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O POETA VIAJANTE E O MODERNISMO

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 53-60)

Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado

2. O POETA VIAJANTE E O MODERNISMO

A viagem continuou a ser um tema e uma experiência provocadora de escrita para o modernismo, entendido aqui como o programa estético posto em circulação a partir da década de 1920 no campo literário e artístico brasileiro, apresentando uma importância destacada na poética de Manuel Bandeira, saudado como o São João Batista do modernismo, anunciador, desde o final da década de 1910, de alterações na sensibilidade poética que se exponencializariam e tomariam rumos próprios nos anos seguintes.

De fato, ainda jovem Bandeira seria forçado, por problemas de saúde, a uma verdadeira peregrinação por sanatórios e estâncias climáticas, que o levaram, em 1913, a Clavadel, na Suíça, após passagens por Campanha, Petrópolis, Teresópolis, Maranguape, Uruquê e Quixeramobim. A viagem para Campanha seria revisitada na crônica “O fantasma”, datada de 1956 e incluída em Flauta de papel. Anos depois, Bandeira escreveria em Petrópolis seu famoso poema “Balada das três mulheres do sabonete Araxá”, sendo ainda possível encontrar diversos outros poemas escritos em Petrópolis: “dos vinte e quatro poemas que perfazem O ritmo dissoluto, oito foram escritos na Mosela” (Bandeira, 1997, p. 328), destacando-se, entre eles, “O menino carvoeiro” e “O cacto”. Sua relação com Petrópolis era muito especial e gostava de elogiar o que chamava de “atmosfera” ou “ação de Petrópolis” sobre sua imaginação. Na abertura de Itinerário de Pasárgada, escreveu Bandeira: “sou natural do Recife, mas na verdade nasci para a vida consciente em Petrópolis, pois de Petrópolis datam as minhas mais velhas reminiscências” (Bandeira, 1997, p. 295), que, segundo ele, teriam sido fixadas no poema “Infância”. Na mesma obra, Bandeira recorda-se de viagens de veraneio feitas a localidades próximas de Recife entre os seis e dez anos, bem como de sua estadia em São Paulo (para estudar na Escola Politécnica) e no sanatório de Clavadel, cidade suíça por onde também passara António Nobre, um de seus poetas diletos. A estadia na Suíça foi fundamental para Bandeira, pois “foi em Clavadel que pela primeira vez pensei seriamente em publicar um livro de versos” (Bandeira, 1997, p. 317). É certo que alguns poemas de Cinza das horas tenham sido escritos durante a estadia no sanatório, bem como o poema “A vigília de Hero”, publicado em O ritmo dissoluto, e que seria “também de 1913 ou 1914, pois escrevi-o em Clavadel” (Bandeira, 1997, p. 328).

“Oração do Saco de Mangaratiba” é um poema publicado em Libertinagem que teve a viagem como experiência provocadora. Bandeira explicaria, anos depois, nessa passagem de Itinerário de Pasárgada:

“Oração no Saco de Mangaratiba" não é poema, é resíduo de poema. Em 1926 passei duas semanas num sítio distante de Mangaratiba umas duas horas de canoa. A ida para lá, noite fechada ainda, foi a viagem mais bonita que já fiz na minha vida. Vênus luzia sobre nós tão grande, tão intensa, tão bela, que chegava a parecer escandalosa e dava vontade de morrer (daquela hora é que iria sair o título do meu livro seguinte: Estrela da Manhã). A viagem de volta foi também noturna. Saímos da Praia da Figueira às duas da madrugada para apanhar em Mangaratiba o trem das cinco. Ao virarmos a Ponta da Paciência, levantou-se um vento que quase dá conosco na Restinga da Marambaia. Chegamos em cima da hora para pegar o trem. Caí derreado no banco do vagão. E então, numa espécie de subdelírio da extrema fadiga, todo um poema, o mais longo que já se formou na minha cabeça, começou a fluir dentro de mim. O meu esgotamento era tal, que não tive ânimo para tomar o menor apontamento. Pensei poder recompor os versos em casa. Mal cheguei caí no sono... Quando acordei, só me restavam na memória os seis versos da oração, única estrofe regular do poema, que era no mais em verso- livre. Nunca me consolei desse desastre. (Bandeira, 1997, p. 341).

Mas uma das viagens feitas por Bandeira que deixou maior impacto em sua obra parece ter sido a ida a Belém. Em Libertinagem encontramos o poema “Belém do Pará”:

Bembelelém Viva Belém!

Belém do Pará porto moderno integrado na equatorial Beleza eterna da paisagem

Bembelelém Viva Belém!

Cidade pomar

O apedrejador de mangueiras.)

Bembelelém Viva Belém!

Belém do Pará onde as avenidas se chamam Estradas: Estrada de São Jerônimo

Estrada de Nazaré

Onde a banal Avenida Marechal Deodoro da Fonseca de [todas as cidades do Brasil

Se chama liricamente Brasileiramente

Estrada do Generalíssimo Deodoro

Bembelelém Viva Belém! Nortista gostosa Eu te quero bem. Terra da castanha Terra da borracha

Terra de bribá bacuri sapoti

Terra de fala cheia de nome indígena

Que a gente não sabe se é de fruta pé de pau ou ave de [plumagem bonita.

Nortista gostosa Eu te quero bem.

Com a fé maciça das duas maravilhosas igrejas barrocas E o renque ajoelhado de sobradinhos coloniais tão [bonitinhos

Nunca mais me esquecerei Das velas encarnadas Verdes

Azuis

Da doca de Ver-o-Peso Nunca mais

E foi pra me consolar mais tarde Que inventei esta cantiga:

Bembelelém Viva Belém! Nortista gostosa Eu te quero bem.

(Bandeira, 2008, p. 22)

Ecos dessa viagem reaparecem em “O amor, a poesia, as viagens”:

Atirei um céu aberto Na janela do meu bem: Caí na Lapa - um deserto... - Pará, capital Belém!...

(Bandeira, 2008, p. 34)

Segundo Bandeira, o poema foi escrito por ocasião de sua mudança do Curvelo para a Lapa, que, por estar deprimido o poeta, pareceu-lhe um deserto. Essa experiência frustrante, fê-lo recordar-se da viagem a Belém: “De repente me lembrei dos dez dias que passei em Belém, verdadeiro oásis de calma, de détente na minha vida” (Bandeira, 1996, p. 140).

Na correspondência com Mário de Andrade encontram-se passagens pungentes, em que a viagem é focalizada e partilhada pelos correspondentes. Aqui, por exemplo, Bandeira traça o itinerário de viagem realizada em 1927:

Estou cansado à beça, mas tenho medo se não lhe escrevo agora, de só lhe escrever de bordo do Manaus que largará do Rio sexta-feira, 7. É enfim a minha famosa viagem! O lucro que espero tirar dela são uns vinte dias de Atlântico. Mar de todos os lados. O vento batendo na empanada do convés.

Aquele ar que lava, que sara, que alegra – e que comove. Eu estava com

saudade. Deus me ajude. De resto minha prima freira está rezando por mim. Vou daqui à Bahia, paro. O tempo de arranjar o correspondente pra Agência. Depois Pernambuco. Paraíba. Natal. Fortaleza (Deus m´atirou, Deus m´a dê!). S. Luís. Belém do Pará. De volta tirarei pelo menos uns dez dias pro Recife (“Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais”). Lhe trarei pelo menos um pedaço de ninho de uirapuru. Ou então a folhinha de pica-pau. (Moraes, 2001, p. 331).

Em 1937, Bandeira publica Crônicas da província do Brasil, em que se encontram registradas impressões de suas viagens por Minas, Bahia e Pernambuco. Destaca-se “De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos estudantes”, onde dedica alguns parágrafos a analisar o olhar do viajante estrangeiro, citando, ainda, Saint-Hilaire e Burton. Para Bandeira, “os viajantes estrangeiros são quase sempre insensíveis aos elementos mais profundos ou mais sutis dos costumes e do sentimento artístico dos países que visitam” (Bandeira, 1997, p. 14). Esse texto seria reaproveitado em seu Guia de Ouro Preto, publicado no ano seguinte pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, então dirigido por Rodrigo Mello Franco de Andrade.

Em outras crônicas do livro de 1937 também encontramos reflexões de Bandeira sobre suas viagens. Sobre Recife, por exemplo, dirá: “O encanto do Recife não aparece à primeira vista. O Recife não é uma cidade oferecida e só se entrega depois de longa intimidade” (Bandeira, 1997, p. 66). Na crônica “Recife”, registra o espanto causado ao visitar a cidade natal tantos anos depois e não encontrar vestígios da “mesma cidade da minha infância” (Bandeira, 1997, p. 68). Saint-Hilaire é retomado em “O ´nosso´ Saint- Hilaire”, elogio do viajante francês atento “a todos os domínios da cultura” (Bandeira, 1997, p. 114). A viagem ao Pará é retomada rapidamente em “Fragmentos”, ao lembrar-

se de um brinquedo que se assemelhava aos “peixes que os índios do Amazonas fabricam para seus filhos e que eu tive ocasião de ver no Museu do Pará” (Bandeira, 1997, p. 117).

Passados os ânimos inaugurais do modernismo, Bandeira manteria, de todo modo, seu interesse pela viagem como experiência instigadora da escrita. Vale lembrar de “Diário de bordo”, crônica de viagem realizada nos anos 1950 e publicada em Flauta de papel. Bandeira parte do Rio de Janeiro, para na Bahia (fazendo o poeta recordar-se de uma viagem ocorrida na década de 1920), segue pelo Atlântico, contornando Cabo Verde e avistando Las Palmas (o que, mais uma vez, deflagra a memória de uma viagem anterior, dessa vez realizada em 1914), até chegar ao destino final, a Holanda, depois de contemplar a costa inglesa e de uma parada breve em Antuérpia. As impressões da viagem pela Holanda se espraiam em outras duas crônicas do livro: “Declarações de amor” e “Rembrandt”.

Londres provocou em Bandeira um de seus mais importantes poemas, “Elegia de Londres”, dedicado ao falecido amigo Jaime Ovalle, que também estivera na cidade. É um poema curioso, em que Bandeira fala de sua “angústia londrina” (Bandeira, 2008, p. 59) e confessa ao interlocutor o quanto “custa-me imaginar-te aqui” (Bandeira, 2008, p. 58):

Ovalle, irmãozinho, diz, du sein de Dieu ou tu reposes. Ainda te lembras de Londres e suas luas?

Custa-me imaginar-te aqui – Londres é troppo imensa –

Com teu impossível amor, tuas certezas e tuas ignorâncias. Tu, Santo da Ladeira e pecador da Rua Conde Laje,

Que de madrugada te perdias na Lapa e sentavas no meio-fio para chorar. Os mapas enganaram-me.

Sentiste como Mayfair parece descorrelacionado do Tâmisa?

Sentiste que para pedestre de Oxford Street é preciso ser gênio e andarilho como Rimbaud?

Ou então português

– Como o poeta Alberto de Lacerda? Ovalle, irmãozinho, como te sentiste Nesta Londres imensa e triste?

Tu que procuravas sempre o que há de Jesus em toda coisa.

Como olhaste para estas casas tão humanamente iguais, tão exasperadamente iguais?

Adoeceste alguma vez e ficaste atrás da vidraça lendo incessantemente o letreiro do outro lado da rua

– Rawplug House, Rawplug Co. Ltd., Rawling Bros. Por que bares andaste bebendo melancolia?

Alguma noite pediste perdão por todos nós às mulherzinhas de Picadilly Circus?

Foste ao British Museum e viste a virgem lápita raptada pelo centauro? Comungaste na adoração do Menino Jesus de Piero della Francesca na National Gallery?

Tomaste conhecimento da existência de Dame Edith Sitwell e seu "Trio for two cats and a trombone”?

Ovalle, irmãozinho, tu que és hoje estrela brilhante lá do alto-mar, Manda à minha angústia londrina um raio de tua quente eternidade.

(Bandeira, 2008, p. 58-59)

Sabe-se que o poeta português Alberto de Lacerda encontrou-se com Bandeira em Londres e, por sua intermediação, veio a conhecer a poeta inglesa Edith Sitwell, que, pouco antes do encontro com o poeta brasileiro, recebera a Ordem do Império Britânico.

A passagem de Bandeira por Londres inspirou um poema de Jorge de Sena, “Meditação em King´s Road”, que o poeta português declarava ser em memória à tarde passada em companhia do brasileiro, em 1957, sobre a qual o último referir-se-ia na crônica “Vi a Rainha”:

Dias depois de minha chegada à Inglaterra tive o raro prazer de estreitar nos braços, comovidamente, o Jorge de Sena. Esse engenheiro-poeta é um homem que tem a paixão da história... Mas de que é que ele não tem paixão? Música, artes plásticas, de tudo ele entende, tudo ele estuda, e, como tem uma memória de anjo, a sua conversa é repleta de sabedoria e informação. Que sorte tê-lo por cicerone em duas ocasiões: visitando a National Portrait Gallery e a Abadia de Westminster! (Bandeira, 1996, p. 578-579).

Ocupar-se-ia Bandeira, ainda, das viagens de outros poetas. É o caso da crônica “As viagens de Gonçalves Dias”, datada de 1964 e reunida no volume Andorinhas, andorinhas, na qual analisa as diversas viagens que realizou o poeta da “Canção do exílio” pelo Brasil e pela Europa, culminando com o naufrágio padecido quando retornava ao Rio da França.

Na tentativa de uma síntese do impacto da viagem sobre a composição poética em Manuel Bandeira, seria possível afirmar que a mesma se encontra frequentemente – e de forma bastante sofisticada, tanto no plano formal das estratégias estéticas como na configuração de uma poética em que viagem e memória, experiência e linguagem vinculam-se de forma notável – associada à memorialística, quando não oferece lastro empírico para futuras criações.

Com sua experiência na Europa entre 1913 e 1914 – momento de convulsão geopolítica do mundo – e a posterior visita em 1956, já encontramos representada em Bandeira certa figuração possível do viajante cosmopolita cuja encarnação máxima na década de 1920 foi, sem dúvida, Oswald – e talvez, posteriormente, Murilo Mendes. É uma figuração parcial, pois, a considerar as viagens decisivas realizadas na década heroica (como aquela rumo a Belém) o aproximam, ao mesmo tempo, de outros escritores empenhados em modelar uma imagem do artista-viajante a partir da experiência de acesso ao Brasil profundo (a viagem interna), com o resgate e a valorização de nossas tradições regionais, como ocorreu com Mário de Andrade e Raul Bopp.

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 53-60)