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Abu Hureyra e o surgimento do sedentarismo dos caçadores coletores,

No documento Depois do Gelo (páginas 38-43)

12300 - 10800 a.C.

O mato e as flores da estepe estão molhados de orvalho quando John Lubbock se aproxima da aldeia de Abu Hureyra. É o amanhecer de um dia de meados do verão em 11500 a.C. Sua jornada de Ain Mallaha trouxe-o das densas florestas de carvalho das colinas mediterrâneas, por campo aberto e finalmente a estepe desprovida de árvores, até o que é o hoje noroeste da Síria. Passou por várias aldeias próximas de rios e lagos, todas desconhecidas do mundo moderno. Agora para contemplar a vista — ao longe há uma planície além da qual uma linha de árvores bordeja um largo rio, o Eufrates. Além disso, apenas um vago horizonte, à luz leitosa do dia nascente.

Mais alguns minutos de caminhada fazem-no avistar a aldeia; mas é preciso olhar duas vezes. Ela se funde em seu terraço de calcário, exatamente como Ain Mallaha se fundia com a mata em volta, mais parecendo ter sido gerada pelo sol e moldada pelo vento do que construída por mãos humanas. A cada passo, os baixos e planos telhados cobertos de junco, reunidos à borda da planície aluvial, se tornam um pouco mais nítidos. Mesmo assim, a fronteira entre natureza e cultura permanece profundamente obscura.

As pessoas de Abu Hureyra dormem. Cães farejam-se uns aos outros e o chão, alguns coçando- se e outros roendo ossos. Os telhados chegam à altura da cintura, sustentados nas pequenas molduras de madeira de moradas cortadas em pedra mole. Lubbock desce numa delas e encontra um pequeno e estreito quarto circular de pouco mais de três metros de largura. Um homem e uma mulher dormem sobre peles e um colchão de capim seco; uma moça faz o mesmo numa trouxa de peles.

O piso está juncado de artefatos e lixo — não pilões e almofarizes como em Ain Mallaha, mas mós planas e côncavas. Artefatos de pedra lascada espalham-se pelo chão, junto com cestos de vime e tigelas de pedra, e até um monte de ossos de animais coberto de moscas. Uma pequena tigela contém minúsculos microlitos em meia-lua feitos de sílex, muito parecidos com os de Ain Mallaha. Num lado da morada há um monte de entulho — a parede desabou e entrou a terra do lado de fora. Paira no ar um fedor nauseante de carne podre e ar viciado.

Grande parte da vida da aldeia se passa além dessas paredes — não encerram casas como pensamos nelas hoje. Nos espaços externos há cozinhas, montes de varas, feixes de junco, folhas de casca de árvore e grupos de mós. Evidentemente, muita gente trabalha junto na preparação das plantas colhidas de hortas selvagens na estepe e na mata pantanosa à beira do rio. Lubbock curva-se

e deixa que as multicoloridas cascas, talos, galhos e folhas que cercam as pedras lhe escorram entre os dedos. São detritos, deixados exatamente onde caíram das mós ou desbastados dos feixes de plantas e flores. Perto dali há cestos e tigelas de pedra transbordando de nozes e sementes de variadas formas e cores.

Em outra parte da aldeia, ele encontra mais um conjunto de mós; mas estão cercadas por torrões de pedra vermelha e pó, em vez de cascas de sementes e galhos de plantas. As pedras de moer têm manchas vermelhas, da fabricação de pigmento usado para decorar corpos humanos. Ali perto, três gazelas foram estripadas mas ainda não esquartejadas; as carcaças são deixadas penduradas fora do alcance dos cachorros. As pessoas de Abu Hureyra dependem tanto da caça de gazelas quanto da coleta de plantas. Mas esses animais são caçados apenas durante pouco mais de algumas semanas cada verão, quando grandes bandos passam perto da aldeia.

Começa a vida diária em Hureyra. As gazelas não aparecem e os caçadores partem para vasculhar o vale do rio em busca de javalis e jumentos selvagens. Poucos animais vivem agora nos arredores da aldeia, por isso eles ficarão decepcionados. As mulheres e as crianças trabalham nas hortas selvagens, capinando, matando insetos e colhendo o que quer que haja amadurecido ao sol.

Dentro de poucos dias chegam os bandos, e começa a matança anual de gazelas. Os visitantes são bem-vindos na aldeia. Trazem reluzentes obsidianas negras do sul da Turquia como presentes e recebem em troca conchas de dentário, um dia colhidas nas margens do Mediterrâneo e trazidas por visitantes anteriores a Abu Hureyra.

Durante mais de mil anos os caçadores-coletores de Abu Hureyra continuarão a caçar gazelas. Os animais são tão numerosos que sua matança não tem impacto sobre o tamanho dos rebanhos. As mulheres e crianças continuarão a cuidar das hortas selvagens e a colher uma rica safra. O acúmulo de sujeira, areia, artefatos perdidos e outros detritos dentro das moradas se tornará insuportável ou simplesmente impedirá o acesso. E então as pessoas de Abu Hureyra construirão novas moradas, agora totalmente acima do solo. Mas os tempos difíceis acabarão por chegar. A seca do Jovem Dryas perturbará as gazelas e dizimará a produtividade da estepe. A aldeia será abandonada, e as pessoas voltarão à vida nômade.

Retornarão em 9000 a.C., não como caçadores-coletores, mas agricultores. Construirão casas de adobe e cultivarão trigo e cevada na planície aluvial. Os rebanhos de gazelas terão retomado suas migrações e serão caçadas por mais mil anos, até o povo de Abu Hureyra de repente passar para rebanhos de carneiros e cabras. As casas serão repetidas vezes reconstruídas para que se forme um monturo, ou tell [montes artificiais, formados pelo acúmulo de detritos], de meio quilômetro de largura, 8 metros de profundidade e contendo mais de um milhão de metros cúbicos de depósitos. Os restos das primeiras moradas subterrâneas de Abu Hureyra serão enterrados fundo e perdidos da memória humana.

Em 1972, o arqueólogo Andrew Moore escavou parte do tell. Como era uma Operação de resgate antes da construção da barragem, seu trabalho se limitou a duas temporadas. Hoje o tell jaz inundado sob as águas do lago Assad. Na pequena área que pôde escavar, Moore encontrou várias moradas e pontas de lixo dos mais antigos habitantes de Abu Hureyra. Não havia sinal de cemitério ou na verdade de qualquer túmulo. Isso o deixou perplexo. Que tinham eles leito com seus mortos, e teria as mesmas diferenças de riqueza evidentes em Am Mallaha?

Apesar disso, naquelas duas temporadas de trabalho adquiriu-se uma abundância de informações sobre a aldeia. Foi uma das primeiras escavações a usar métodos para assegurar a

recuperação até do mais minúsculo e frágil resto de planta. Incluíam a "flutuação", em que se fazem flutuar literalmente sementes calcinadas desprendidas do sedimento que as continha, para depois recolhê-las e prepará-las para estudo. Gordon Hillman descobriu que nada menos que 157 espécies diferentes teriam sido levadas para a aldeia, e desconfiou de que pelo menos outras 100 teriam sido colhidas mas não deixaram traços arqueológicos.

Pôde determinar pelo menos duas temporadas de coleta: da primavera ao início do verão, e no outono. Mas ele pensa que as pessoas ficavam em sua aldeia o ano todo; aonde mais teriam ido no inverno, quando as condições na estepe e montanhas em volta seriam sombrias? No alto verão, o recurso mais crucial provavelmente era a água do vale. Permanecendo em Abu Hureyra, elas poderiam desfrutar de plantas comestíveis que atingiam o auge no verão, como os tubérculos de juncos — embora não se encontrassem restos arqueológicos.

Peter Rowley-Conwy e Tony Legge, dois dos mais destacados arqueozoólogos do Reino Unido, estudaram a matança anual de gazelas. De duas toneladas de fragmentos de ossos, mostraram que apenas dois adultos, os recém-nascidos e filhotes teriam sido mortos. Isso indicava que o abate ocorrera no início do verão: só nessa época do ano essa gama específica de idades estaria presente.

Esse notável trabalho de Moore, Hillman, Rowley-Conwy, Legge e muitos outros arqueólogos mostra que os caçadores-coletores de Abu Hureyra desfrutavam das mais atraentes condições ambientais em muitos milhares de anos, desde muito antes do LGM. Em nenhuma outra época tinham os animais e plantas sido tão abundantes, diversos c previsíveis em disponibilidade — como foram para os habitantes do Natufiano nas matas mediterrâneas. Isso lhes forneceu a oportunidade de abrir mão do estilo móvel de vida que servira à sociedade humana desde seu primeiro surgimento 3,5 milhões de anos atrás na savana africana. Mas por que fazer isso?

Por que criar as tensões sociais que surgem inevitavelmente quando temos vizinhos de porta permanentes numa aldeia? Por que expor-nos a detritos e lixo humanos e aos riscos para a saúde que acompanham um estilo de vida mais sedentário? Por que arriscar o esgotamento dos animais e plantas perto de nossa aldeia?

Quase podemos ter certeza de que as pessoas não foram obrigadas a adotar esse estilo de vida por superpovoação. Os sítios natufianos não são mais abundantes que os de tempos anteriores; se houve um tempo de pressão populacional, foi em 14500 a.C. que se deu um impressionante aumento no número de sítios kebaranos e a padronização de formas microlíticas. Não há indício de aumento de população dois milênios depois, quando aparecem as primeiras aldeias natufianas. Além disso, pelos indícios de seus ossos, o povo natufiano gozava de razoável saúde — inteiramente ao contrário de povos obrigados a adotar um estilo de vida indesejável por escassez de alimentos.''

Anna Belfer-Cohen, da Universidade Hebraica de Jerusalém, estudou os indícios de esqueletos e descobriu poucos sinais de trauma, como fraturas curadas, deficiências nutritivas ou doenças infecciosas. As pessoas sob tensão tendem a criar finas linhas no esmalte dos dentes — chamadas hipoplasias. Indicam períodos de escassez de alimentos, muitas vezes imediatamente após o desmame. As linhas são menos frequentes nos dentes natufianos que nos dos povos agrícolas. Mas os dos natufianos e os dos primeiros povos agrícolas são muito gastos. Isso confirma a importância das plantas em sua dieta: quando sementes e nozes eram moídos em pilões de pedra, entrava areia na farinha ou massa resultante. E quando a comida era ingerida, essa areia lixava os dentes, muitas vezes deixando-os quase sem esmalte algum.

O povo natufiano parece ter sido inteiramente pacífico, além de saudável. Não há sinais de conflito entre grupos, como flechas enterradas em ossos humanos — ao contrário da tradição que

Lubbock encontrará em suas viagens europeias, australianas e africanas. Os grupos caçadores- coletores natufianos eram bons vizinhos; havia terra abundante, hortas e animais para todos.

É possível que os povos natufianos e abu-hureyranos estivessem dispostos a aceitar o lado negativo da vida em aldeia — as tensões sociais, os rejeitos humanos, o esgotamento de recursos — em troca dos benefícios. François Valia, escavador de Ain Mallaha, acredita que as aldeias natufianas simplesmente surgiram das reuniões sazonais do povo kebarano. Ele lembra a obra do antropólogo social Marcel Mauss, que viveu com caçadores-coletores no Ártico na virada do século XIX para XX. Mauss reconheceu que as reuniões periódicas se caracterizavam por intensa vida comunitária, festas e cerimônias religiosas, discussão intelectual e muito sexo. Em comparação, o resto do ano, quando as pessoas viviam em grupos pequenos e distantes, era meio chata.

Valia sugere que a agregação de caçadores e coletores móveis antes do natufiano pode ter sido semelhante, e o povo natufiano simplesmente teve a oportunidade de estender esses períodos de agregação até efetivamente continuarem o ano todo. Na verdade, todos os elementos-chave das aldeias natufianas já se achavam presentes em Neve David: moradas de pedra, mós, contas de dentálio, cemitérios humanos e ossos de gazelas. À medida que o clima foi-se tornando mais quente e úmido, e as plantas e animais mais diversos e abundantes, as pessoas permaneciam mais tempo e voltavam mais cedo aos sítios de agregação de inverno, até algumas permanecerem o ano todo.

Os sedentários caçadores-coletores de Ain Mallaha, Abu Hureyra e na verdade de todo o Oeste da Ásia entre 12500 e 11000 a.C. gozavam a boa vida. A abundância de indícios arqueológicos e a excelência da pesquisa nos permitem captar na mente algumas vividas imagens dessa vida. Podemos imaginar prontamente as bolotas sendo transportadas em cestos para Ain Mallaha, e depois reduzidas a uma pasta, os caçadores do lugar tendo a primeira visão das gazelas que se aproximam, e os trajes de um morto com um adereço de cabeça de conchas, colar e faixa de dentálio na perna em El-Wad, pronto para o enterro.

Mas a imagem a ser lembrada é de algumas famílias desfrutando um dia na estepe florestal — longe dos latidos dos cães, dos fedorentos montes de lixo, dos rabugentos que ficaram para trás na aldeia. Eles não buscam caça nem plantas para colher. É um dia de descanso, e eu os vejo sentados, cercados por miríades de flores estivais. As crianças fazem guirlandas e os jovens amantes esgueiram- se para dentro do mato alto. Alguns conversam, outros dormem. Todos gozam o sol. Têm a barriga cheia e nenhuma preocupação.

John Lubbock senta-se com eles, após passar alguns dias trabalhando em Abu Hureyra. Lê seu livro, descobrindo o que o xará sabia sobre a mudança do clima — muito pouco. O John Lubbock vitoriano compreendera que teriam ocorrido imensas variações no clima porque visitara cavernas cheias de ossos de rena no ensolarado sul da França, descobrira carvalhos dentro de pântanos de turfa e vira vales cortados por rios antigos. Mas em 1865 não tinha consciência da complexidade da mudança de clima, pois a ideia de múltiplas glaciações só ganhou favor no início do século XX, e acontecimentos-chave como o Jovem Dryas permaneceram desconhecidos até tempos recentes. Mesmo assim, o moderno John Lubbock se impressionou com o seu xará, sobretudo quando leu que as causas sugeridas de mudanças climáticas incluíam variação na radiação solar, alteração no eixo da Terra e mudanças nas correntes oceânicas — todas as quais foram provadas desde então e permanecem no primeiro plano do estudo científico.

Por um momento, John Lubbock esquece seu lugar na história; as borboletas, as flores, o sol e o vento são inteiramente atemporais. Mas a data é 11000 a.C., e está para ocorrer uma dramática

mudança no clima; as famílias que se sentam despreocupadas na estepe oscilam à beira de uma calamidade ambiental: está para chegar o Jovem Dryas.

Por várias gerações desde o LGM, a vida para as pessoas no oeste da Ásia vem-se tornando cada vez melhor. Altos e baixos ocorreram: anos de clima relativamente frio e seco, quando plantas comestíveis e caça foram mais difíceis de encontrar, anos em que foram particularmente abundantes. Mas a tendência foi para um clima mais quente e mais úmido, maior diversidade de plantas, maiores produções de sementes, frutas, nozes e tuberosas, maiores e mais previsíveis rebanhos de animais, e uma vida cultural e intelectual mais rica. Isso culminou na vida de aldeia que Lubbock viu em Ain Mallaha e nas margens do Eufrates. As famílias de Abu Hureyra que desfrutam o sol de verão na estepe eram sem dúvida as afortunadas, e é provável que soubessem disso. Mas não podiam saber muito bem o quanto. Pois dentro de algumas gerações a maré da mudança do clima já virará, e a vida jamais voltou a ser tão boa de novo.

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No documento Depois do Gelo (páginas 38-43)

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