o
acesso ao poder político pode variar com as culturas humanas, mas oseu exercício exige um certo grau de legitimidade. Se todas as coletividades organizam-se de maneiras específicas, elas necessitam de representações e de imagens que legitimem a si mesmas e a autoridade que as regem. -Todo
poder", afinna Baczko, "tem de se impor não
só
como poderoso, mastambém como legítimo."
A
legitimidade do poder, portanto, reside em suacapacidade de emitir e· manejar \Una série de imagens e símbolos que exprimam crenças comuns, nonnas de bom comportamento e papéis sociais
(1985,
p. 310). Tão importante quanto os bens materiais, os bens de caráter simbólico designam modelos exemplares que legitimam as relações sociais e de autoridade: o -chefe" é competente, honesto, desprendido e preocupado com o bem comum; o "súdito" é trabalhador, amável, ordeiro, respeitador das leis e da familia; o "guerreiro" é patriota, corajoso e leal, entre outros papéis sociais. Raros e limitados, os bens simbólicos de caráter político são disputados entre governo e oposição, dominantes e dominados. Nas épocas de crise, se intensifica a elaboração de símbolos com o objetivo de desqua lificar a autoridade e de exaltar uma outra legitimidade.Os
meses que antecederam agosto de1954
foram momentos em que a4 Tivemos acesso aos seguintes jornais: no Rio de Janeiro, A Noite, Correio da Manha,
Tribuna do Imprensa, O Dia e Última Hora� em São Paulo, O Estadn de S. Paulo; em Porto
Alegre, Correio do Povo,
S
Sobre a importância de Getúlio Vargas para a configuração ideológica do PTB, ver Castro Gomes, Angela de & D'Araújo. M. C, Getulismo e traballrismo. São Paulo, Ática, 1989, e Delgado, Lucilia de Almeida Neves. PTB: dn getulismo ao reformismo (1945-1964). São Paulo, Marco Zero, 1 989.o carnaval da tristeza • 65
oposição conselVadora' a Vargas elaborou e difundiu todo um conjunto de símbolos que apontava para uma situação de impasse político. Se em seu
primeiro governo, particularmente enlTe
1937
e1942,
Vargas, à frente doEstado, praticamente monopolizou a produção de bens simbólicos com fins de legitimação política, em seu segundo mandato seus adversários conse guiram, com grande sucesso, propagar simbologias que, de alguma maneira, paralisararo a capacidade do poder estatal de apresentar-se como legítimo:
" 0 sr. Getúlio Vargas passou aser para os brasileiros o símbolo do que pode haver de pior em matéria de caudi lhismo; o corruptor por
excelência, o ambicioso do poder a qua Iquer preço, o acolitadordos
desonestos. dos violentos, dos defonnados moralmente ( ...
)
",dizia, na Câmara dos Deputados, o sr. Herbert Levy.'
Com grande espaço em toda a imprensa, a oposição difundia e manejava imagens que procuravam, ao mesmo tempo, desqualificar o governo e
indignar e mobilizar conlra ele a população.
O
conjunto de símbolos formulados e emitidos pelos grupos oposicionistas delineava uma
representação,
um esquema intelectual, para usar uma expressão de Roger Chartier, que infonnava e explicava a realidade social. Para o autor, "as representações
do mundo social assim construídas, embora aspirem
à
universalidade de umdiagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de
grupo que as forjam"
(1987,
p.17).
A representação elaborada pela oposição definia o presidente como o depositário de todo o -mal", de todas as forças deletérias:
"Somos um povo honrado governado por ladrões", afmnava, com letras
garrafais, o jornal
Tribuna da Imprensa
no dia2
de agosto de1954
na suaprimeira página. Já aos
13
anos de idade, segundo denúncia do sr. AurelianoLeite, também na Cãmara dos Deputados, Vargas leria baleado mortaimente
lllTI jovem desafeto,
na
própria escola, com a ajuda de seus dois innãos,demonstrando, desde criança, seu instinto assassino e de sua família.B Caudilho, corrupto, ambicioso, desonesto, violento, imoral e assassino, os adversários não apenas manejavam aqueles bens simbólicos mais caros 6 Chamamos de oposição conservadora a UDN e o grupo civil-militar que a apoiava. Queremos, com isso, diferenciar a oposição udenista a Vargas de outras, particulannente do PCB, que, na época, procurava seguir as diretrizes do Manifesto de Agosto. Pela linha sectária do manifesto. Vargas era qualificado de "agente do imperialismo" e seu governo de "traição nacional", apesar da aproximação do PCB com o PTB a partir de 1952. Para uma análise mais detalhada, ver Rodrigues, Leôncio Martins. O PCB: os dirigentes e a organização. ln: História geral da civilização brasileira. São Paulo, Difel, 1983, t m. v. 3;
Oilloote,Ronald.Partidn ComWJisra Brru1leiro. Conflito e integração 1922-1972. Rio de Janeiro, Graa� 1982; Delgado, lllcilia de Almeida Neves. Op. til
7 O Correio da Mo.nM, 1 1-8-1954, primeira pâgina.
66 • Vargas e a crise dos anos 50
à
legitimidade do poder, criando uma representação extremamente negativa do presidente, como ainda fonnulavam outras, também assustadoras, que ameaçavam o quadro político e, sobretudo, moral da nação.O
presidente do PTB do Ceará, sr. Carlos Jereissati, foi acusado pelo sr. Annando Falcão, daUDN,
de desviar recursos públicos em proveito próprio naquele estado;9 o Samdu, serviço médico de urgência voltado para as camadas mais pobres da população, recém-criado por Vargas, tinha objetivos meramente dema gógicos;" a implantação da república sindicalista, a exemplo do peronismo, estava em marcha no país.11 Essas eram algumas entre centenas de outras denúncias que se faziam. Diante de tantos escândalos, argumentava-se: "Como poderá o estrangeiro que conosco mantém relações comerciais e fmanceiras, continuá-Ias, diantedessa
vergonha nacional a que chega mos.,·t2Na luta pelo domínio e pelo controle dos bens simbólicos com fins de legitimação política, as elites conservadoras avançavam e conseguiam ela borar e diftmdir uma série de representações que aludiam ao "mau" presi dente, ao "mar de lama",
à
deturpação moral dos valores, enfun, ao país ameaçado. Se ao manipular um conjunto de imagens e símbolos a oposição construía representações que explicavam, cada uma, aspectos da realidade social, várias delas, por sua vez, davam contornos a umimaginário.
Segundo Pierre Ansart, o imaginário social é o resultado de um conjunto de repre sentações e, por ele, a sociedade se reproduz, designa papéis sociais c expressanecessidades coletivas (1978, p. 21). Para os agentes sociais, o controle do
imaginário, "'sua reprodução, difusão e manejo", lembra Baczko,
"assegura
emgraus variáveis uma
realinfluência sobre os compor
tamentos e as atividades individuais e coletivas, pennitindo obter
os resultados práticos desejados, canalizar as energias e orientar as
esperanças" (1985, p.
312).Agosto de 1954 foi o auge do processo de constituição de um imaginário da crise. E a crise estava centrada em um único personagem: Getúlio Vargas.
"Sobretudo é
preciso alijar Getúlio. Em primeiro
luga
r épreciso
a
lija
rGetúlio. Erradicá-lo, extirpá-lo da vida pública nacional,
como se faz, pela cirurgia, com
asinfecções e com os cancros.
Ele pesteia, deteriora tudo em que toca. Ele
é o fim ( ... ).Ele
éum viciado do crime político.
Sócomo criminoso
sabeagir.
Realista, materialista como os animais e como os primários, ( ... )
tudo se aeabaem torno dele. Caem as forças morais, decai o espírito
9 Ibid .• 4-8-1954, primeira página.
10 Ibid., 16-8-1954, p. 3. 1 1 Ibid., 05-8-1954, p. 4. 12 Ibid., 10-8-1954, p.4.
o carnaval da tristeza • 67
público, deturpa-se o patriotismo, transmudam-se os valores
(
.. .).E tudo vai poluindo pelo seu exemplo. A imoralidade já recebe, no
seio das famílias, epinícios e elogios. pelo seu exemplo. A hones tidade pessoal muda o seu conceito, já nâo sendo roubo a apropria ção dos dinheiros públicos pelo seu exemplo.
O
seu exemplo é o pior dos exemplos que já teve oBrasiL
Contemporizando com os ladrões públicos, deixando-os impunes
à sua sombra, ele investe. pelo exemplo. contra a moral brasileira.
do homem brasileiro que sempre preferiu passar fome a tocar no
dinheiro alheio.
O
exemplo de Getúlio é contra este tradicionalpadrão de honestidade.
Getúlio é o fim, como uma grande peste (
.
.. ).
Getú lio é o fim. Mas o
Brasil
não quer parar. não quer chegar aotim.
É
preciso. pol1anto, erra.dicar Getúlio." llManipulando imagens que se sobrepunham sobre outras imagens, o discurso oposicionista construía uma representação de Vargas a partir de
códigos ameaçadores
à
sensibilidade humana. O presidente representava oanonna}, o estrnnho, o anóma1o, o intersticia� o insólito, remetendo-o a um
comportamento
à
margem da cultura humana. Não casualmente João Duarte,filho, ao desqualificar Vargas, recorre ao discurso médico - infecção, cancro, peste, cirurgia; ao moral - impunidade, prevaricação, imoralidade; ao policial - viciado, criminoso, ladrão; à transmutação dos bens -
deteriorar, deturpar, poluir, dissolver; à ameaça daquele que
é
desviante danonna - inversão, contra o padrão, à sombra; enfim, à alusão aos seres inferiores - animal e primário. O processo que levou a oposição a descre
ver Vargas dessa maneira
é
o mesmo, segundo Raoul Girardet, que"reúne tudo que rasteja, se infiltra. se esconde. Reúne igualmente
tudo ° que é ondulante e viscoso, tudo o que é tido como portador
da sujeira eda infecção ( ... ). Pode-se falar. no caso. desse fenômeno muito freqüentemente descrito pelos etnólogos e que é o da as
similação ou da redução à animalidade"
(1987,
p.44).
Mas, acima de tudo, Vargas era ° mau exemplo, a fal,ta de referências,
de valores e de nonnas, a demonização e a animalização do homem. Incapaz de competir eleitoralmente com a aliança PSD-P1B, com um
projeto político excludente e conservador, derrotada de
1945,
a UDN, aoapresentar Vargas como a desgraça do país, estava descrevendo, na verdade, a matriz de seu próprio infortúnio político. Voltar-se para as forças annadas
como forma de alcançar o poder como havia feito em
1951
para impedir aposse de Vargas era uma das alternativas da UDN. O conflito, contudo, era travado em águas mais profundas e girava em torno de projetos alternativos
68 • Vargas e a crise dos anos 50
de desenvolvimento econômico para o país. Em
1954,
a luta enlre os gruposatingiria o clímax, cindindo toda a sociedade, mas a vitória defmitiva de
um
deles somente seria imposta 10 anos mais tarde.14
Vargas, que navegava entre essas águas, teve seu destino selado com o
atentado da rua Toneleros, que feriu de morte o major Rubens Vazo A partir
desse episódio a oposição aumentou em ritmo e intensidade o imaginário da crise. Com habilidade, o militar foi rransformado em mais um símbolo na
luta conlra o "maln• Na primeira página de seujomal,
Tribuna da Imprensa,
com o titulo
"O
sangue deum
inocente", Carlos Lacerda lembra a medalhade herói do Correio Aéreo Nacional e os qualro filhos do major manipulan
do sentimentalmente a imagem dos "órfãos de guerra". Sem esperar as investigações policiais, Lacerda ainda declarava: "Mas, perante Deus, acuso
um só homem como responsável por esse crime.
É
o protetor dos ladrões( ... ). Esse homem é Getúlio Vargas."l'
Criando e movimentando imagens,
cenárioo
e personageos, governando arealidade
social
como se faz nos bastidores de um tealro, os advetsários políticosdo presidente agiam como
uma
"tealroCracia ", para usarumaexprcssão de GeorgeBalandier, procurando regular e impor papéis sociais àcoletividade. "Todo sistema
de
poder",diz
o autor, "é um dispositivo destinado a produzir efeitos, enlre os quaisos que se com
param às ilusões criadas
pelasilusões
do tealro"(1982,
p.6).
Aocomandar o
real
através do imaginário, a oposição representava a encenação da;acontecimentos.
A partir do episódio da rua Toneleros, não bastava esperar as eleições que se realizariam em breve, era necessário a intervenção saneadora, profi lática e providencial de outro ator que também seria representado e descrito por meio de mitos e versões: as forças annadas. Ao fonnular o imaginário da crise, a o}Xlsição também apontava para sua superação com a interferência militar. A aliança, que há tempos vinha sendo implementada pelas elites conservadoras e JX'r setores das três forças, foi definitivamente selada com o
tiro
que alvejou o major VazoO
golpe era Iramado e invocado abertamente:" Para j
ulgar este [crimel, quejá
está elucidado", dizia o jornal OEstado de São Paulo. -"é que a Nação recorre às Forças Annadas.
14 Segundo Antonio Mendes de Almeida Júnior. as divergências se davam entre "aqueles que defendiam uma posição ligada ao desenvolvimento autônomo e presetvador das riquezas nacionais e os que advogavam a causa do desenvolvimento associado ao capital externo, mesmo nos aspectos respeitantes à produção de caráter 'estratégico', como no caso do petroloo", sendo que a questão nevrálgica da luta entre os projetos era o "da participação política das massas e a disposição da burguesia de não ceder diante das rei vindicações da classe operária" , Do declínio do Estado Novo ao suicídio de Getúlio Vargas. In: História geral da civilização brasileira. Op. cit, p. 249.
o carnaval da tristeza • 69
Os escrupulos
destas - repetimos
sãonaturais
e louváveis. tudodeve ser tentado p
ar
aque o processo seja pacífico. Mas se
não forpossível. se os
homens dignos esbarrarem irremediavelmente
naindignidade
dos outros. nãoserá possível recuar .
.. 16Em reuniões, militares indignados pregavam o golpe sem rodeios. Em I I
de agosto, no Clube da Aeronáutica, oficiais superiores e subalternos das três forças discutiram livremente os rumos a tomar. Centenas de militares, sob a presidência do tenente-brigadeiro Eduardo Gomes, ouviam de vários colegas de farda discursos inflamados. Por exemplo, o brigadeiro Franco Faria, com veemência, vociferava:
[Hoje]
·0 Executivo éproprietário do B
rasi
l, oLegislativo fica de
cócoras e o Judiciário se omite. A