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Paula Almeida Mendes

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 173-188)

CITCEM – Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Resumo: Partindo da análise de várias obras, editadas em Portugal, entre os séculos XVI-XVIII, que se inscrevem no filão da literatura de viagens e da literatura de espiritualidade – desde roteiros de viagem ou relatos de peregrinações até compilações hagiográficas – este estudo tem como propósito chamar a atenção para locais que, no período em causa, eram frequentados e visitados por vários peregrinos e devotos, na medida em que em muitos deles se encontravam relíquias de santos ou estavam relacionados com a operação de milagres, procurando realçar os moldes em que se foi construindo a identidade desses lugares, que, em muitos casos, continuam ainda hoje a ser palco de concorridíssimas peregrinações.

Palavras-chave: Peregrinações; Devoção; Relíquias; Séculos XVI-XVIII.

Résumé: En partant de l'analyse de plusieurs ouvres, éditées au Portugal, entre les siècles XVI- XVIII, qui entrent dans le filon de la littérature de voyages et de la littérature de spiritualité – depuis des guides de voyage ou des rapports de pèlerinages jusqu’à des compilations hagiographiques – cette étude a pour but d’attirer l'attention sur les lieux qui, pendant cette période, ont été fréquentés et visités par de nombreux pèlerins et dévots, dans la mesure où beaucoup d'entre eux avaient des reliques des saints ou étaient liés à l'opération de miracles, en cherchant mettre en évidence la manière dont l'identité de ces lieux a été construite, qui, dans de nombreux cas, sont encore aujourd'hui le stade de très frequentées pèlerinages.

Mots-clés: Pèlerinages; Dévotion; Reliques; Siècles XVI-XVIII.

No seu estudo «Do tema da Viagem na Literatura ao subgénero Literatura de Viagens», Fernando Cristóvão apresenta uma proposta no sentido de estabelecimento de uma tipologia da literatura de viagens (Cristóvão, 1999, p. 15-52). Se quiséssemos aplicá- la ao conjunto de textos que se enquadram no âmbito desta temática, escritos em Portugal, no período compreendido entre os séculos XVI e XVIII, verificaríamos que aqueles se inscrevem nos subgéneros das viagens de peregrinação, de comércio, de expansão e viagens eruditas, de formação ou de serviço.

De entre este leque de textos, escolhemos como objeto de estudo alguns relatos sobre viagens de peregrinação, tentando, deste modo, conhecer os locais, percecionados pelos peregrinos como «sagrados» (AA, 1990), que, por aqueles tempos, eram visitados pelos mais diversos motivos: busca de curas terapêuticas, consideradas como autênticos milagres, veneração de relíquias e imagens de Cristo, da Virgem Maria ou dos Santos

«o divino». No entanto, se pretendermos esboçar um quadro informativo sobre esta temática, com um âmbito mais alargado, teremos que recolher dados em obras que se inscrevem no filão da literatura hagiográfica, que se apresentam como testemunhos importantíssimos, do ponto de vista informativo, para o investigador que se queira debruçar sobre estas problemáticas.

Com efeito, para além dos relatos sobre peregrinações ou «manuais» para o peregrino, uma grande parte da literatura portuguesa, produzida na segunda metade do século XVI e nos séculos XVII e XVIII, sobre devoções, santuários, fundação de igrejas ou ermidas, aos quais acorria um grande afluxo de fiéis, na medida em que nestes locais se conservavam relíquias ou imagens, às quais, em muitos casos, se atribuía a operação de milagres, foi produzida no contexto da Contrarreforma, que se afirmou nos tempos pós-Trento, e deve ser perspetivada no âmbito de toda uma literatura «normativa», que tem como propósitos imediatos a regulamentação e o disciplinamento56 (AA, 1994;

Palomo, 2006) da esfera social. Deste modo, estes textos funcionam não só como instrumentos de promoção e de legitimação desses lugares, tentando assim contribuir para aumentar a afluência de peregrinos, mas também de afirmação do reino português no espaço católico e europeu. Com efeito, valerá a pena lembrar que muitos destes textos foram escritos durante o período da Monarquia dual (1580-1640), tempo este em que se tentou mostrar que Portugal era, no concerto das outras nações europeias – e muito especialmente as católicas (Fernandes, 2002) – um território privilegiado e escolhido por Deus: era esta a justificação apresentada em várias obras da época para explicar o facto de, neste espaço geográfico, existir um grande número de relíquias e de imagens que, durante o período da ocupação árabe, tiveram que ser escondidas, para que, deste modo, sobrevivessem ao saque e à destruição, cuja posterior descoberta confirmava o estatuto de Portugal enquanto reino escolhido por Deus. De resto, é bem sabido como os tempos pós-Trento estimularam as peregrinações aos lugares sagrados, que garantiam o seu simbolismo e a sua identidade católica, face aos territórios protestantes.

Por outro lado, valerá a pena chamar a atenção para o facto de a prática da peregrinação «invadir» também a literatura de ficção: lembremos, a título de exemplo, as obras Las Trabajos de Persiles y Sigismunda, historia setentrional (1617), de Cervantes,

56 O conceito operativo de «disciplinamento social» foi introduzido no campo da historiografia religiosa por Gerhard Oestreich, na década de 60 do séc. XX. Definido por este autor como um conjunto de fatores políticos, sociais, religiosos e culturais, que visava a uniformização dos comportamentos e atitudes da sociedade, de molde, através do controle, a evitar conflitos que pusessem em causa a ordem social, o conceito de «disciplinamento» foi, posteriormente, objeto de

ou, no caso português, os Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, divididos em duas partes (I parte, Lisboa, 1625; Coimbra, 1665; Lisboa, 1672; Lisboa, 1707; II parte, Lisboa, 1633; Coimbra, 1671), de Gaspar Pires Rebelo, que constituem claros testemunhos do subgénero narrativo denominado como novela de aventuras peregrinas – ou novela bizantina -, que conheceu um significativo sucesso, no século XVII, especialmente em Espanha.

A prática da peregrinação conheceu um notável incremento com o advento do Cristianismo (Roussel, 1956): contudo, só a partir de 313, quando o imperador Constantino concede, pelo édito de Milão, liberdade de culto aos cristãos, «os itinerários de peregrinação tomaram relevância, até porque só a partir dessa data se construíram templos e basílicas em que o culto dos santos e das relíquias tinha um enquadramento artístico e funcional adequado» (Cristóvão, 1999, p. 39).

A descoberta dos lugares santos na Palestina, em 326, por Santa Helena, estimulou as viagens de peregrinação (Martins, 1957, p.125). O primeiro relato que conhecemos de uma viagem ao Santo Sepulcro é o de Egéria, conhecido como Itinerarium Egeriae (Egéria, 1998), que acabou por estimular a produção de outros textos sobre esta temática. O Itinerarium Egeriae apresenta-se-nos como uma descrição rica em informação, com o propósito de oferecer o seu testemunho sobre os lugares sagrados referidos na Bíblia.

Em Portugal, entre os séculos XVI e XVIII, foram produzidos os seguintes relatos de peregrinações à Terra Santa:

- Francisco Carvalho, Itinerario da jornada que o Bispo de Coimbra fez a Trento e a Palestina (…) [manuscrito];

- Inácio de Lima, Memorial da Viagem que fez de Lisboa à Casa Santa de Jerusalem no anno de 1585 [manuscrito];

- Jorge Henriques, Itinerario da Jornada que fez de Viseu a Jerusalem (…) [manuscrito];

- Fr. Nicolau Dias, Jornada da Terra Santa [manuscrito];

- Fr. Patrício de São Gonçalo, Itinerario da Terra Santa, e do Egypto [manuscrito]; - Fr. António Soares, Itinerario no qual se referem os sucessos mais raros da sua jornada, narrando as varias naçoens com que tratou assim da Europa, como da Azia (…) [manuscrito];

- Fr. Pantaleão de Aveiro, Itinerario da Terra Santa, Lisboa, 1593; Lisboa, 1596; Lisboa, 1600; Lisboa, 1685; Lisboa, 1732;

- Fr. Pedro da Porciúncula, Relação dos Santos Lugares da Terra Santa, Lisboa, 1621; Lisboa, 1642;

- Fr. Francisco de Santiago, Relação summaria e noticia dos lugares santos de Jerusalem, e dos mais, que na Terra Santa, e Palestina está de posse, e em que tem muitos conventos e hospícios a Religião dos Frades Menores, Lisboa, 1716; - Francisco Guerreiro, Itinerario da viagem, que fez a Jerusalem, Lisboa, 1734.

Apesar das particularidades específicas que cada um destes textos apresenta, todos eles reafirmam a centralidade de Jerusalém, enquanto local sagrado e mítico, convertendo-se em fontes importantíssimas que equacionam e sustentam a «transcendência» dos «vetera vestigia» (Baranda, 2001, p.7-29), percecionados como «sagrados» pelos autores, pelos peregrinos e pela grande maioria dos leitores.

No conjunto de todos os relatos referidos, um dos que nos suscita maior interesse será talvez o de Fr. Pantaleão de Aveiro – e as suas várias reedições parecem, de facto, comprová-lo: apresenta-se-nos como um guia extremamente pormenorizado, repleto de informação (na medida em que descreve cidades, portos, igrejas, mosteiros, estátuas), a que não é alheio um certo espírito crítico.

De resto, como é bem sabido, a peregrinação à Terra Santa acabou por conhecer um significativo fomento, a partir dos finais da Idade Média, graças ao papel exercido pelos franciscanos, que elaboraram um esquema do circuito de peregrinação, que através de imagens e de cerimónias procurava conduzir os fiéis ao arrependimento (Joukovsky, 1986, p.38-57). E, neste sentido, quão diferente é o discurso de pendor devoto de Fr. Pantaleão de Aveiro, se o compararmos com a prosa cética de Eça de Queirós, na sua obra A Relíquia, no que diz respeito às peregrinações à Terra Santa…

De acordo com o relato, a viagem do franciscano português durou cerca de vinte meses, tendo início a 4 de Dezembro de 1562, no porto de Malamoch, situado a duas léguas de Veneza. Era aí que começava a peregrinação, materializada na visita a vários locais religiosos, mas também a lugares sem qualquer conotação religiosa ou espiritual, como o labirinto do Minotauro, em Creta (Aveiro, 1927, p.39-40); em todo o caso, a viagem à Terra Santa constituía uma autêntica aventura, na medida em que os peregrinos

tinham que enfrentar caminhos perigosos e difíceis, onde muitas vezes eram surpreendidos por ladrões (Aveiro, 1927, p. 26-35). Depois da uma passagem por Chipre, a viagem terminou no porto de Franquia, em Itália, tendo Fr. Pantaleão de Aveiro seguido, por terra, para Nápoles, Roma e Veneza, com o propósito de aí recolher a sua bagagem, no Verão de 1564.

Ao longo da viagem, o autor cruza-se com outros peregrinos portugueses, como, por exemplo, uma judia, natural de Coimbra, Aurélio Freire, criado de D. Fulgêncio de Bragança, ou um monge jerónimo. Um olhar especial merece-nos o sugestivo caso de Mécia Pimenta (falecida na segunda metade do séc. XVI), narrado por Fr. Pantaleão de Aveiro e recuperado por Fr. Luís dos Anjos, no seu Jardim de Portugal (1626) (Anjos, 1999, p. 246-248), e por Jorge Cardoso, no seu monumental Agiologio Lusitano, cujos primeiros três volumes, da sua responsabilidade, foram editados em 1652, 1657 e 1666.

Mécia Pimenta era uma portuguesa «varonil», que «chea de zelo, & deuoção, deixada sua patria, por tres vezes, com grandes riscos de vida, foi visitar os lugares sagrados, onde Christo nosso Senhor obrou os soberanos mysterios de nossa redempção, fazendo seu caminho pela India Oriental, & dalli por terra até a sancta cidade, exposta aos excessivos rigores, & inclemências do tempo, por aquelles inabitaveis desertos». Viveu em Jerusalém durante oito ou nove anos e estava disposta a acabar ali a vida, mas foi enviada a «terra de Christãos», pelo que tornada a Portugal, apertada das saudades de aquelles sanctos lugares fes volta à India», «em cuja jornada juntou copiosas esmolas, com que tornando a Ierusalem, fez hum grande, & fortíssimo muro (…) com que cercou o sanctuario do monte Oliuete (…) & nelle deixou peças de muito valor, & preço». Da terceira vez que voltou à Índia, acabou por falecer em Alepo.

O exemplo de Mécia Pimenta mostra bem como o modelo de Santa Paula e de outras santas peregrinas, que empreenderam viagens não apenas com o intuito de conhecer os lugares santos da Palestina e venerar relíquias, mas também com o de praticar as virtudes cristãs, continua a ser ainda imitado, adquirindo assim um significado importantíssimo na moldura da Contrarreforma, pois, como é bem sabido, na sequência das diretrizes tridentinas, a veneração das relíquias e a peregrinação a locais sagrados foi reafirmada.

Mas o utilíssimo Agiologio Lusitano revela-nos outros exemplos de peregrinos portugueses, como Fr. Paulo de Santa Maria (†1565), leigo da Província da Arrábida, que,

beata Margarida Fernandes († 1540), que, já viúva, visitou Jerusalém e Roma, caminhando descalça (Cardoso, 2002, p.159-160), a «Senhora Maria», que Fr. Pantaleão de Aveiro encontrou em Assis e que visitou a Terra Santa, onde acabou por ser martirizada (Cardoso, 2002, p. 310-312), ou ainda Ana Manuel da Conceição († 1646), terceira carmelita, que, em Roma, visitou «o sepulchro dos Apostolos S. Pedro, & S. Paulo» e «depois de o fazer com muita deuoção, & piedade, & de correr as Estações d’aquella sancta Cidade», «alcançou licença do Papa Vrbano VIII para no anno de 1625 passar a Hierusalem, (…) onde chegou a saluamento com prospera viagem, & se deteue algum tempo (…), visitando frequentemente aquelles sagrados Lugares, em que Christo (…) obrou os Sacro sanctos Mysterios da humana Redempção.» Tinha decidido permanecer ali até ao fim dos seus dias, «occupada em cozer a roupa da Sacristia do S. Sepulchro, que está à conta dos Franciscanos», mas os Turcos Otomanos, que ocupavam e governavam aquele território, ordenaram que abandonassem o local. Deste modo, Ana Manuel da Conceição regressou a Roma e, dali, a Lisboa, «carregada de Reliquias» (Cardoso, 2002, Tomo III, p. 447).

Para além da larga tradição de que gozava, a peregrinação aos Lugares Santos da Palestina, palco de episódios bíblicos e, muito especialmente, da vida de Cristo, parece reflectir, durante a Época Moderna, a herança da Devotio moderna, movimento europeu de reforma espiritual que constituiu um passo crucial no sentido da afirmação de uma espiritualidade afetiva, colocando a tónica na importância da vivência interior do fenómeno religioso, que muito passou pelo especial relevo conferido ao sofrimento de Cristo (Dias, 1960; Huerga, 1969, p. 15-139; Rapp, 1971; Delumeau, & Cottret, 1996; Fernandes, 2000, p. 15-38; Carvalho, 1970, p. 47-70).

De facto, a devoção cristológica esteve na origem da fundação de vários santuários e igrejas, sob as mais diversas invocações, no reino português, que se foram afirmando como locais privilegiados de peregrinação, cuja construção da fama muito deve a uma literatura de pendor devoto que se foi produzindo e divulgando: eram textos que funcionavam, em muitos casos, como reinterpretações de um passado glorioso e nostálgico. Um dos mais famosos santuários e ao qual afluíam (e continuam a afluir) muitos devotos é o do Bom Jesus do Monte, em Braga, divulgado através de várias obras: - Fr. Bento de São Luís, Romaria ao monte santo, ou nova Jerusalem restaurada pelo arcebispo Primaz D. Rodrigo de Moura Tellez repartida em doze Estaçoens a 12 Passos de Christo que naquele lugar se venerão em 12 capellas [manuscrito];

- Domingos José Miguel, Jardim doloroso composto de 12 retratos do monte da Payxão de Christo singularmente dibuxados no monte do Bom Jesus, Lisboa, 1728;

- Manuel António Vieira, Descripção do prodigioso augusto sanctuario do Bom Jesus do Monte da cidade de Braga, antigamente nomeada de Santa Cruz, dividido em capítulos, e lições para melhor percepção, e intelligencia do seu contexto, Lisboa, 1793.

Com efeito, as reconstruções que este santuário foi sofrendo, desde a primitiva ermida quinhentista, tornaram-no um dos mais frequentados santuários cristológicos portugueses e refletem não só a ação do arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles, que ordenou a construção de infraestruturas, que funcionassem como auxílios para a viagem dos peregrinos, como também a receção da devoção ao exercício da Via Sacra, traduzida na construção de capelas e escadarias, convertendo-o, segundo João Marques, na melhor expressão artística deste fenómeno, que se estenderia a outros lugares do reino (Marques, 2000, p.558-601).

Outro santuário cristológico muito visitado ao longo da Época Moderna foi o do Senhor de Bouças, em Matosinhos, cuja fama foi divulgada pelas seguintes obras:

- António Coelho de Freitas, Tratado da Veneranda, e Prodigiosa Imagem do Senhor de Bouças de Matozinhos, em que se contem o manifesto da Procissão solemne, em que foi levada à Cidade do Porto pella necessidade das doenças, em 2 de Abril do Anno de 1696, Coimbra, 1699;

- António Cerqueira Pinto, Historia da prodigiosa Imagem de Christo Crucificado, que com o titulo do Bom Jesus de Bouças se venera no lugar de Matozinhos na Lusitania em que se referem notaveis Antiguidades deste Reyno, Lisboa, 1737.

Segundo estes textos, a imagem do Senhor de Bouças – ou do Senhor de Matosinhos, como se denomina atualmente – é uma das mais antigas da cristandade: terá sido esculpida por Nicodemos, que assistiu aos últimos momentos da vida de Cristo, sendo, portanto, considerada uma cópia fiel do seu rosto; de acordo com as fontes consultadas, aquele atirou a imagem ao mar Mediterrâneo, a qual veio dar à praia de Bouças. Graças ao grande número de milagres obrados por intercessão desta imagem, a

sua fama não parou de aumentar, tornando este local um dos mais frequentados no norte de Portugal.

Um outro local que, desde os tempos do cristianismo primitivo, se foi afirmando como um dos principais centros de peregrinação, foi Roma, a Urbs, onde os peregrinos podiam venerar os túmulos de S. Pedro e de S. Paulo, o Coliseu e vários locais onde os mártires tinham derramado o sangue em prol da sua fé.

Ainda que, a partir da Idade Média, Roma tenha começado a sofrer a concorrência de Santiago de Compostela, a Urbs não deixou de constituir uma dos mais importantes destinos de peregrinação europeus. De resto, até mesmo os guias direcionados para os viajantes e peregrinos, de que são claro exemplo os guias geralmente denominados como Mirabilia Urbis Romae, elaborados não só para os devotos, como também para os turistas curiosos, sofreram alterações nos seus moldes e conheceram, simultaneamente, um significativo incremento e diversificação (Augusto, 1999, p.89).

Se comparado com o caso espanhol (Cámara, 2007, p. 767-779), o caso português é, efetivamente, muito pobre no que diz respeito à edição de guias ou itinerários orientados para o auxílio aos viajantes ou simples curiosos.

Por sua vez, o Agiologio Lusitano dá-nos a conhecer algumas «notícias» sobre peregrinos portugueses que empreenderam viagens a Roma. Para além do já referido caso da beata Margarida Fernandes, que visitou a Terra Santa, encontramos o de Maria Pires de Morais, leiga natural de Bragança, «que (…) duas vezes foi a Roma a pè visitar os sagrados Apostolos S. Pedro, & S. Paulo, distribuindo pelos caminhos muitas esmolas, & fazendo outras obras de piedade» (Cardoso, 2002, Ob. cit. Tomo I, p.415), ou de D. Guiomar († finais do séc. XIV), natural de Lisboa, «afazendada, pia, & deuota, que (…) se foi em romaria àquela sancta cidade visitar as reliquias sagradas dos Principes dos Apostolos S. Pedro, & S. Paulo», onde «erigio hum hospital» para os peregrinos (Cardoso, 2002, Ob.cit. Tomo II, p. 109-110).

As peregrinações a Santiago de Compostela constituíram um dos principais fenómenos da Idade Média, cujos inícios, ainda que pouco claros, parecem relacionar-se com o achamento do corpo daquele apóstolo. Como já sublinhou J. V. Serrão, o incremento destas peregrinações estimulou e sedimentou a escrita de guias e de itinerários: neste sentido, «muitas cidades e vilas beneficiavam desse trajecto para elevar pequenas ermidas ou igrejas e tornar o seu culto mais conhecido dos peregrinos» (Serrão, 1974, p.14-15). Com efeito, muitos locais que constituíam ponto de passagem acabaram

por se tornar espaços de devoção quase obrigatórios para os peregrinos que percorriam esses itinerários: é o caso do mosteiro de Leça do Balio, no concelho de Matosinhos, onde se encontrava o túmulo do beato D. Garcia Martins, cavaleiro da Ordem de Malta e balio e comendador do referido mosteiro, falecido por volta de 1306, cujo «corpo foi por largo tempo, com grande frequência, & deuoção vesitado, & venerado dos fieis daqueles contornos», operando muitos milagres. Com efeito, conta-nos Jorge Cardoso que, «auendo perto de 300 annos que jazia sepultado na Sacristia do ditto Mosteiro, com publica voz, & fama de Santo, aberto o tumulo de pedra em que seu milagroso corpo descãçaua, foi achado, não só inteiro com suauissimo cheiro, mas armado caualleiro cõ o manto rosagante da Ordem. I estando alguns dias patente ao pouo, que acudio deuoto a esta maravilha, se aduertio, que nelles lhe cresceo a barba consideravelmente, & as vnhas dos pés» (Cardoso, 2002, Tomo III, p. 8).

Um número muito significativo de obras que se inscrevem na temática que temos vindo a tratar debruçam-se sobre o culto mariano em Portugal. Como já sublinhou Maria de Lurdes Rosa, a fama e o sucesso que estes santuários e igrejas conheceram deveram- se, em boa medida, ao facto de serem frequentados particularmente pelos membros da

No documento E book Literatura Viagens Turismo Cultural (páginas 173-188)