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afirma que o termo que melhor explica o que Ricoeur quer dizer seria “enredo” 163 Ricoeur (2010, p.99)

164 Ricoeur (2010, p.100) 165 Ricoeur (2010, p.100) 166 Ricoeur (2010, p.100)

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A configuração é a segunda mimesis proposta por Ricoeur. Ela

Nota de rodapé continua na próxima página

fazer a mediação entre acontecimentos ou incidentes individuais e uma história tomada como um todo, ou seja, o enredo tira uma história sensata de uma diversidade de acontecimentos e incidentes, ou transforma os acontecimentos e incidentes em uma história. Esse tira e esse transforma mostram o aspecto mediador da composição do enredo; por isso, o resultado dessa mediação é a exposição da história numa certa ordem explicativa escolhida pelo narrador168. A

narrativa tem a cara do narrador.

Antes de contar a história, o narrador tem de entendê-la: “Entender a história é entender como e por que os sucessivos episódios conduziram a essa conclusão”. Não que o fim fosse previsível, mas ele deve ser “aceitável, como sendo congruente com os episódios reunidos”169. Claro que os entendimentos podem ser

muitos, de acordo com quem conta, por isso, contar uma história é um trabalho de reorientação da atenção histórica170.

Ao ver para onde reorientávamos a história nos escritos dos cadernos, podíamos ver para onde orientávamos nossa identidade, mesmo que isso não fosse definitivo, mas havia um “projeto de si para si” e um “projeto de si para o outro” e, por conseguinte, uma tensão identitária.171 Essa tensão significa que o tempo todo

negociávamos uma “identidade coletiva”172 para o trio, e pode ser que não

tenhamos chegado a um acordo. Em certo sentido, com o passar das histórias, nós comungávamos uma identidade coletiva. Não que abaixássemos a cabeça e rezássemos o credo de uma identidade dada. Não. Mas olhávamos uns aos outros e comungávamos a continuidade das histórias, contávamo-nos. Por isso, conto aqui !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! pode ser traduzida por trabalho estético; dá-se pela relação entre escritor e obra, mais especificamente, é o trabalho de configuração estética empreendida pelo autor no tratamento dado ao material colhido na pré-figuração. O texto ganha, na configuração, autonomia em relação ao autor e ao contexto, visto que ela constrói um todo heterogêneo que tem por referência o mundo mimetizado, mas que, por outro lado, se distancia dele pela inovação metafórica. Nesse sentido, toda narrativa é uma concordância discordante: “Concordância no sentido da referenciação e discordância no sentido da transformação da linguagem, da inscrição direta do discurso na littera” (PAULA, 2012, p.243-244).

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Ao construir o enredo, o narrador “compõe juntos fatores tão heterogêneos como agentes,

objetivos, meios, interações, circunstâncias, resultados inesperados [...] os incidentes dignos de

piedade e atemorizantes, as peripécias, os reconhecimentos e os efeitos violentos” (RICOEUR,

2010, p.114-115).

169 Ricoeur (2010, p.117) 170 Ricoeur (2010) 171 Kaddouri (2009, p25-27) 172 Ricoeur (2010)

sobre nós, sobretudo quando dou a ver os escritos dos cadernos, dou a ver como negociávamos nossas identidades, dou a ver como as narrativas contadas nos cadernos reorientavam a história das aulas, dou a ver como cada um explicava os acontecidos.

– Poxa, adorei essa de explicar com uma história! Quer dizer que há uma relação causa-efeito dentro delas, assim como para toda ação há uma reação. Agora, sim, hein, estou vendo ciência nessas suas historinhas.

– Você, hein! Relação causal, efeito e causa, isso serve para fenômenos da natureza, não para relações humanas. Ao contar, estamos lidando com relações humanas e, como bem observou Dilthey, nossa relação com a realidade humana é consideravelmente diferente de nossa relação com a natureza. “A realidade humana, tal como aparece no mundo histórico-social, é tal que podemos compreendê-la de dentro, porque podemos representá-la sobre o fundamento dos nossos próprios estados.”173 Por outro lado, a natureza é “muda e permanece

sempre como algo de externo”. Portanto, nas ciências que têm por objeto a realidade humana, “o sujeito não se encontra diante de uma realidade estranha, mas diante de si mesmo, porque homem é quem indaga e homem é que é indagado”. Assim, a compreensão “é a descoberta do eu no tu”.174

Como descoberta do eu no tu, “toda a narrativa pressupõe da parte do narrador e de seu auditório uma familiaridade”175, pois lida com relações humanas

que são diferentes de nossa relação com a natureza. Por isso não chamo os estagiários de sujeitos, de elementos, de depoentes, de objetos de pesquisa!

Nas histórias que contamos, embora uma ordem explicativa fosse estabelecida ao encadear os acontecimentos, não há uma busca ou enunciação de uma lei imutável para os acontecimentos. Em contraposição a isso, há uma compreensão do vivido: contar é compreender a si mesmo, compreender o outro, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

173

Dilthey (apud ABBAGNANO, 2007, p.184-185). E, mais adiante, ele afirma:

O caráter necessário da gênese causal, na medida em que se conforma a uma “lei imutável”, e o caráter de uniformidade mecânica que os eventos causalmente explicáveis assumem por efeito de tal lei tornam bastante difícil transferir esse tipo de explicação para o mundo do homem, assim como tornam difícil explicar os fatos históricos e, em geral, qualquer fato que consista em uma relação com o homem. (ABBAGNANO (2007, p.184-187).

174 Abbagnano (2007, p.186-187) 175 Ricoeur (2010, p.98)

compreender a vida. Embora seja possível reconhecer uma ordem explicativa dentro da narrativa, prefiro falar em compreensão, já que não se trata de buscar uma lei.

– Ah... agora que eu tava gostando do negócio de explicar, categorizar, relacionar, imputar causas a efeitos... Mas, então, sua proposta é ficar contando historinhas até o fim deste trabalho, ficar lembrando das coisas, ficar assim compreendendo a vida! Acho que vou ler é Proust!

– Proust, Proust... você tem razão... Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, “não consiste na memória, nem tampouco na lembrança, ainda que involuntária.” 176 Afinal, qual a busca de Proust? O tempo perdido? Recordar,

recordar, lembrar, lembrar? Buscar o passado perdido? Há aí um sentido de buscar uma verdade, sim, porém, por outro lado, “o tempo perdido não é simplesmente o tempo passado; é também o tempo que se perde, como na expressão ‘perder tempo’”177. A memória é uma ferramenta para a busca, “mas não

é o meio mais profundo”, e o “tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura mais profunda”178. Ou seja, “não se trata de uma

exposição da memória involuntária, mas do relato de um aprendizado – mais precisamente, do aprendizado de um homem de letras [...] A Recherche é voltada para o futuro e não para o passado”179.

Sim, aprendizado. Isso me diz muito, pois não faz sentido toda essa contação aqui, se eu não tiver os olhos para o futuro, para minha prática de professor e supervisor, para os estagiários com quem trabalharei, para formação de professores e a educação matemática com a qual me envolverei. Esse o aprendizado que narro aqui. É por isso que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 176 Deleuze (2003, p.05)

177 Deleuze (2003, p.05)

178

Para Deleuze, os

campanários de Martinville e a pequena frase musical de Vinteuil, que não trazem à memória nenhuma lembrança, nenhuma ressurreição do passado, têm, para Proust, muito mais importância do que a Madeleine e o calçamento de Veneza, que dependem da memória, e, por isso, remetem ainda a uma “explicação material”. (DELEUZE, 2003, p.05).

EU NÃO POSSO CONTAR SOZINHO, MAS CONTO, EM BUSCA DE MIM EM VOCÊ, SOBRE MIM

“Let me think: was I the same when I got up this morning?” (Lewis Carroll, Alice in wonderland)

Pois é como se lá, nos cadernos, estivesse escrita uma história daquilo que vivemos e, agora, eu a reescrevo a meu modo. Meu modo nada mais é do que uma justificativa da reorientação que dou àquela história, uma justificativa da reorientação da atenção histórica180. Trata-se de uma reorientação para a história

das experiências formativas vivenciadas durante o estágio. E, como essa reorientação é tecida por mim, coso minhas identidades.

Veja as histórias que já contei e as que contarei: praticamente todas dizem sobre um tal professor supervisor. Como ele é? Às vezes parece mais preocupado em ser professor de matemática. Como é esse professor? Sendo um professor assim, assado, como isso reflete em seu trabalho de supervisor? Ele procura a ele mesmo nas aulas dos estagiários? Todas as aulas funcionam? Toda a supervisão é exitosa? Às vezes parece que, por ser professor e supervisor assim, assado, ele está sempre buscando algo, investigando a prática em conjunto com os estagiários.

Já não tenho mais dúvidas: a presente investigação é sobre mim, isso mesmo, um investigação sobre meu “eu”.

– Sobre você!? E o que você investiga, afinal? Não me lembro de você ter apresentado sequer um problema de investigação.

– Reluto, sim, em apresentar uma pergunta, um problema. É que toda pergunta “indica a perda de uma intimidade ou o extinguir-se de uma adoração”181,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 180 Ricoeur (2010, p.256)

181

Zambrano (1992, p.65, tradução minha). Embora “adoração” seja um termo bastante forte,

lembrar histórias, contá-las e tê-las como parte de uma experiência marcante chega a ter um ar de

sagrado. Porém, o termo “intimidade” fica mais adequado aqui, para o meu caso.

indica um afã – típico de você e de sua impaciência científica – de se tornar independente, de “viver por sua conta, de livrar-se do que tem sido o lugar de sua alma”182. É um rompimento com o lugar e a amplitude do que vivi. É distanciar-me

do que vivi é tornar objeto, objetando-me ao que vivi. E esse rompimento com o vivido “corresponde ao instante em que algo acaba de ir-se”; e, então, perguntando, eu estaria outra vez diante da realidade, porém agora ela se apresentaria mais enigmática do que antes183.

Por isso, conforta-me minha aparente inescrutabilidade, conforta-me estar perto das histórias, contá-las, pois com elas encontro respostas àquilo que nem sequer perguntei.184 Perguntar marcaria o nascimento de uma atitude filosófica

diante do processo formativo que vivi, completamente desprendida da poesia, da narração, da instigação do poema, como tenho falado. Perguntar e responder marcaria um movimento de tentar acabar, definir, marcar. E definir “é salvar e condenar; salvar condenando. Mais ainda, julgar.”185 E como me conformar em

perder essa intimidade, estando eu falando de dentro da experiência? Como julgar indiscriminadamente o que vivi? Escrutar, sim, mas com escrúpulo.

Relendo o que já escrevi até aqui, algumas perguntas foram apresentadas, mas não um problema de fato, o que não significa falta de problematização; não se pode dizer que fiquei somente contando histórias. Essa conversa entre eu e você, que, dentre outras conotações, também é uma conversa entre eu e eu mesmo186,

lembra-me até uma espécie de saída de mim mesmo, uma conversa em que se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

182

É também de Zambrano (1992, p.65, tradução minha), num momento em que ela discute o

nascimento da filosofia e a necessidade de perguntar, fazendo uma contraposição entre a poesia e

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