forma das árvores ou do mistério da planície alentejana. O seu silêncio e a sua imensidão transformam o posicionamento do homem no espaço e o andar e olhar em experiências de meditação (Falcato, 1953, p. 115). Assim, estes olhares viram o trabalho do homem alentejano como um ritual litúrgico61 ou um ritual solene entre o homem e o

cosmos62. Esta leitura revela o ponto de vista do homem civilizado em relação àquele que

ainda conserva uma relação harmoniosa com a natureza: «Dessa harmonia entre o homem e o seu meio selvagem nasce uma inventiva fértil e pronta, uma imaginação sempre alerta, uma atenção quase divinatória, que para o civilizado parece atingir os limites do miraculoso.» (Holanda, 1957, p. 77-78).

60 O poema Árvores do Alentejo de Florbela Espanca traduz este isolamento, por excelência. Nele a árvore surge animada pelos sentimentos mais exacerbados da alma humana.

Quer se trate do relato de viagem, do texto literário ou do estudo geográfico sobre o Alentejo, existe uma interrogação sobre a relação entre a paisagem e o homem que a habita. Como afirmou Jaime Cortesão: «Alentejo e alentejano são duas unidades maciças, para não dizer uma única, tão estreitamente fundidas se apresentam. Aquela terra tinha que dar aquele homem, e aquele homem tinha que nascer naquela terra. Separá-los é esvaziá-los de sentido.» (Cortesão, 1995[1966], p.241). Os sentidos que foram atribuídos a esta relação revelaram, num dado momento, uma visão ligada à procura de um tempo e de um sentido da natureza humana perdidos na modernidade mas em parte cristalizados na paisagem alentejana. No seu trabalho sobre a geografia económica do Alentejo, Olivier Balabanian parece ter-se aproximado do paradoxo que torna o estudo desta região complexo: o de nela se ter pousado um olhar admirativo que, simultaneamente, a remetia para o seu isolamento. Com efeito, o olhar deste investigador viu-a como uma paisagem bíblica, que se encontraria fora da História e por isso mesmo exercendo um poder de sedução que a tornaria difícil de explorar, de trabalhar e de amar:

terres à la fois convoitées et abandonnées, ‘zona de nadie’ [ ‘terre sans maître’ ], isolées de l’extérieur et coupées en deux par la ‘frontière du liège’, sans vie et sans activité. [...]. C’est là que l’on peut encore trouver des paysages ‘bibliques’ et que se maintiennent les traditions les plus archaïques, où les communautés rurales sont les plus primitives. Il est encore normal pour les femmes de porter le deuil pendant la plus grande partie de leur vie; dans les hurdes ‘noires’, hommes et animaux peuvent encore coexister dans des maisons à une seule pièce. Enfin, c’est là que l’on a l’impression absolue du déphasage économique avec le reste de la Péninsule; là que l’on trouve pratiquement tous les indicateurs du sous-développement qui sont autant de

clignotants de la détresse. (Balabanian, 1979, p.22)63

A análise de Olivier Balabanian mostra como a realidade de uma sociedade economicamente paralisada pode coexistir com o sonho primitivo de uma relação ancestral entre o homem e a natureza, como sugere a referência às paisagens bíblicas. Esta ambivalência, disseminada na maior parte dos textos sobre a região, ajudou a construir um olhar nostálgico e mítico sobre o Alentejo. Num texto sobre a arte popular, Aarão Lacerda, considerava o olhar do Visconde de Villa Moura sobre os horizontes

alentejanos de uma grande justeza precisamente porque nele o homem e a paisagem conviviam numa relação ancestral: «a paizagem, e com ella o homem, que é ainda da paizagem, [...]//É claro que escrevemos do homem simples, do que segue na sua olaria, às cegas, os barros romanos ou gregos soterrados que jamais viu, do que vive nas suas casas de terra, ou na campina, vestido de pelles, quasi confundido com os gados que apascenta, adormecendo á morrinheira do sol ou passando a noite a beber e a cantar» (Lacerda, 1917, p.33-34). Este homem simples, tal como surge descrito neste excerto, adquirira uma espiritualidade visível na lentidão na palavra, nos gestos e nos movimentos através da relação com a planície.

A este homem que vivia, aparentemente, afastado da História e do mundo atribui- se um caráter forjado pelo isolamento assim como pelo silêncio e monotonia da paisagem. Esta forma de ver o Alentejo motivou, como sabemos, as políticas cerealíferas para o sul de Portugal que ajudavam a cristalizar os mitos do Alentejo como o celeiro de Portugal, o salvador da Nação, a pátria dos heróis do trigo e a fronteira do pão64. O imaginário

sobre o Alentejo assentou nessa ambivalência, na medida em que contrapôs a verticalidade do homem alentejano e do seu comportamento - enraízados ainda numa comunidade original - face à História e aos destinos político e económico do território alentejano. Estas imagens de verticalidade surgem ligadas à independência moral do alentejano e, por extensão, à dignidade, como esclarece José Cutileiro: «A independência do homem é vertical, ao passo que a sua servidão o faz dobrar-se.»65. O seu estudo, Ricos

e Pobres do Alentejo, sugere, assim, que em vez de se atribuir um carácter independente e orgulhoso ao trabalhador pobre que viria apenas justificar o seu isolamento, é este que teria sido levado a encontrar um certo conforto em acreditar que era independente e orgulhoso (Cutileiro, 1977, p.391).

64 Estas expressões são utilizadas por diversos autores, tais como J. A. Capela e Silva, Manuel Ribeiro, Vitor Santos ou Jerónimo M. S. Paiva.

65 « o trabalho agrícola contrapõe[-se] a pelo menos um dos valores importantes desta sociedade - o valor moral da verticalidade. Expressões como andar direito, endireitar-se, levantar a cabeça e um homem às direitas estabelecem uma

4. E

XPERIÊNCIAS DA VIAGEM AO

A

LENTEJO

:

DA ESPIRITUALIDADE À

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