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Arquitetura neolítica, enterro e tecnologia do vale do Jordão, 9600 8500 a.C.

No documento Depois do Gelo (páginas 51-56)

John Lubbock está parado na sombra da noite das colinas palestinas, olhando um grupo de pequenas moradas redondas no vale embaixo. Possuem telhados planos de palha e se misturam com abrigos de palha, não diferentes dos que ele viu em Ohalo em 20000 a.C. Mas as casas agora são completamente novas. Salgueiros, choupos e figueiras cercam a aldeia, evidentemente alimentados por uma nascente local e crescendo exuberantes no novo mundo emente e úmido do Holoceno. Mais adiante, pântanos chegam até a beira do lago Lissan — conhecido hoje como mar Morto.

Muitas árvores foram derrubadas para fornecer material de construção e criar pequenos campos para cevada e trigo. Se essas safras são biologicamente domésticas ou selvagens, parece inteiramente sem importância, uma vez que com certeza chegou o novo mundo da agricultura. A data é 9600 a.C. e John Lubbock olha para Jericó, aldeia que assinala uma virada na história do oeste asiático.

Minha primeira visão de Tell es-Sultan, a antiga Jericó, foi igualmente impressionante, mas menos pitoresca. Também eu fiquei parado à sombra das colinas palestinas, cerca de meio quilômetro a oeste do que se tornara um grande monte constituído por vários milênios de construções desmoronadas e detritos humanos, erodidos pelo sol, pelo vento e pela chuva. Muito a leste, faixas de brilhantes amarelos e deslumbrantes brancos do vale do Jordão ainda ardiam ao sol; imediatamente abaixo de mim, os prédios de blocos cinza-opaco da cidade palestina que hoje cerca o antigo sítio. Mas ali, no centro de minha visão, estava Tell es-Sultan, famosa como a "mais antiga cidade do mundo". Parecia uma pedreira antiga, ou mesmo uma zona de bombardeio.

Isso, claro, era culpa da minha profissão — os arqueólogos que começaram a cavar o monte em 1867. Poucos anos depois, o Capitão Charles Warren fora procurar as muralhas derrubadas pelas trombetas de Josué e seus israelitas, acreditando que Tell es-Sultan era a antiga Jericó bíblica. Uma equipe de estudiosos alemães o seguiu entre 1908 e 1911, e depois John Garstang, da Universidade

de Liverpool, na década de 1930. Mas foram as grandes escavações de Kathleen Kenyon, entre 1952 e 1958, que revelaram ao mundo a antiga Jericó.

Kathleen escreveu que "o oásis está quase como imaginamos o Ja rdim do Éden”. As verdes árvores e a Terra agrícola arável que cercavam a Jericó para a qual eu olhava espalhavam-se por muitos quilômetros além do belo oásis que Kathleen vira. Irrigação moderna hoje leva água de Ain es-Sultan — a nascente que deu origem à aldeia — a campos distantes no vale. Assim, usei a imaginação para abater aquelas árvores distantes e plantei muito mais palmeiras em torno do monte. Demoli as construções de concreto e blocos pré-moldados e plantei campos de maiz no lugar. Depois armei um conjunto de tendas brancas que Kathleen usara no pé do monte. Uma vez erigidas, eu via um rio de trabalhadores deixando o monte ao fim do dia de trabalho, os arqueólogos e estudantes instalando-se para o chá, antes de começar a classificar as descobertas.

Esse foi o dia em que eles tiveram a primeira sugestão da mais antiga construção dentro do monturo. A cidade da Era do Bronze e a de prédios retangulares do Neolítico Tardio já eram bem conhecidas. Mas nesse dia, que eu sabia ter sido em algum momento em 1956, "ficou claro", Kathleen escreveria depois, "que estávamos penetrando numa diferente fase abaixo... os pisos eram de terra, não de gesso... as paredes eram curvas e as plantas das casas pareciam ser redondas".

Sabemos que grupos de pessoas natufianas acamparam junto à nascente, porque ali se encontraram espalhados seus instrumentos em forma de meia-lua. Com toda probabilidade plantaram cereais, ervilhas, lentilhas, e conseguiram uma magra colheita antes de partirem para viver em outra parte no vale ou nas colinas.

Por volta de 9600 a.C., as secas de verão chegaram ao fim. Novas chuvas alimentaram os rios que se precipitaram pelas colinas palestinas; o Jordão começou a inchar. Grossas camadas de fértil solo foram depositadas em todo o vale do rio por novas enchentes anuais, e aguadas pela nascente que jorrava com recém-descoberto vigor. As safras cultivadas floresceram, muito provavelmente substituindo as plantas selvagens não cuidadas como principais fornecedoras de alimentos. Os natufianos tardios estenderam a duração de sua estada, até que a história se repetiu e a vida sedentária da aldeia renasceu longe das matas mediterrâneas preferidas pelos natufianos iniciais. E assim foi fundada Jericó, e com ela sua gente se tornou camponesa.

As pessoas continuaram a viver em Jericó até hoje. A primeira aldeia foi sepultada sob casas, armazéns e santuários construídos por sucessivas gerações, as que usaram cerâmica, bronze, e depois entraram nos anais da história do Velho Testamento. E assim um gigantesco monturo foi criado pela nascente de Ain es-Sultan, de 250 metros de comprimento e mais de 10 de altura. Consistia de paredes de adobe desmoronadas e camada sobre camada de pisos de casas e lixeiras; mas, além de detritos humanos, o monturo continha os bens perdidos e os túmulos ocultos de 10 mil anos de história humana.

Kathleen Kenyon (1906-1978) chegou a Jericó querendo aplicar o que para ela eram técnicas moderníssimas de escavação. Como Dorothy Garrod, que descobrira o natufiano, Kathleen foi uma das grandes arqueólogas britânicas do século XX. As duas venceram no que era em essência um mundo masculino, a primeira estudando em Oxford na década de 1920 e depois dirigindo escavações na Inglaterra e na África. Atuou como diretora do Instituto de Arqueologia do University College, em Londres, durante a guerra, e acabou por tornar-se diretora do St. Hugh's College, em Oxford.

Recebeu muitas honrarias, que culminaram com a concessão do título de Dama do Império Britânico em 1973.

Seu objetivo em 1952 era explorar mais as fases finais da antiga cidade, aquelas relacionadas com a história bíblica, e descobrir os primeiros restos, que julgava mais importantes e merecedores de "completa exploração". Tinha toda razão. Isso se tornou evidente para o mundo em 1957, quando ela publicou uma história popular de seu trabalho, Digging Up Jericho [Desenterrando Jericó]. Os acadêmicos, porém, tiveram de esperar até o início da década de 1980 para que saíssem os volumes adequadamente enormes descrevendo a arquitetura, a cerâmica e a sequência-chave de camadas dentro do monte. Infelizmente, Kathleen havia morrido alguns anos antes de sua publicação.

John Lubbock está agora dentro da aldeia, ajudando a construir uma casa de adobe. Há muita obra de construção em andamento, pois os abrigos de sapé são aos poucos substituídos por construções mais perenes. Com as certas chuvas de verão, safras produtivas e abundante caça selvagem dentro do vale, o povo de Jericó não precisa partir. Sempre que eles preferem passar várias semanas ou meses fora, visitando amigos e parentes ou cm longas expedições de caça ou comércio, sabem que voltarão a Jericó. E assim estão dispostos a investir tempo e energia na construção de casas de adobe c abrir campos. Uma vez construídas umas poucas casas, Jericó atraiu novos moradores dispostos a deixar seus grupos de caçadores-coletores e juntar-se ao novo estilo de vida de cultivar safras.

Lubbock passou essa manhã cavando barro do fundo do vale e carregando-o num trenó de madeira para a aldeia; ali, o barro é misturado com palha e cortado em tijolos oblongos que são deixados a secar ao sol. Serão unidos com uma argamassa de lama para fazer as paredes das moradas redondas, cada uma com cerca de 5 metros de diâmetro e pisos rebaixados. As paredes superiores serão feitas de varas e galhos, o piso de junco besuntado de barro.

Nessa noite, depois de se banhar na fonte, Lubbock anda pela aldeia e conta nada menos que cinquenta moradas — algumas dispostas em torno de pátios para uso de grandes famílias, outras sós ou em grupos isolados. Há fogueiras dentro e fora, e um denso véu de fumaça paira entre os becos. As pessoas sentam-se em pátios, algumas trançando tapetes e cestos, outras trocando noticias e fazendo planos para o dia seguinte. Em 9600 a.C., provavelmente quinhentas pessoas moram em Jericó —talvez a primeira vez na história humana em que uma população completamente viável viveu no mesmo lugar ao mesmo tempo

Dentro de 500 anos, Jericó já se tornara ainda maior, com mais de setenta mora dias, talvez com uma população de mil habitantes. Uma parte bem maior da mala em redor foi aberta e grandes áreas se achavam em cultivo. Muitas das moradias originais já haviam desabado ou sido deliberadamente derrubadas para construírem-se outras sobre suas ruínas. Mas a diferença mais impressionante em relação à aldeia era que seu lado oeste, de frente para as colinas palestinas, fora fechado por uma enorme muralha de pedra e erguera-se uma grande torre circular do lado de dentro.

Kathleen Kenyon descobriu essas construções durante suas escavações em 1956. Parece improvável que a muralha, de 3,6 metros de altura e 1,8 de largura na base, tenha cercado toda a cidade, pois nenhum vestígio dela se encontrou no lado leste. Dentro desse muro ela descobriu os restos da torre, de 8 metros de altura e 9 de diâmetro na base, com um peso estimado de mil toneladas. Uma escada interna, com 22 degraus de pedra, conduzia ao topo. Tal arquitetura era

inteiramente sem precedentes na história humana, e é a mais notável das descobertas de Kathleen — seriam necessários pelo menos 100 homens, trabalhando durante 100 dias, para construir a muralha e a torre. Como ela própria sugeriu, "em concepção e construção, essa torre não faria vergonha diante de um dos mais grandiosos castelos medievais". A muralha e a torre permanecem inteiramente únicos para esse período.

Kathleen supôs que foram construídos para defender a cidade de ataque, uma conclusão aparentemente incontestável, em vista das ligações bíblicas de Jericó. Só em 1986 Ofer Bar-Yosef fez algumas perguntas óbvias: quem eram os inimigos de Jericó? Por que a muralha não foi reconstruída depois de ser sepultada por detritos de casas após não mais que 200 anos? Por que não há outros locais fortificados da mesma data no oeste asiático?

Bar-Yosef concluiu que as muralhas eram para defesa, mas não contra um exército invasor— o inimigo era a água e a lama das enchentes. Jericó vivia em perpétuo perigo quando a chuva aumentava e o desflorestamento desestabilizava sedimentos nas colinas palestinas, que podiam então ser carregados para a borda da aldeia pelos wadis próximos. Quando o lixo da aldeia sepultou as muralhas, o nível de assentamento já tinha literalmente se elevado pelo acúmulo de casas desmoronadas e lixo humano. Isso afastou as ameaças da água e lama das enchentes. Simplesmente não se precisava mais de uma muralha.

Ofer Bar-Yosef descartou a ideia de que a torre se destinava a fortificação. Ficou impressionado com sua ótima conservação, e sugeriu que isso pode ter sido ajudado pela presença de uma plataforma de adobe em cima da construção de pedra. A própria Kathleen encontrou, ligadas ao lado norte da muralha, vestígios de construções que julgou que poderiam ter sido usadas para armazenar grãos. Em vista disso, Bar-Yosef sugeriu que a torre era de propriedade pública ou estava a serviço da comunidade, talvez como um centro de cerimônias anuais. Não parece provável que algum dia se encontre uma resposta definitiva — embora mais escavações nas vizinhanças da torre certamente ajudassem. O que é claro é que, com a construção da muralha e da torre, as pessoas criavam arquitetura e atividade comunal em escala inteiramente nova. Começara uma nova fase da história humana.

Em fins da década de 1950, assentamentos de aldeias semelhantes na Europa — embora muito mais novos em idade —já haviam sido descritos como neolíticos. Na década de 1920, Gordon Childe, o principal arqueólogo do período pré-guerra, cunhara a expressão "Revolução Neolítica" para referir- se ao súbito aparecimento de assentamentos do que, ele acreditava, refletia uma completa mudança de maré no estilo de vida. Isso não apenas envolvia agricultura, mas arquitetura, cerâmica e machados de pedra polida. Childe pensa que isso formava um "pacote neolítico", sempre adquirido como um todo único, indivisível.

Kathleen Kenyon descobriu que ele estava errado. Embora as casas, túmulos e estilo de vida deles em geral se encaixassem bem no molde neolítico, os primeiros aldeões em Jericó não dispunham de um dos elementos cruciais do pacote neolítico: a cerâmica. As poucas tigelas, vasos, pratos ou copos que sobreviveram eram feitos de pedra; é provável que muitos mais tenham sido feitos de madeira ou fibras vegetais. E assim Kathleen cunhou um novo termo para a cultura inicial de Jericó: o Neolítico Pré-Cerâmica (PPN na sigla em inglês). Na verdade, designou a primeira aldeia em Jericó como pertencente ao "Neolítico Pré-Cerâmica A" — um período que hoje se sabe não durou mais de mil anos após o início do Holoceno.

Aqueles que viveram na aldeia "PPNA" de Jerico, viveram literalmente com os mortos. Kathleen descobriu nada menos que 276 túmulos, embora escavasse apenas 10% do assentamento. Estavam todos associados às construções, de uma forma ou de outra; ficavam embaixo do piso, sob a estrutura das casas, entre paredes e dentro da torre. Continuava a tradição-chave de enterro do Natufiano Tardio: as pessoas tendiam mais a ser enterradas sós que em grupos; muito poucos artefatos, quando tinha algum, eram enterrados com os mortos.

Após os enterros, e muito provavelmente quando toda a carne já se havia decomposto, cavavam-se frequentemente covas para tirar os crânios, muitos dos quais eram depois reenterrados em outro lugar dentro da aldeia. Uma coleção de cinco crânios de bebês foi colocada dentro de uma cova abaixo do que Kathleen julgava fosse um altar. Mas a maioria das crianças e bebês, que representavam 40% dos enterros, foi deixada intacta — eram principalmente os crânios dos adultos os removidos para exposição e eventual reenterro.

Por que havia tal interesse pelos crânios? Era um interesse que se tornaria muitíssimo elaborado à medida que a aldeia de Jericó se tornava uma cidadezinha, levando à cobertura dos crânios com máscaras de gesso e olhos de conchas de caurim. Kathleen pensou que houvera um culto aos ancestrais e estabeleceu uma comparação com o povo do rio Sepik na Nova Guiné, que em tempos recentes usava os crânios de venerados ancestrais em seus rituais. Mas jamais vamos saber exatamente por que as pessoas de Jericó — e na verdade de todo o oeste asiático e além — exumavam e reenterravam crânios humanos, talvez após um período de exposição.

Como acontecia com essas práticas funerárias, os instrumentos usados pelos aldeões de Jericó eram muito semelhantes aos do Natufiano Tardio, embora tenham algumas grandes inovações tecnológicas. A mais impressionante foi o uso de adobe para construção — trabalho de muita mão-de- obra que demonstrava o compromisso com a vida da aldeia. Contudo, muitos dos artefatos de pedra continuaram em grande parte sem mudança. Ainda se faziam microlitos, assim como uma gama de lâminas, raspadores e foices. Machados e enxós de pedra, o que não surpreende, foram encontrados em número muito maior que antes. Eram usados para derrubar a vegetação para os campos. Esse desmatamento pode ter contribuído para a erosão do solo, aumentando a necessidade de uma muralha defensiva. Um artigo, porém, merece especial atenção: um novo tipo de ponta de flecha, conhecida pelos arqueólogos como ponta "el-Khiam". Era de forma triangular, com duas ranhuras laterais usadas para prender ao cabo, e batizada com o nome do sítio onde foram descobertos os primeiros espécimes.

Assim como os microlitos geométricos e lunares tinham vindo e passado de moda, o mesmo aconteceu com as pontas el-Khiam. Elas atingiram o auge da popularidade por volta de 9000 a.C., quando aparecem quase simultaneamente em todas as regiões ocidentais e centrais do Crescente Fértil. Como tal, não esta claro onde se originou o novo desenho, ou por que se tornou tão largamente adotado por toda essa vasta região. Muitas têm desenho aerodinâmico, e bem podem ter levado a uma substancial melhora na eficiência da caça. Mas nova pesquisa, empregando estudo microscópico, mostrou que um grande número dessas pontas foi usado mais como sovelas e puas que como pontas de projéteis, como se supunha tradicionalmente.

As gazelas continuaram a ser o alvo principal dos caçadores. Mas com a disseminação da mata, passou-se a ter uma gama maior de animais como presa — daí os ossos de gamos e javalis junto aos das gazelas e íbis dentro dos monturos de Jericó. Raposas e pássaros, sobretudo aves de rapina, também se tornaram predominantes. É improvável que tenham sido caçados como comida: pele de raposa, garras, elegantes penas de asas e caudas podem ter sido artigos cruciais de adorno

do corpo. Podem ter feito parte das redes de comércio que se desenvolvia rapidamente no vale do Jordão e além. Pois Jericó não estava sozinha nesse novo mundo neolítico.

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No documento Depois do Gelo (páginas 51-56)

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