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– Como não? Não cabe a você contar essa história?

– Continuar nesse embalo, nessa instigação poética e produzir, assim, uma história do que vivemos, é como creditar a uma versão da história o status de única. Afinal, o que diriam os estagiários em relação a essas pequenas histórias? Concordariam com elas, estariam satisfeitos com o desfecho? Receio que talvez não fossem essas as histórias que eles gostariam de contar. Há poucas páginas disse que “cabe a mim contar a história”. Qual história? E por que somente a mim?

Estabelecer critérios para contar o que contei, como estabeleci em “Tenho uma história para contar”, é uma necessidade, mas é sofrível. Afinal, deixo de redimir meu passado ao rememorá-lo parcialmente, distinguindo, de certa forma, acontecimentos grandes e pequenos72. No entanto, já dispensei a utopia de Funes

e, mais ainda, não são necessariamente grandes acontecimentos os que apresentei, nem pequenos – apenas escolhidos. Dentro da minha história fiz uma seleção que, diante do critério, pode parecer que estou distinguindo os fatos grandiosos e os insignificantes. Mas é só diante desse critério, pois, “pondo em perspectiva tudo o que deixo de fora da narrativa principal, vejo uma espécie de floresta que se estende por todos os lados e que, de tão densa, não deixa a luz atravessá-la”.73

Haverá sempre histórias não contadas, a contar, pois “narrar, acompanhar, entender histórias é apenas a ‘continuação’ dessas histórias não ditas”74.

Não há experiência humana que não seja “mediatizada por sistemas simbólicos” como a narrativa; há experiências que demandam narrativas75. E,

como estávamos num contexto específico, produzindo discursos numa esfera dada, algumas experiências nem sequer foram cogitadas nas histórias que contamos nos cadernos e no que eu trouxe aqui. Há as histórias em potencial76, as histórias que

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Lowy (2005, p.54), ao interpretar a tese III, “Sobre o conceito da história”, de Walter

Benjamin, afirma que a “redenção exige a rememoração integral do passado, sem fazer distinção

entre os acontecimentos ou os indivíduos ‘grandes’ e ‘pequenos’”.

73 Calvino (1990, p.113) 74 Ricoeur (2010, p.128-129) 75 Ricoeur (2010, p.128) 76 Ricoeur (2010, p.128)

compõem tudo aquilo que somos, que nos integram, mas que não damos a conhecer. Era apenas a continuação de minha história o fato de estar ali como professor, de estarem os estagiários observando as aulas, planejando, fazendo a regência. As histórias não contadas por eles e por mim são em maior número, talvez mais importantes e também formativas para a vida de cada um. Mas não é possível chamar Funes para contá-las e não pretendo fazer uma investigação sobre as histórias potenciais. Entretanto, o fato de olhar assim para as histórias que conto dá uma outra dimensão a elas, em contraste com o que não conto. Dá uma outra dimensão aos critérios de escolha adotados. Trata-se de estar ciente da impossibilidade de restaurar minha história e da possibilidade de aprender com o que consigo contar, aprender como professor, como formador de professores, como pesquisador em Educação Matemática e também como humano. Minhas historinhas ficam, assim, abertas a serem invadidas, subitamente, por histórias potenciais outras, oriundas de outras esferas de atuação humana, mas que, por algum motivo, talvez pela instigação do poema, encaixam-se ali.

Embora haja, então, os TFC, que contam uma história, os cadernos de estágio, que também contam, eu não sei dizer quais histórias os estagiários gostariam de contar, quais deixaram de contar nesses registros, quais contariam hoje. Cabe a mim contar a história do processo formativo pelo qual passamos? Ora, talvez não seja interesse dos estagiários contar a história do processo formativo como parte de uma pesquisa, como eu faço agora. Com certeza, como eles estão cientes de que aquele processo é alvo de uma tese, por minha parte, talvez eles se sensibilizem e me ajudem a contar. Mas, mais importante que isso, é saber que eles possuem histórias não contadas, e preciso estar aberto a isso.

Em todo caso, contei algumas histórias sobre o que vivemos, e quem pode dizer algo a respeito, concordar, discordar, contar outra coisa, enfim, são os estagiários77. Depois de contar o que contei, dei-me conta de que a vivência

conjunta precisa ser investigada com escrúpulo: essa é minha perscrutação.

Em janeiro de 2013, agendei um encontro com cada uma das duplas e levei a eles os cadernos de estágio. Selecionei alguns trechos dos cadernos para lermos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

juntos e pedi a eles que me ajudassem a contar aquelas histórias. Preparei algumas poucas perguntas referentes ao início e ao fim do curso, a como chegaram até mim e a respeito do que fizeram depois de graduados78. Levei também as

pequenas narrativas da seção anterior para realizarmos uma leitura conjunta79,

sendo que cada dupla leu comigo as histórias das quais fazia parte. Pedi permissão, oralmente e por escrito, para audiogravar aquele encontro e para utilizar os registros dos cadernos e do TFC80.

Embora eu mesmo tenha me referido a esses encontros como entrevistas, não me parece ser esse o termo mais adequado.

Convidei-os a me ajudar a contar a nossa história e, com os cadernos em mãos, não me preocupei em ter perguntas a fazer, mas, sim, em ter coisas a partir das quais pudéssemos tentar lembrar e contar. Busquei, junto a eles, aprender a contar uma história e procurar viver uma mútua construção de novas compreensões a respeito da investigação que fizemos sobre o ensino e a aprendizagem da matemática. Tal como destacam Connelly e Clandinin81 a respeito

das portas que se abrem com a pesquisa narrativa: aprender a contar nossas próprias histórias, aprender a ouvir as do outro, aprender a contar junto. Foi também um momento de viver outras experiências: às vezes apenas nostálgicas, outras vezes como descobertas, como se algo já estivesse explicado desde lá, mas ninguém havia contado ainda, outras como produção de histórias potenciais, outras ainda como esquecimento, como silêncio, como não lembrar e, por vezes, como imaginar como foi que tal fato aconteceu mesmo.

Escutando os áudios, percebi também como não consegui me calar, ou seja, tentar ouvi-los falar sobre o processo de formação pelo qual passaram como se eu

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Esses trechos pré-selecionados por mim estão indicados nos “Roteiros das Conversas”,

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