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Testemunho dentário, linguístico, genético e esquelético para o povoamento das Américas

No documento Depois do Gelo (páginas 197-200)

Enquanto Lubbock viaja até Monte Verde, no sul do Chile, precisamos reconstituir outros fatos na busca dos primeiros americanos. Em fins da década de 1970, começou uma mudança fundamental no estudo do passado americano: não era mais possível confiar apenas no testemunho arqueológico. Os linguistas e geneticistas que estudavam americanos nativos vivos também se tornaram pré- historiadores e passaram a perguntar quando chegaram os primeiros americanos, e de onde eles vieram. E o mesmo fizeram os dentistas.

A ideia de uma "pré-história dentária" talvez pareça bizarra, mas seu estudo é muito informativo. Os dentes humanos variam cm forma e tamanho; os incisivos têm uma forma particular de arestas e ranhuras; o número de raízes de cada molar pode variar, como ocorre com o número de cúspides. Esses traços são fortemente determinados por nossos genes e evoluem muito devagar — portanto, duas pessoas com padrões dentários semelhantes têm chance de ser estreitamente relacionadas.

Christy G. Turner II, antropólogo da Universidade do Estado do Arizona, tornou-se um pré- historiador dentário há mais de 20 anos, coletando informação sobre os dentes de americanos nativos, e comparando-os com os dentes de pessoas de todo o Velho Mundo. Em 1994, já medira mais de 15 mil grupos de dentes. Em cada grupo, 29 características diferentes, como o comprimento das raízes e a forma das coroas. A maioria dos dentes pertencera a americanos nativos antes do contato europeu e viera de túmulos pré-históricos. Fato importante, pois todos os genes que chegavam ao depósito de genes americanos resultantes de cruzamento com europeus, ou em uma data posterior com africanos, poderiam haver influenciado os padrões dentários que ele estudou.

A pergunta feita por Turner era simples: em que parte do Velho Mundo encontramos pessoas com padrões dentários mais semelhantes aos de americanos nativos? Embora dependesse de complexos métodos estatísticos, a resposta em si foi direta: no norte da Ásia, e mais em particular no norte da China, na Mongólia e na Sibéria oriental. Essas pessoas partilham um tão grande padrão dentário com americanos nativos que Turner as chamou de "sinodontos", contrastando-os com pessoas de outras partes da Ásia, África e Europa, todos os quais batizados por ele como "sundadontos". Assim, confiou em que o norte da Ásia foi a terra original dos americanos nativos.

Também se apresentaram diferenças na dentição dos próprios sinodontos norte-americanos. Turner identificou três grupos distintos que, sugeriu, se relacionavam com três diferentes ocorrências migratórias, começando por volta de 12000 a.C. — ideia que realmente deitou raízes quando se acrescentaram indícios de línguas americanas nativas.

Por mais de duas centenas de anos, linguistas vinham tentando reconstituir a história de contatos entre comunidades humanas e seus padrões de migração. Procuraram semelhanças e diferenças entre línguas, tentando agrupá-las em famílias e depois traçar padrões de descendência — de forma muito semelhante a como os biólogos tentam classificar espécies animais em famílias e buscar relações evolucionárias. Esse trabalho deveria, idealmente, combinar-se com o estudo arqueológico — como vimos Colin Renfrew tentar fazer, relacionando a disseminação das línguas indo-europeias com a dos agricultores neolíticos em toda a Europa.

O potencial de uma pré-história linguística do Novo Mundo é considerável, devido a seu grande número de línguas. Mais de mil anos foram registradas desde a época do contato europeu, e seiscentas delas continuam sendo faladas hoje. Tentativas de classificá-las em famílias c depois reconstituir suas origens começaram há mais de 300 anos. Em 1794, Thomas Jefferson escreveu: “Esforço-me para colecionar todos os vocabulários que posso, tanto de índios americanos quanto os da Ásia, convencido de que, seja tiveram um parentesco comum, este vai aparecer em suas línguas”.

Desde a década de 1960, essas tentativas giraram em torno de argumentos apresentados pelo linguista Joseph Greenberg, da Universidade de Stanford. Em fins da década de 1950, Greenberg desviou a atenção da classificação de línguas africanas, nas quais construíra sua reputação, para as americanas nativas. Em meados da década de 1980, concluiu que podia agrupar estas em três: esquimó-aleúte, consistindo de dez línguas e restrita à região ártica da América do Norte; na-dene, com 38 línguas encontradas sobretudo no extremo noroeste da América, incluindo os grupos americanos nativos, como os tlinguites e os haidas; e, polemicamente, os ameríndios, que incluíam todas as línguas da América do Norte, Central e do Sul.

Greenberg chegou a essa classificação procurando semelhanças nos sons e significados dos vocabulários básicos de cada língua que estudou, como nas palavras que dão nome a partes do corpo. Afirmou que cada uma das famílias de língua derivava de uma migração de povos para as Américas. A primeira foi de um povo que falava "proto-ameríndio" — sendo o prefixo "proto" a forma convencional de referir-se a uma língua que não mais existe, mas foi a origem da qual divergiram línguas existentes. Greenberg observou que esse primeiro evento migratório ocorreu cerca de 11500 a.C., e é representado arqueologicamente pela cultura Clovis. As origens do povo permanecem não esclarecidas; dizia-se que o "proto-ameríndio" tinha semelhanças com línguas encontradas extensamente dispersas em toda a Europa e a Ásia (descrita pelos linguistas como o "complexo eurasiático"), e portanto surgira numa época antes que as famílias de língua se tivessem estabelecido.

A chegada seguinte, que ocorreu cerca de 10000 a.C., foi de um povo que falava proto-na-dene e é representado arqueologicamente por novos tipos de instrumentos de pedra, aos quais os arqueólogos se referem como cultura Denali: a que Cinq-Mars escavou nas Cavernas Bluefish em 1978. Greenberg achava que sua origem fora na Indochina. Depois, após mais ou menos 500 anos, veio a migração final. Essas pessoas falavam proto-esquimó-aleúte, e acreditava se que se tinham originado no norte da Ásia.

A ideia dessa colonização em três eventos foi publicada em fins da década de 1980, e saudada com aplausos por alguns acadêmicos e desespero por outros. O mais importante artigo surgiu no jornal Current Anthropology em 1986, no qual Greenberg colaborou com Turner e um colega dele, Stephen Zegura, que vinha estudando padrões na distribuição de genes específicos entre os americanos nativos.

Greenberg e seus colaboradores apresentaram uma hipótese poderosa. Propunham que os americanos nativos em cada língua também compartilhavam padrões específicos nos genes e na anatomia dentária. Em outras palavras, três linhas de testemunhos independentes convergiam para dar consistência à afirmação de três migrações discretas para as Américas, com a primeira relacionada ao surgimento da cultura Clovis. Encontrar tal convergência de testemunhos a partir de diversas fontes é a aspiração de todos os que querem estabelecer a verdade sobre a colonização americana. Mas muitos acharam que era simplesmente bom demais para ser verdade.

Ives Goddard, do Instituto Smithsonian, e Lyle Campbell, da Universidade da Louisiana, são dois críticos veementes. Afirmam que as supostas correlações anatômico-genético-linguísticas não existem — um exame mais atento dos dados mostra uma disparidade nas distribuições, fato hoje reconhecido por Greenberg e seus colaboradores.

Os dois críticos se preocuparam em especial, porém, com um problema muito mais fundamental: a classificação das línguas dos americanos nativos de Greenberg estava errada. Os métodos empregados pouco mais fizeram que comparações de palavras e peças de gramática semelhantes; não se dera atenção alguma ao estudo de todas as línguas, e como elas mudam ao longo do tempo — um campo de estudo conhecido como linguística histórica. As línguas se espalham, mudam e tornam-se extintas de forma inteiramente independente dos genes ou da forma dos dentes; é um absurdo procurar correlações entre eles sem levar em conta a grande quantidade de casamentos endogâmicos, escravidão, migrações internas e guerra que se sabe tiverem ocorrido durante a história americana nativa, quanto mais antes do contato europeu.

Escrevendo em 1994, Goddard e Campbell não sabiam de nenhum especialista individual trabalhando na história americana nativa que julgasse a família ameríndia digna de alguma validade. A incoerência disso foi claramente demonstrada quando revelaram que, seguindo os métodos de Greenberg, o finlandês tinha de ser incluído como membro. Na opinião deles, Greenberg apenas cotejou coincidências linguísticas e depois interpretou-as erroneamente como derivações pré- históricas.

Esse debate não é o único no estudo linguístico dos americanos nativos. Em 1990, Johanna Nichols, linguista da Universidade da Califórnia em Berkeley, afirmou que o grande número de línguas no Novo Mundo — o "fato linguístico", como o chamou — torna "absolutamente inequívoco" que o Novo Mundo tem sido habitado há dezenas de milênios, pelo menos 35 mil anos — uma data que teria deixado Niède Guidon, que escavava Pedra Furada em 1990, na verdade muito feliz.

Johanna deduziu que o número de línguas em qualquer região aumenta aos poucos, ao longo do tempo, num ritmo muito constante. Optou pelo termo "tronco" para referir-se à língua original da qual surgiram várias famílias de língua existentes. Na Eurásia, por exemplo, o indo-europeu é o tronco do qual surgiram famílias de língua como a germânica, celta e balto-eslavo. Estas poderiam então funcionar como troncos para novas famílias de língua. Os troncos, afirmou Johanna, deram origem a uma média de 1,6 ramo de troncos/famílias a cada 5-8 mil anos. Salientou que as 140 línguas básicas que ela reconhece no ameríndio teriam exigido cerca de 50 mil anos para derivarem da língua original falada pelas primeiras pessoas nas Américas. Johanna modera essa cifra para apenas 35 mil anos atrás, a fim de permitir mais de um evento de colonização, e portanto mais de um tronco original.

Quando Daniel Nettle — linguista de Oxford — examinou exatamente as mesmas datas que Johanna Nichols, chegou a uma conclusão bastante diferente. Para ele, o grande número de línguas americanas nativas deve ser um sinal de colonização relativamente recente, sem probabilidade de

ter ocorrido antes de 11500 a.C. Nettle afirmou que a proporção para o surgimento de novas línguas apresentada por Johanna é inteiramente infundada; e também questionou toda a premissa de que as línguas até mesmo proliferam dessa maneira. Uma nova língua acaba surgindo, afirmou, apenas em consequência de algum acontecimento em particular, frequentemente o movimento de um grupo de pessoas para uma nova área, sobretudo uma que exige adaptação de seus estilos de vida a um novo grupo de recursos.

Segundo Nettle, a colonização de um novo continente logo levaria a uma proliferação de línguas, quando as comunidades se espalhassem e dividissem em novos "nichos" — áreas com sua particular variedade de recursos. Em cada “nicho” os colonizadores começariam um estilo de vida distinto, como caçadores, pescadores, agricultores ou criadores de rebanhos, desenvolvendo seus próprios vocabulários novos, e, por fim, línguas. Todos os nichos existentes acabariam ficando cheios de gente, e em consequência haveria uma redução e, por fim, o término do surgimento de novas línguas. E depois, enfatizou Nettle, o número de línguas começaria a cair; alguns grupos ficariam mais poderosos e iluminariam outros, enquanto o desenvolvimento do comércio exigiria a partilha de palavras e um determinado grau de convergência linguística.

À medida que as populações se fossem expandindo mais e tornando-se m u i t o apinhadas, haveria uma redução ainda maior no número de línguas presente. Esse processo é prontamente visível no mundo atual, onde se espera que o número existente de línguas, cerca de 6 mil 500, chegue à metade nos próximos 100 anos, em consequência da globalização. E assim Nettle concluiu que a alta diversidade linguística do Novo Mundo indicava uma colonização recente, opinião compatível com o cenário do Clovis Primeiro. Uma conclusão exatamente oposta à chegada por Johanna Nichols.

Como poderiam ela e Daniel Nettle ter chegado a tão diferentes conclusões? Um dos motivos é que abordam o estudo de línguas a partir de perspectivas muito diferentes. À diferença de Johanna Nichols, Daniel Nettle é antropólogo por formação; preocupa-se basicamente com a maneira como as pessoas usam a língua para manter relações sociais, e como os fatores econômicos e ecológicos influenciam a distribuição e o número de línguas num continente específico. Linguistas como Johanna, porém, têm apenas um interesse secundário por essas questões, e veem as línguas como entidades em evolução, com uma dinâmica bastante independente de seu contexto social, econômico e ambiental.

Com todas essas afirmações contraditórias sobre colonização americana, os linguistas parecem estar no mesmo barco que os arqueólogos — incapazes de concordar uns com os outros até mesmo nos fatos mais básicos. Aqueles entre nós que não têm especialização linguística são deixados num dilema sobre em quê acreditar. Minha tendência é mais para o método antropológico de Nettle e a conclusão meio deprimente de Goddard e Campbell: que a extensão de conhecimen t o confiável sobre a história linguística dos índios americanos, por ser tão incompleta, é compatível com uma ampla variedade de cenários para a povoação das Américas. Lá se vão os linguistas. Estão os geneticistas se saindo melhor?

Já vimos como os arqueólogos podem usar a genética de pessoas vivas ao examinarem se a disseminação da agricultura pela Europa surgiu da migração de camponeses com ancestralidade do oeste da Ásia ou a partir da adoção indígena da cultura neolítica. A mesma técnica de busca de padrões específicos de mutação genética, sobretudo no DNA mitocondrial, foi usada para determinar quando as pessoas chegaram pela primeira vez às Américas, e de onde vieram.

No documento Depois do Gelo (páginas 197-200)

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