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Com certeza isso me diz muito, pois eu tenho olhado o passado em busca de mim, essa é a verdade Por sorte, pessoas marcantes fizeram parte disso e, assim, elas compõem em conjunto

minha história.

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O termo original, em inglês, é: co-composition.

– Pois, então, você vai escrever um romance?! O romance Um estágio para

recordar!

– Romance... bom, como quer que eu selecione os documentos que uso; como quer que, dentro deles, selecione trechos para construir nossas historinhas, como você chama, tenho sempre uma dívida com esse passado recente: estou diante dele, estou sempre “submetido ‘ao que, um dia, foi’ ”. Essa é uma diferença importante entre o que faço e o romance ou a ficção144. Não escrevo um romance

de ficção. Escrevo uma narrativa de uma experiência, na verdade, eu (re)construo as experiências ao narrar.

– O que você pretende explicar com essa narrativa da experiência?

– Explicar... olhe... esse é um termo interessante usado por você. Do modo como você fala, fica parecendo que o poder da pesquisa, digamos, sem historinhas, seria maior, mais objetivo; ou que não há poder explicativo algum nas histórias que contei. Lembra-se de seu avô? Ou melhor, de meu avô?

– Que tem?

– Você ouvia as histórias dele, não lembra?

– É, talvez eu fosse um dos únicos que as ouvia... mas eram histórias de avô. – E o que aprendemos com elas?

– Difícil dizer assim, pois nunca havia um conteúdo a ensinar. Ele tinha, assim, um jeito de dar um conselho prático145. Até o melhor modo de assentar

tijolos e a proporção adequada entre cimento, cal, areia e água para fazer um letreiro, era possível imaginar com as histórias dele. Tinha aquela do Arrudinha, o valente segurança dos bailes do sindicato, um baita dum rapaz, um bruto dum

homem, como ele dizia, que resolvia as mais incríveis encrencas ocasionadas pelos

festeiros mais extravagantes. E aquela de quando ele se aposentou e os seus amigos fizeram uma festa para despedir-se dele? Foi com esse mesmo grupo de companheiros pedreiros que ele, exercendo uma liderança invejável, coordenou o grupo todo, em cima de um andaime, para reassentar uma parede prestes a desmoronar, depois que um trem desgovernado adentrou o barracão, ponto final para descarregamento, abalando a estrutura dos oitões do edifício. Ele economizou !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

144 Ricoeur (2010c, p.237) 145 Benjamin (1985)

meses de serviço nessa empreitada. Nossa, lembra-se daquela do engenheiro aproveitador que o retirava do serviço, durante o expediente, para esquadrejar e assentar os azulejos do banheiro da sua própria casa? Mas o cara ficava em cima do nosso avô e dizia que ele demorava demais pra cortar os azulejos e, decidido, pegou a torquês e apertou-a contra as pedras, no intuito de desenhar belas peças para o banheiro. Suas mãos finas esforçaram-se, contorceram-se até quebrar irregularmente um pedaço do azulejo, inutilizando-o. O engenheiro, pasmo, chamou de artista meu avô. Para não constranger o moço, vovô respondeu que tinha as mãos calejadas para a torquês, mas que engenheiro trabalhava é com a cabeça. Ah, engenheiro besta, aproveitador! Meu avô é quem usava a cabeça, era sofrido, ganhava mal, mas tinha uma capacidade incrível no seu modo cuidadoso, detalhista e respeitoso em lidar com o serviço e com os companheiros, pelos quais era muito respeitado.

– Ué, essas últimas linhas não foi ele quem contou!

– Não, não ... isso eu compreendo das histórias que ele contava ... Ah... nem vem falar que isso explica alguma coisa, hein!

– Mas você não pode simplesmente dizer que não há poder explicativo aí. Mas deixe-me te perguntar, você acha que essas histórias todas aconteceram assim?

– Que estranha pergunta! Posso até questionar o poder explicativo delas, mas nunca achei que vovô fosse um mentiroso. No entanto, tenho que admitir, havia histórias que eram difíceis, hein...

– Penso que vovô passou, sim, por tudo aquilo que ele contava, mas ele selecionava um encadeamento próprio para os fatos, a fim de compor as suas histórias, eles as orientava para os seus ouvintes.146 A tal da torquês, por exemplo,

nem eu sabia como se escrevia isso ou como se pronunciava e estou certo de que ele não esperava de mim um pleno conhecimento dos nomes das ferramentas ou para que serviam. Porém, o modo como contava, os gestos que fazia com as mãos, a força que imitava, mimetizando ali para mim a história passada, convidando-me a quase entrar na história, permitia entender que, como quer que fosse aquela !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

ferramenta – eu a imaginava como uma espécie de alicatão para quebrar pedras –, a relação entre ele e o engenheiro era o que ele queria contar, marcando-me a tal ponto de causar em você a mais sincera ira e até a chamar o engenheiro de besta147. Ao contar a relação entre ele e o engenheiro, nós descobríamos quem era

Vovô Lelo.

A verdade é que “não é o que explica que conta, mas o que a partir dela [da narrativa] se pode interpretar”148. Havia uma préfiguração149 da narrativa,

compartilhada por nós, permitindo uma mútua compreensão entre nós: olhinhos grudados no avô, ouvia com atenção e sabia que bastava um efeito estranho em minha face, uma cara de interrogação, para ouvir mais do narrador e ficar com aquela história para mim, juntamente com o que eu podia interpretar a partir dela. Voltemos ao nosso caso aqui, para você não achar que farei uma tese sobre vovô ou começar a me questionar sobre a pertinência dele aqui. O que escrevíamos naqueles cadernos?

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Essa anedota me lembra muito o que conta Geertz sobre piscadelas. Às vezes, eu me via

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