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Campinas

A história de um homem é sempre mal contada. Porque a pessoa é, em todo o tempo, ainda nascente. Ninguém segue uma única vida, todos se multiplicam em diversos transmutáveis homens.

Agora, quando desembrulho minhas lembranças eu aprendo meus muitos idiomas. Nem assim me entendo. Porque enquanto me descubro, eu mesmo me anoiteço, fosse haver coisas só visíveis em plena cegueira.

(Mia Couto,

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Imagines

A título de ilustração, parece oportuno recorrer ao romance ‘O Mulo’, de Darcy Ribeiro. Nessa obra, o protagonista, num delírio, imagina-se reunido com todos os seus ‘eus’. O ‘eu’ menino, o ‘eu’ soldado, o ‘eu’ fazendeiro, entre outros que marcam diferentes fases da vida de personagem Philogônio Castro Maya. Cada um deles com um modo de ser e uma peculiar maneira de ver o mundo, ou seja, maneiras diversas umas das outras e até contraditórias, arraigadas nas experiências vividas.

(Marcos A. Gonçalves Júnior,

O que vê o pesquisador que olha, 2010)

Imagine

Imagine você como um professor de matemática nos seus seis primeiros anos de carreira. Foram anos nos quais você passou por diferentes escolas e níveis de ensino, morou em diferentes cidades de diferentes estados, de tal forma que se vê em dificuldade diante da questão: Hei, professor, de onde você é? Quem é o seu

nome?201 Pois nessa pergunta se encerra um questionamento em relação a: sou de

onde nasci ou de onde vivi? Se tenho vivido em vários lugares, sou de onde? Do mundo? Mas não é só uma questão de ter nascido num ou noutro lugar, de ter morado aqui e acolá. Essa pergunta encerra um questionamento sobre você, professor. Quem é você, professor? Que caminhos te trouxeram até aqui? Que cargas

d’água veio fazer aqui? Que foi do outro professor? Vai pedir muita tarefa? E suas provas, hein? Com consulta ou sem consulta? Costuma passar trabalhinho? Vai ter ponto extra? Pode usar calculadora? Arredonda? Deixa um dedinho de parágrafo? Você olha o caderno? Tem que copiar? Pode beber água? Brochura ou pasta? Quantas casas depois da vírgula? Precisa dar resposta ou só circula o resultado?

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Também os moradores de uma aldeia “para além de todas viagens” perguntavam-se em relação

a um forasteiro que por ali chegou: “Mas esse homem: de onde veio, quem é o nome dele?”(MIA

COUTO, 2013, p.139)

Livro ou apostila? Xerox? Tem que estudar isso? E precisa trazer o livro? É de mais ou de menos? Pra que serve isso? Onde na Terra eu vou usar isso? Vai cair na prova? Isso cai no vestibular, né? Combinação ou permutação? Você passa lista? Pode conversar? Sozinho ou em dupla? Tabela ou gráfico? Pinta o gráfico? Traça o gráfico? Pontinho ou linha? Vai ter joguinho? Você costuma dar aula no laboratório? A resposta é uma letra mesmo? Você é louco? Ou gênio? Você sabe escrever? Você passa lista? Pode colar? E como faz? Tem mais de um jeito!? E qual é o correto? Você vai corrigir, né? Tem que ler tudo isso pra resolver? Funcionou para o primeiro e para o segundo... então é sempre verdade, né? Você não vai definir? Resumir? Resumir o que vai cair? Você não cansa de perguntar “por quê”? Por que você não fala logo a resposta? Você não vai dizer se tá certo ou errado?

Imagine então que, após muita luta, conquiste um novo emprego, numa nova cidade distante de sua terra natal202. Embora justamente a experiência

desses primeiros anos lhe dê uma certa segurança, ela também lhe dá a expectativa dos novos começos: uma vida nova em uma escola nova203 é sempre

um desafio. Imagine ainda você diante da turma no seu primeiro dia de aula nessa escola. Você está ali para ensinar matemática àqueles jovens do terceiro ano do Ensino Médio. Os poucos dias naquela cidade, as poucas horas naquela escola e os poucos minutos naquela sala já lhe permitem imaginar muitas possibilidades de ação como professor, as quais você vinha pensando em fazer, porém, simplesmente não conseguia em outras instituições. Você sabe que agora pode dar outras respostas àquelas perguntas. Os começos são sempre diferentes, mas esse começo tinha aquela sensação de conquista de algo pelo qual foi preciso correr atrás, estudar, merecer.

Você traz consigo aquela velha apreensão de se deparar com uma turma de 40, às vezes 50 ou até 60 alunos, como eram suas classes há pouco tempo, sobretudo as noturnas; de saber que poucos terão os livros nas mãos e tampouco !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Mas você acabou de se questionar sobre ser de uma terra natal!

Imagines

vão anotar o que você diz ou escreve; de sentir que é realmente pouco respeitado como professor; de notar que as conquistas profissionais (aquela turma que realmente surpreendeu, os jovens que lhe agradeceram por terem passado no vestibular, as aulas que funcionaram, os estudantes realmente motivados, usando seu ensino para ler o mundo...) são, de fato, exceções, boas exceções, mas raras, diante daquele universo no qual, às vezes, um ou outro aluno lhe dá até medo... e um professor ou outro lhe dá até desgosto.

Você carrega no olhar aquele desconcerto de quem, diariamente, vê o gritante contraste entre as escolas públicas de periferia e as escolas privadas centrais, frequentadas por uma elite econômica. Você carrega aquela impressão de “lua cris" diante da realidade das escolas em que trabalhou há alguns anos:

Imagina Imagina Hoje à noite A lua se apagar

Quem já viu a lua Cris?

Quando a lua começa a murchar Lua cris204

(Tom Jobim; Chico Buarque, 1983)

Entretanto, você custa a acreditar, as classes dessa nova escola não são numerosas! Não passam de 30 alunos. E tem mais, é possível fotocopiar atividades, há um laboratório de informática, simples, mas há, e há a universidade, pois sua escola fica dentro de uma universidade federal, tem as bibliotecas, laboratórios e tal. Os alunos parecem ainda manter algum respeito pelos professores. E estes, por !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Trechos da música “Imagina”, de Tom Jobim e Chico Buarque (1983). O último deles, o

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